A performance da verdade: jornalismo e checagem de fatos

Postado em 14/06/2021
Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".

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Desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2 de fevereiro de 2020) determinou que a disseminação da doença coronavírus foi acompanhada por uma “infodemia massiva”, o surto de COVID-19 se tornou um campo de batalha nacional e internacional de luta contra a desinformação. Os meios de verificação de fatos em todo o mundo têm combatido ativamente as informações falsas e enganosas em torno da pandemia. Durante a pandemia, as agências de checagem se expandiram ainda mais no tecido social. Em primeiro lugar, esse fenômeno de checagem de fatos especializada pode ser considerado como mais um elemento de produção de verdade jornalística que cumpre um duplo dever: tentar contribuir para uma maior desfusão (separando o público de atores quando estes carecem de autenticidade e credibilidade), por um lado, e trabalhando para superá-la, por outro. Em segundo lugar, as novas práticas de verificação de fatos se tornaram um suplemento para o jornalismo profissional que pode ser capaz de ajudar as instituições comunicativas a defender a veracidade de uma maneira que contribua para a democracia, mas que garanta a própria autoridade do jornalismo e sua permanência.

Em março de 2020, em um momento de grandes desafios causados pelo Covid-19, a Memória da Eletricidade lançou #MemóriaDaPandemia, uma série de lives nos seus canais oficiais no Instagram, Facebook e YouTube. O projeto atende à demanda por informações seguras e debates qualificados nas áreas de Saúde, Arte & Cultura e Gestão & Liderança. Com curadoria e apresentação do professor Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Os episódios de #MemóriaDaPandemia são transmitidos todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 10h.

Em sua dimensão comunicativa, o surto de COVID-19 confirmou a busca dos cidadãos por informações fidedignas e confiáveis, aumentando as oportunidades para o jornalismo profissional ganhar espaço cultural e social. Como observou Bruno Chiarioni, este trabalho cultural está enraizado em valores fundamentais do jornalismo que enquadram eventos sociais e atores dentro do discurso mais amplo das sociedades. Ao enfrentar a ameaça de desinformação sobre a COVID-19, os jornalistas codificaram as reivindicações públicas dentro de um sistema binário bastante conhecido: veracidade versus falsidade. Esse binarismo também reflete a linha divisória entre fatos sagrados e opinião mundana, particularmente na história do jornalismo moderno. A luta cultural sobre o significado de verdade não apenas posiciona o jornalismo profissional fortemente na sociedade, mas também atinge o âmago da capacidade do olhar jornalístico de responsabilizar o poder.

Agências de checagem buscam suplementar o 'jornalismo declaratório'

As agências de checagem (ou a checagem de fatos como nova roupagem para uma prática jornalística que deveria ser corriqueira: a apuração) não parecem buscar afirmar o poder interpretativo do jornalismo, mas suplementar uma prática cada vez mais rotineira: o jornalismo declaratório. As matérias jornalísticas estão sendo frequentemente embasadas apenas nas declarações das fontes de informação, sem aprofundar muito na investigação e na apuração. Como comentou Ana Regina Rêgo, é hora de lançar nova luz sobre esse novo fenômeno dos verificadores de fatos e a crescente tematização da desinformação e dos “fatos falsos” que a crise do COVID-19 intensificou. Em particular, o impacto do jornalismo de verificação de fatos sobre alegadas alegações falsas de políticos e autoridades públicas nos momentos de pico da pandemia serve como exemplo paradigmático de polarização política que a pandemia não apenas revelou, mas também agravou. 

Embora a desinformação em torno do COVID-19 tenha surgido em muitas variedades - desde teorias de conspiração e alegações que aumentam ou minimizam o número de casos de coronavírus até curas e testes falsos - muitas informações incorretas sobre COVID-19 dizem respeito às ações de autoridades públicas e políticos. Na medida em que essas reivindicações frequentemente envolvem figuras públicas proeminentes, elas se tornam, por sua vez, estímulos para o engajamento público e o conteúdo viral a ser disseminado rapidamente nas mídias sociais.

Além disso, falsas informações divulgadas por políticos, celebridades e outras figuras públicas proeminentes representam um crescimento de uma desinformação politizada a respeito do COVID-19. A desvalorização dos fatos em nome de interesses partidários e de crenças coletivas pode parecer particularmente crítica no contexto da crise global causada pelo novo coronavírus. 


Ao contrário dos argumentos sobre a diminuição da avaliação civil e da fragmentação da opinião pública que tornam o jornalismo de verificação de fatos inoperante, Ana Regina Rêgo observa uma luta ideológica velada que não atinge os níveis de polarização próprios dos contextos eleitorais. A pós-verdade e as fake news também revelam um declínio progressivo do papel democrático do jornalismo em um momento em que a mídia digital está se tornando mais proeminente. Este argumento liga a desinformação ao empobrecimento da qualidade e credibilidade da mídia legada. Temos um problema de más notícias, não um problema de notícias falsas. A narrativa da crise nas notícias resultou em uma dessacralização sombria do jornalismo que associa o fracasso democrático do jornalismo com o aumento do consumo de informações da mídia partidária de qualidade duvidosa.

Ao contrário da narrativa da crise, o papel da mídia no processo de verificação de fatos é destacado por verificadores de fatos de uma maneira particular. Os meios de comunicação tradicionais aparecem como figuras relevantes e estão muito presentes no meta-discurso dos verificadores de fatos - ou seja, a maneira como estes legitimam sua atividade de verificação de fatos. As organizações jornalísticas são apresentadas como fontes confiáveis e cruciais para a verificação de fatos em pé de igualdade com relação a especialistas científicos ou documentos oficiais. Existem inúmeras checagens de fatos nos Estados Unidos que mostram essa centralidade da mídia legada tanto qualitativa quanto quantitativamente. No caso espanhol, algumas checagens de fatos revelam que algumas afirmações falsas que se tornam virais nas redes sociais são fabricações baseadas em imagens e textos de mídia legada. Por meio de uma reconstrução cuidadosa da notícia original, as checagens de fatos desmascaram a falsidade de tal conteúdo manipulado que parecia verdadeiro porque incluía elementos de jornalismo. Para o mesmo propósito, as verificações de fatos anteriores tornam-se elementos-chave nas subsequentes. O verificador de fatos assume um duplo papel como entidade investigativa e criador de evidências documentais com base nas reportagens originais das principais organizações jornalísticas. 

No geral, nossas respostas às perguntas que colocamos têm como objetivo cruzar o exame de como uma função central do jornalismo profissional e, particularmente, do jornalismo de verificação de fatos – o de cão de guarda – adquiriu um novo significado no domínio do desempenho político em tempos de crise e polarização social. 

Resposta jornalística a um aumento correspondente na desinformação

Os verificadores de fatos permitem ampliar o poder social do jornalismo, que se baseia nas interpretações democráticas do jornalismo de atores individuais e coletivos. Nosso estudo chega em um momento em que o número de verificadores de fatos aumentou dramaticamente como resultado da crise do COVID-19. Além de refletir a resposta jornalística e civil a um aumento correspondente na desinformação, o notável crescimento dos verificadores de fatos pode ser tomado como um indicador do poder interpretativo do jornalismo para avaliar a autenticidade das autoridades públicas durante tempos particularmente difíceis em que a colaboração e solidariedade dos cidadãos são essenciais para enfrentar as principais ameaças.

Ao separar fatos de informações imprecisas e classificar peças de informação como falsas, enganosas, distorcidas ou recontextualizadas, verificadores de fatos independentes mediam a conexão entre as autoridades públicas e o público. Mostramos como suas verificações e relatórios geralmente se referem a “fatos” e “verdades” que refletem uma narrativa baseada na ciência. Em um contexto de desconfiança polarizada, verificadores de fatos independentes não apenas retardam rumores virais, conspirações, trolls ou embustes, mas suas avaliações tornam possível equilibrar narrativas públicas com empirismo - uma dose sólida de ceticismo e escrutínio.

Esse poder interpretativo exercido por verificadores de fatos representa um dos elementos cruciais das performances sociais atuais. Estrategicamente posicionados entre os atores e o público, os verificadores de fatos independentes detêm o poder de facilitar a refusão ou manter a desfusão. Na melhor das hipóteses, suas análises e avaliações podem promover a refusão e se tornar "bastiões da verdade" (Garret, The Lancet, 11 de março de 2020) a partir do qual os fatos são disseminados em tempo hábil, para que públicos fragmentados possam autenticar as representações das autoridades públicas para decidir se suspendem ou não seus próprios interesses e contribuem para os objetivos comuns pelos quais os governos são responsáveis.

Refusão e desfusão

O questionamento da eficácia da verificação de fatos e do jornalismo em uma era pós-verdade, em que as opiniões e emoções podem ter mais relevância do que os fatos nos processos de interpretação da realidade, mostra como muitas verificações de alegações falsas podem contribuir para processos de refusão com os governos, fortalecendo políticas confiáveis baseadas em dados e fatos verificáveis e neutralizando mentiras e críticas infundadas. No entanto, as interpretações dos verificadores de fatos podem aprofundar a desfusão, apontando falsidades e imprecisões provenientes de alegações de cima para baixo e desempenhos persuasivos que priorizam o interesse político sobre informações precisas. Ao mesmo tempo, processos de desfusão baseados nas ações de verificadores de fatos costumam ser ativados quando certos partidos políticos ou políticos questionam a credibilidade e legitimidade dessas instituições jornalísticas, acusando-as de parcialidade em seu trabalho de verificação.

Além deste jogo duplo decisivo de refusão e desfusão em relação às performances políticas, as histórias dos verificadores de fatos constroem fronteiras simbólicas de verdade nas quais as organizações de mídia legadas ocupam um lugar central. Verificações e relatórios geralmente se referem a essas organizações como fontes de “fatos” e “verdades” que refletem uma narrativa baseada na ciência, junto com especialistas e instituições científicas. Da mesma forma, os relatórios dos verificadores de fatos destacam o trabalho colaborativo das plataformas de mídia social para confrontar a desinformação e apontam alegações enganosas provenientes de indivíduos específicos através da mesma mídia social. Ao fazer isso, os verificadores de fatos não apenas purificam a nova mídia adotada pelos cidadãos, mas também localizam simbolicamente públicos razoáveis dentro dos limites da verdade.

Confira abaixo a programação desta semana de lives da #MemóriaDaPandemia:

Quarta-feira (16/6) às 10h — "Os danos pulmonares causados pelo SARS-COV-2". Igor Sacramento conversa com Unaí Tupinambás, médico infectologista e professor associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Sexta-feira (18/6) às 10h — "A COVID-19 e a desigualdade". Igor Sacramento conversa com Margareth Portela, doutora em administração e política de saúde e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública.

Foto do thumb: divulgação Facebook

Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".