Preserva.Me 2020: Humanidades digitais

30/10/2020

A sexta edição do Encontro Internacional de Preservação e Memória, Preserva.Me 2020, chega ao seu penúltimo dia debatendo "Humanidades digitais". No primeiro painel da quinta-feira, 29 de outubro, o tema "História digital" foi abordado nas apresentações de Pedro Telles, professor, pós-doutorando da Fapesp e pesquisador em memória e história digital, e Mayra Marques, mestra em História pela UFOP e pesquisadora em Memória e História Digital. Na parte da tarde, a partir do tema "A experiência do Museu da Pessoa na construção colaborativa de acervos", a historiadora e fundadora desta instituição narrou a iniciativa de coletar testemunhos do cotidiano das pessoas durante o período da pandemia. 

O Preserva.Me 2020 tem como tema de sua 6ª edição “Memórias digitais: ações de preservação e difusão de acervos”. O evento acontece entre os dias 26 e 30 de outubro, apresentando 9 painéis que abordam 5 pilares temáticos: "Difusão de acervos", "Curadoria digital", "Acervos e documentos", "Humanidades digitais" e "Integração de acervos". Em decorrência do isolamento social imposto pelo surto do coronavírus, pela primeira vez, o Preserva.Me acontece inteiramente on-line, sem evento presencial. Os painéis podem ser acompanhados pelo canal da Memória da Eletricidade no Youtube.

Cadastre-se no site e assista ao vídeo da íntegra do painel "História digital", com Pedro Telles e Mayra Marques:


Primeiro painel: "História digital"

"A Evidência da História Digital – Porque devemos nos preocupar hoje com a preservação do amanhã" foi o título da apresentação de Pedro Telles. O historiador partiu do registro de duas tragédias – os incêndios da Grenfell Tower em junho de 2017 em Londres e da Catedral de Notre Dame de Paris em abril de 2019 – para mostrar a importância da preservação de registros feitos pelos cidadãos. Filmes, fotografias e áudios captados por celulares e outros aparelhos podem servir de evidências que ajudam a estabelecer responsabilidades e criar uma narrativa que se contrapõe à oficial.

– A área de North Kensington, em Londres, habitada por pessoas mais pobres, passava por um processo de gentrificação na época do incêndio – explicou. – Em consequência do incêndio, 72 pessoas morreram. A partir dos registros da tragédia feitos por pessoas comuns e disponibilizados na internet, o projeto Grenfell Tower Archive fez uma narrativa 3D, que permite entender como o incêndio se alastrou, suas causas e responsabilidades. Um grupo da Unicamp fez algo semelhante com o incêndio da Notre Dame.

Os dois casos são exemplares nas mudanças que têm permitido ao historiador trabalhar com novos tipos de documentos e evidências.

– Estamos acompanhando uma mudança. Ao longo do século XX, os tipos de evidências disponíveis para o historiador se ampliaram. De documentos oficiais estatais do século XIX, passamos, no século XX, para jornais e revistas e também o registro da história oral. O século XXI é marcado pelos documentos digitais a partir de registros digitalizados feitos pelas pessoas. Um problema é que essas fontes digitais são extremamente voláteis. Outro problema é o caráter proprietário das cinco grandes empresas de tecnologia do mundo, Apple, Microsoft, Amazon, Facebook e Google, que muitas vezes impede o acesso à informação.

Justiça de transição: História e Direito juntos em busca de reparação

Pedro Telles ressalta a importância da justiça de transição, a relação entre História e Direito para que se possa contar o que realmente aconteceu no passado. A História relata os acontecimentos, a Justiça pune ou absolve. Esse trabalho interdisciplinar vai permitir, como nos casos dos incêndios citados acima, reparações históricas e atribuições de responsabilidades: 

– Por isso, a necessidade de preservar a documentação digital atual: para tornar possível a responsabilidade dos agentes na reparação das vítimas. Junto com advogados, juízes e profissionais da computação, os historiadores passam a ter importante função social. A relação entre fake news e coronavírus é a infâmia da nossa época. Qualquer História do Brasil contemporâneo que não mencionar o digital estará incompleta.

Mayra Marques também usou a pandemia como ponto de partida para expor em seu painel dois casos exemplares: o Museu da Música de Mariana e o livro digital "Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou a história do encontro entre um presidente fake e um virus real".

Fundado em 1973 na cidade mineira de Mariana pelo então arcebispo Dom Oscar de Almeida, o museu digitalizou seu acervo entre 2014 e 2017 e disponibilizou documentos e partituras na internet. 

– Junto com essa iniciativa, o museu passou a fazer uma mediação digital e pedagógica no Facebook – contou Mayra Marques. – Isso aproximou o público. E a digitalização e a transcrição de partituras dos séculos XVIII e XIX permitem que músicos de hoje toquem as músicas. Ao doar partituras para o museu, as cidades próximas a Mariana perdiam contato com a música. Na internet, o museu passa a interagir com a comunidade e amplia seu espaço físico. A digitalização aumenta o significado do museu.

Almanaque da Covid-19

Depois de exibir uma pesquisa que mostra que a procura no Google por museus digitais aumentou justamente a partir de março de 2020, por causa da pandemia, a historiadora contou sua experiência na criação e publicação do livro digital "Almanaque da Covid-19", escrito em parceria com Mateus Pereira e Valdei Araújo.

– Foi produzido a partir de conversas de WhatsApp, crônicas, testemunhos pessoais num diário, links... – explicou. – O trabalho foi todo feito no Google Drive pelos três autores. Abordamos temas como o impacto da pandemia entre mulheres, negros e indígenas.

Mayra considera que, apesar de não se tratar de uma pesquisa científica, a experiência a ajudou a compreender sua função como historiadora na era da informação digitalizada:

– Não foi um trabalho de história digital, mas historiadores não podem deixar de trabalhar com as novas fontes, como redes sociais, mensagens de WhatsApp e memes. Pesquisar o presente é uma forma de compreendê-lo como algo novo, como as constantes mudanças fazem parecer, mas é também uma forma de lembrar que há muitos aspectos do nosso presente que são reflexos do nosso passado e das nossas expectativas do futuro.

Desafios da era da informação: fontes confiáveis e apagamento de registros digitais

No debate final, mediado pelo doutor em comunicação e pesquisador Igor Sacramento, Pedro Telles e Mayra Marques falaram sobre o lugar da mídia como produtora de memória e da atuação dos professores de História em sala de aula, num cenário em que precisam lidar com a disseminação de informação falsas por meio de plataformas digitais. Como ter acesso a fontes e informações confiáveis?

– Este é um dos principais problemas que enfrentamos hoje, que é o caráter privado desse conteúdo e sua sociabilidade. Passamos do debate praça pública no século XIX para as discussões no Legislativo e na imprensa no século XX para as redes sociais no XXI – lembrou Pedro Telles. – Pensamos demais da transição do analógico para o digital, mas esquecemos da transição do público para o privado. E essas duas questões estão ligadas. Não há distinção entre mundo real e virtual. Fiz um levantamento do que seriam arquivos informais digitais. Acervos que escapam de acervos digitais. Feitos por pessoas, grupos, coletivos com interesses de diversos aspectos do passado. Um exemplo recente é o Orkut. Todo o conteúdo foi apagado. E grupos políticos, como é o caso dos monarquistas, surgiram naquela plataforma. Isso não pode mais ser acessado para que se possa fazer uma pesquisa histórica sobre o fenômeno. 

Cadastre-se no site e assista ao vídeo da íntegra do painel "A experiência do Museu da Pessoa na construção colaborativa de acervos", com Karen Worcman


Segundo painel: "A experiência do Museu da Pessoa na construção colaborativa de acervos"

O Museu da Pessoa não se reinventou para se adaptar à realidade imposta pela Covid-19. Ao contrário, manteve as portas abertas fazendo exatamente aquilo a que se propõe desde a fundação em 1991: escutar. Durante três meses, a equipe desenvolveu a campanha Diário Para o Futuro coletando testemunhos do cotidiano neste período da pandemia, como contou a fundadora do museu, Karen Worcman, na apresentação que fechou o quarto dia do Preserva.Me com mediação de Ana Paula Goulart, doutora em Comunicação e Cultura e consultora da Memória da Eletricidade.

– Não era uma campanha sociológica. Era assim: eu acordo, eu faço o quê? O que está causando em mim? O que eu sonhei? Aí tem histórias do café ou da cama. Da angústia. A gente pensou ali como historiador: e se a gente soubesse como tinha sido o dia a dia de alguém na gripe espanhola?

Como na maior parte das iniciativas do museu, havia também a preocupação com a relevância do momento. Criou-se, então, a oportunidade para que as pessoas escrevessem um diário como vem acontecendo desde sempre.

– Antigamente, a gente fazia o diário pra gente, né? E ainda botava um cadeado. E aqui a gente criou um diário para compartilhar – comparou Karen antes de fazer a ressalva de que, quando o museu foi criado, o conceito de compartilhamento, tão disseminado pela internet, era “bastante inusitado.”

"Toda pessoa é interessante e tem uma experiência única"

O desenvolvimento de projetos para dar voz a experiências ou indivíduos sobre determinada situação ou momento histórico é um dos braços de atuação do Museu da Pessoa. Depoimentos captados ou recebidos compõem o acervo de mais de 18 mil entrevistas. 

– Toda pessoa é interessante. Toda a pessoa tem uma experiência única. O museu vem dessa percepção do poder que as histórias de vida têm para nos transformar. A gente fala muito em democratização, em inclusão, e respeito à diversidade. A memória social deve ser produzida por todos, incluindo a todos. Uma ideia de democratização da própria memória. A narrativa histórica pode preservar, dar continuidade ou transformar os valores, o status quo da nossa sociedade.

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Confira a cobertura Confira a cobertura dos outros dias de evento:

Difusão de acervos

Curadoria digital

Acervos e documentos

Integração de acervos