Memória, catástrofe e urgência subjetiva

Postado em 02/06/2021
Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".

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As catástrofes contemporâneas são frequentemente acompanhadas por memorialização. Embora tenha havido esforços populares e midiáticos significativos para relembrar as inúmeras perdas que sofremos durante a pandemia COVID-19, não houve nenhum memorial nacional coordenado, nenhum lugar, monumento ou momento único que tenha canalizado o sofrimento público de uma maneira coletiva no Brasil. Embora reconheçamos a dinâmica política em jogo, alguns de nossos convidados nas lives #MemórianaPandemia foram além: como essa situação cria obstáculos tanto para o ritual quanto para a narrativização?

Em março de 2020, em um momento de grandes desafios causados pelo Covid-19, a Memória da Eletricidade lançou #MemóriaDaPandemia, uma série de lives nos seus canais oficiais no Instagram, Facebook e YouTube. O projeto atende à demanda por informações seguras e debates qualificados nas áreas de Saúde, Arte & Cultura e Gestão & Liderança. Com curadoria e apresentação do professor Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Os episódios de #MemóriaDaPandemia são transmitidos todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 10h.

À medida que a pandemia de COVID-19 se intensifica, este impulso de homenagear e lamentar a morte de pessoas – e, ao fazê-lo, para sublinhar o significado de cada vida individual – permanece presente no Brasil. No entanto, no lugar de luto coletivo, tais iniciativas – ainda que pontuais – convivem com uma sistemática negação da pandemia, das mortes e suas consequências em prol de um desejo cada vez mais compartilhado de afirmação de normalidade. Muitos políticos têm agido a favor dessa sensação generalizada de que está tudo normal ou como antes. Como explicou Daniela Romão-Dias, toda catástrofe nos coloca numa situação disruptiva. A vida traz em seu bojo, desde seu surgimento, uma instabilidade, um rompimento com a ordem estável do inanimado. Quando nos deparamos com o significado mais usual de catástrofe, ou seja, como acontecimento que atinge toda uma comunidade, isso implica necessariamente uma experiência. Afinal de contas, como ela explica, o que é catastrófico não é o evento em sim, mas a experiência vivida pelos humanos em comunidade. Além disso, a catástrofe diz respeito a um evento traumático que deixa marcas em todos aqueles que passaram por uma experiência que se impõe a nós de modo violento e esgarça nossa capacidade de usarmos nosso funcionamento psíquico habitual a fim de fazer frente à nova exigência.

O contágio interrompe os rituais e os laços sociais que nos dão sustentação

As experiências traumáticas na Covid-19 estão frequentemente associadas ao encontro com o real da morte. É justamente nesse sentido que o trabalho de luto passou a ser nessa pandemia cada vez mais necessário. Como detalhou Anna Carolina Lo Bianco, o momento da pandemia reconfigurou o luto, porque não apenas o perigo de contágio interrompe os rituais, mas também porque desaparece o tempo e o espaço para um trabalho, que é ao mesmo tempo individual e coletivo. Os laços sociais não apenas nos dão sustentação nos momentos de felicidade e acolhimento, mas também nos de tristeza e desamparo. 


Como acontece com todos os rituais, a base essencial para os ritos piaculares é a copresença física. Isto é, os ritos piaculares restauram o espírito, em primeiro lugar, reunindo corpos em um espaço comum, permitindo o foco compartilhado e o humor que eleva as pessoas para fora de si mesmas e para o transcendente reino da efervescência coletiva. Em meio à pandemia, os rituais desencarnados simplesmente não geram o mesmo senso de elevação e solidariedade que ocorre com seus colegas pessoalmente. Apesar de todas as suas virtudes em permitir que a vida continue em meio à pandemia, no final, o Zoom, o GoogleMeet, o Skype e tantos outros geram mais fadiga do que efervescência. Ficou muito evidente que as interações face a face pelas quais nos movemos diariamente são aquelas que nos mais enchem de energia emocional e nos sentidos repelidos por aqueles que não o fazem. 

A perda de comunalidade inscreve seus efeitos na linguagem do trauma: um golpe nos tecidos básicos da vida social, que danifica os laços que prendem pessoas juntas e que prejudica o senso de comunhão prevalecente. Tal dano pode ser irreparável quando as pessoas descobrem que estavam isoladas e sozinhas, totalmente dependentes de seus próprios recursos individuais. Sem a comunalidade, que fornece um senso fundamental de segurança ontológica, o eu continuo existindo, embora danificado e talvez permanentemente alterado. A energia emocional é o agente de ligação que cria um intangível senso de comunidade e sustenta nossas instituições sociais: encontros momentâneos entre corpos humanos carregados de emoções e consciência, porque passaram por cadeias de anteriores encontros que fornecem essa carga intangível. Na verdade, o indivíduo é a cadeia de rituais de interação, o precipitado do passado de situações e o ingrediente essencial a cada nova situação. 

Urgência subjetiva

Sigmund Freud afirmara que o pânico advém quando um grupo se encontra fragilizado. O que Freud descreve como pânico nas massas se assemelha em termos àquilo que, na dimensão subjetiva, ele descreve como sendo a angústia. O que significa, então, neste contexto, urgência subjetiva? Poderíamos dizer que se trata de um contexto em que os mecanismos simbólicos e, portanto, culturais, de mediação, explicação, enfim, de elaboração dos traumas fracassam, trazendo à tona a angústia como afeto subjetivo prevalente? A urgência subjetiva é um dispositivo clínico psicanalítico que pretende dar conta de um certo fracasso de regulação simbólica individual.

Por outro lado, a COVID-19 é uma urgência generalizada. Colocou em primeiro plano e exacerbado desigualdades sociais, agravando o agravamento de vidas que já eram precárias. Ainda mais, mostra-nos como as condições de vida que alguns de nós associamos com COVID-19 em particular – perturbação, incerteza, imprevisibilidade, caos, trauma – atormentavam tantas vidas muito antes do vírus. Não temos o controle sobre a natureza. Somos suscetíveis a infeções, epidemias, pandemias. Convivemos com a imprevisibilidade. Mas há inúmeras formas, por meio de políticas públicas, de minimizar as iniquidades. A desigualdade e os determinantes sociais relacionados que afetam certos grupos estão diretamente relacionados aos resultados adversos para a saúde das populações vulneráveis durante a pandemia. Pessoas em comunidades desfavorecidas são, geralmente, mais propensas à exposição ocupacional ao vírus e tendem a ter acesso limitado aos cuidados de saúde e maiores taxas de comorbidades. Os resultados relacionados ao fechamento generalizado de escolas também são uma preocupação especial para as comunidades carentes. Além disso, essas populações são mais suscetíveis aos resultados econômicos negativos da pandemia. Há uma necessidade urgente de pesquisas e soluções de políticas relacionadas ao impacto do COVID-19, com atenção especial às necessidades das populações desfavorecidas e vulneráveis, base para a qual é oferecida nesta discussão.

Como bem observou Lo Bianco, não se pode separar o sofrimento psíquico das desigualdades sociais. Mais uma vez, nunca alcançaremos controle total sobre a natureza. Mas, talvez, ainda haja uma maneira de reimaginar e reconfigurar nossos relacionamentos uns com os outros, o que cria uma sensação mais profunda de segurança, solidariedade e empatia. A possibilidade de um futuro melhor para um número muito maior de pessoas está associada à nossa capacidade de esperançar futuros sem bloquear ou apagar traumas. Viver coletivamente também é procurar minimizar os sofrimentos e as desigualdades alheias.

Confira abaixo a programação desta semana de lives da #MemóriaDaPandemia:

Sexta-feira (4/5) às 10h — "Os danos pulmonares causados pelo SARS-COV-2". Igor Sacramento conversa com Alexandre Todorovic Fabro, médico-patologista, professor doutor do Departamento de Patologia e Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

Crédito da foto do thumb: Irina Anastasiu/Pexels

Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".