A paixão pelo novo no século 21: A Semana cem anos depois

Postado em 15/10/2021
João Marcos Coelho
Compartilhar

Yamandu Costa, seguramente um dos maiores violonistas brasileiros em sentido absoluto, abriu a terceira temporada do Projeto Semana de 22 da Memória da Eletricidade no dia 9 de setembro (que você pode assistir no nosso canal Youtube) fazendo um panorama crítico da evolução do violão ao longo dos últimos cem anos – o tempo que nos separa da Semana de Arte Moderna de 1922, na qual a presença do violão foi sequer cogitada.

Sim, àquela altura, as elites brasileiras, sobretudo no eixo Rio-São Paulo, até admitiam aplaudir virtuoses como o paraguaio Agustin Barrios, o primeiro músico internacional a quebrar a barreira e apresentar-se numa sala de concertos no Rio de Janeiro, Uma honra inimaginável para brasileiros natos. As batidas policiais costumavam examinar os dedos dos cidadãos: se tinham calos, com certeza praticavam o instrumento proibido. Tocar violão era contravenção punida com prisão.

Yamandu conversou sobre esta atribulada mas linda história. Em apenas um século, o violão saiu da contravenção para se transformar no instrumento-símbolo da identidade nacional. Também tocou trechos de peças de seus ídolos, como João Pernambuco. 

Poesia em risco

Uma semana depois, na quinta-feira, dia 16 de setembro, Viviana Bosi, professora titular de Teoria Literária da USP, levou corações e mentes de quem assistiu a uma verdadeira “viagem” pela poesia da Geração 70, os poetas que romperam os circuitos convencionais de divulgação da literatura e da poesia. Saíram do domínio do livro impresso. Eles mesmos faziam cópias mimeografadas e vendiam seus poemas em escolas e locais de eventos culturais e artísticos. Grandes poetas como Ana Cristina César, Cacaso, Capinam, Rubens Rodrigues Torres Filho, Ferreira Gullar e Armando Freitas Filho.  

Viviana leu vários poemas. E terminamos a conversa com os versos essenciais de Armando Freitas Filho, de um poema de 2013, oito anos atrás, sintomaticamente intitulado  “Dever”. Seus últimos versos são:

“O poema novo é dos insurgentes. [...] 
Só vai ser poesia, depois
Quando muitos o terão lido/relido e estabelecido.” 

Corra até o canal da Memória da Eletricidade no youtube e assista a esta live que tem o maior dos méritos: o de mostrar que a poesia é – sempre – essencial. E se ainda assim quiser saber mais sobre por que ela é essencial, compre o livro de Viviana Bosi “Poesia em risco – Itinerários para aportar nos anos 1970 e além”, que ela acabou de lançar pela Editora 34.

Modernidade em preto e branco

Na quinta-feira, dia 23 de setembro, foi a vez de Rafael Cardoso, carioca de 57 anos hoje radicado em Berlim. Rafael viveu a infância nos Estados Unidos com a família, mas fez toda a sua formação acadêmica no Rio de Janeiro. Historiador da arte e do design, é autor do livro “Design para um mundo complexo” (2016) e, oito anos antes, de um livro delicioso: “A arte brasileira em 25 quadros”, cuja leitura é fascinante. Naquela tarde/noite, aprofundamos o debate sobre o real significado da Semana de 22 hoje, às vésperas do seu centenário. Rafael lançou em abril deste ano pela Editora Cambridge o livro “Modernity in black and white: Art and image, race and identity in Brazil 1890-1945”. Não se engane com essas datas-limite, entre o final do século passado e o ano que marcou o final da Segunda Guerra Mundial e também a morte de Mário de Andrade, possivelmente a maior figura da Semana de 22 originária. O livro será lançado no primeiro semestre de 2022 pela Companhia das Letras.

O que me levou a convidá-lo para pensarmos juntos a Semana hoje foi justamente a introdução desse livro, já disponível em português como um dos ensaios da revista “Serrote” número 38, lançada poucos meses atrás (pgs. 132-159).

– O preto e branco do título – disse Rafael Cardoso – refere-se não somente a disparidades raciais como também a tensões entre a cultura de elite e uma incipiente cultura de massa que encontrou expressão em mídias como fotografia e artes gráficas, outrora designadas, em fontes de língua inglesa, como "black and white art”.

Foi uma conversa muito enriquecedora, que abriu as perspectivas e a moldura da Semana de 22:

Uma narrativa que ignora as culturas populares e de massa

– Às vésperas do centenário da Semana de 22, o cânone modernista segue tributário de uma narrativa em que as culturas populares e de massa são ignoradas em favor das esferas elitistas de literatura, arquitetura, arte e música eruditas – constata Rafael Cardoso. – Meu livro é um estudo de caso para o reforço coletivo de investigar a modernização cultural como fenômeno histórico disperso e diverso. A partir de 1890, uma série de modernismos alternativos se sobrepõem para constituírem juntos um campo ampliado de trocas modernistas. Os grandes nomes do nosso cânone derivam quase exclusivamente das esferas da literatura, arquitetura, arte e música eruditas, enquanto modernismos alternativos que brotaram da cultura popular e de massa são esquecidos ou ignorados.

Sábias e agudas palavras, que nos ajudam a revirar completamente o modo como enxergamos o fenômeno da Semana de 22 a praticamente um século de distância:

– Mesmo consagrada por estudiosos e preservada por instituições fundadas em sua memória, a importância da Semana reside principalmente em seu status como lenda.

Caetano & Oiticica, tropicalismo & concretismo

Na quinta-feira, dia 30 de setembro, em uma hora de conversa, o jornalista, escritor e crítico musical Carlos Calado, 65 anos, autor de dois livros sobre o tropicalismo, chamou a atenção para detalhes que modificam o modo como costumamos ver as contaminações criativas entre o concretismo de Augusto e Haroldo de Campos e os ícones do tropicalismo, sobretudo Caetano Veloso. 

– Foi Augusto quem insistiu em ter contato com Caetano – afirmou.

Calado é autor dos livros "Tropicália: A história de uma revolução musical" e "A divina comédia dos Mutantes", entre outros. Em seu blog "Música de Alma Negra", que mantém desde 2009, o jornalista vem realizando um acompanhamento meticuloso dos movimentos de música instrumental brasileira. 

Xenofobia e conservadorismo

Em relação à tropicália, uma das críticas básicas que se fazia naquele momento era a da hegemonia da atitude nacional-popular, da canção que faz a revolução, ou seja, a ideia de que a música tinha que ser politizada. 

– E, de certo modo, essa atitude – disse Calado – vinha muito ligada a uma grande xenofobia, a ideia de que a música pop era uma coisa estranha à cultura brasileira, guitarras e coisas do tipo. Ou seja, existia ali uma certa xenofobia muito careta e muito conservadora contra a qual a tropicália em um primeiro momento se insurgiu.

Fica-se sabendo, por exemplo, que quando Caetano compôs a canção "Tropicália" ainda não tinha um nome para ela:

– Naquele momento, o Barretão, Luiz Carlos Barreto, conhecidíssimo produtor do cinema brasileiro, ouviu a música e falou que ela era igual à exposição que o Hélio Oiticica havia feito uns meses antes e que se chamava "Tropicália". Caetano não conhecia o Hélio Oiticica e muito menos havia visto a exposição.

Isso nos leva a pensar que o tropicalismo de alguma maneira conseguiu expressar o que os filósofos alemães chamam de zeitgeist, ou espírito do tempo. Eles encarnaram uma tendência que estava no ar.

– Antes de fazer "Alegria alegria", Caetano assistiu à peça "O Rei da Vela". Ele ficou chocado e excitado, achando que ali havia alguma coisa viva que valia a pena explorar na música. Assistiu a "Terra em transe", do Glauber Rocha, e o ciclo fechou-se virtuosamente – explica Calado.

Antropofagia e tropicália: ideias afins

Outro trunfo claro, inferido pelos contatos dos tropicalistas com a turma concreta, foi a inclusão de arranjadores sofisticadíssimos como Rogério Duprat e Júlio Medaglia, no disco-manifesto de 1968 “Tropicália – Panis et circencis”. Estes últimos, aliás, transitavam com tranquilidade entre os arranjos para TV, publicidade e discos sem perder o pé das vanguardas contemporâneas.

No fundo, a idéia da antropofagia tem tudo a ver com a Tropicália. O movimento é absorver, deglutir o que de interessante for de fora e vomitar o que é seu.

– Essas idéias – afirma Calado – vêm desde o início do século. O que a Tropicália tem de mais forte é que se hoje você escutar os discos de Caetano, Gil, Mutantes, Gal e Tom Zé daquela época (de 1967 a 1972), parece que foram feitos na semana passada.

Veredito final:

– A obra do tropicalismo é muito pequena. Talvez não dê nem dez álbuns, porém é uma obra muito criativa, uma coisa que não envelheceu. Ainda hoje há garotos que piram ao ouvir Mutantes. Os seus discos poderiam ter sido feitos ontem, passaram-se 40 anos e eles não envelheceram.


Sobre a série Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro

A série de lives "Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro" tem por objetivo construir, às vésperas da celebração do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, um amplo, diversificado e profundo painel da arte e da cultura brasileira. Com curadoria e apresentação do jornalista e crítico musical João Marcos Coelho, os bate-papos são transmitidos pela página da Memória da Eletricidade no Youtube, sempre às quintas-feiras, às 18h.

"Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro" estreou no dia 18 de março de 2021. Os programas passados podem ser vistos na página da Memória da Eletricidade no Youtube.

Confira a programação da terceira temporada:

Outubro:

21/10
"Vigilância e resistência na dadosfera", com Giselle Beiguelman, professora da FAO-USP e artista

28/10
"Música impopular em 2022", com Julio Medaglia, maestro

Novembro:
Programação a confirmar.


João Marcos Coelho