As cartas não mentem

Postado em 06/05/2021
João Marcos Coelho
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Por que as cartas fascinam? Porque é nelas que artistas, intelectuais e pensadores, de certo modo, se desnudam, abandonam o que o crítico Silviano Santiago chama de “fingimento”. Isto é, esquecem a “estilização literária”, que “recobre, surrupia, esconde, escamoteia a experiência pessoal, intransferível e íntima, para que a letra perca o diapasão empírico, que a conforma no dia-a-dia, e se alce à condição de literatura, e a palavra, à condição de universal”. Sua definição desse gostinho especial que temos ao ler a correspondência alheia é matadora: “Violamos o lacre, e como voyeurs entramos na intimidade de dois correspondentes e amigos”.

A reflexão de Santiago, com o sugestivo título “Suas cartas, nossas cartas”, integra seu prefácio para a edição da correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. 

Há, porém, muitas nuances em relação ao estatuto privado das cartas de figuras públicas, como Mário de Andrade, tema da conversa cheia de detalhes interessantes e colocações inesperadas de Marcos Antonio de Moraes, professor no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, onde está o acervo Mário de Andrade, incluindo as mais de oito mil cartas por ele recebidas e que só foram abertas 50 anos após sua morte, em 1995. Aos 54 anos, Moraes lembra-se da cerimônia de abertura das caixas lacradas com a correspondência em 1995, quando ele começava suas pesquisas. Um dos resultados mais formidáveis dessas décadas de pesquisa foi a publicação pela Edusp da edição estabelecida por Marcos da correspondência completa entre Mário e Manuel Bandeira.

Tensões e fricções do século XX

– Conhecer a vasta correspondência de Mário de Andrade é acompanhar as tensões e fricções entre vários dos maiores artistas e intelectuais brasileiros do século XX” – disse Moraes, na live de 29 de abril. E foi mais longe:

– Talvez só por meio da narrativa complexa e contraditória em vários momentos seja possível construir uma biografia, ou melhor, uma autobiografia de Mário compatível com sua personalidade, tanto pública quanto privada.

Aliás, na correspondência entre Mário e Bandeira, há uma linda frase do primeiro que define bem a relação entre quem escreve e quem recebe a carta, uma via de mão dupla, que ajuda cada um dos interlocutores a se autodefinir: “...u és hoje para mim (...) um homem para o qual eu sou eu, ser aberto que se abandona”.

Nesse universo, os detalhes são reveladores. Como, por exemplo, quando Mário, durante a Segunda Guerra Mundial, foi muito pressionado por Carlos Lacerda e outros amigos então membros do Partido Comunista.

– Não só a se posicionar politicamente, mas ingressar de fato no partido – conta Moraes. – Mário, então, toma um porre com eles e, na madrugada, ainda bêbado, escreve uma carta a Lacerda, letra que mais parece garranchos, mas não a põe no correio. Relê e decide guardar para si mesmo.

Ou então quando Drummond abriu por engano uma carta de Mário endereçada a um amigo comum, Martins de Almeida.

– Naquele momento – conta Moraes – Drummond detecta nelas a verdade nas ideias e força desabusada. Deseja-as também para si. E escreve a Mário explicando o engano. Este lhe responde para não ficar desesperado, ele iria respondê-la sim.

Cartas inéditas previstas para serem publicadas em livro em 2021 e 2022

Existem atualmente cerca de 40 livros com correspondência de Mário de Andrade.

– E ainda há muitas cartas inéditas. Vários livros serão publicados este ano e em 2022 – anuncia Moraes. – É um privilégio fazer pesquisa primária nesse mundo tão impactante e decisivo para a cultura brasileira, como é o acervo Mário de Andrade.

Dica final: para quem ainda não leu nenhuma carta de Mário de Andrade e gostaria de fazer a primeira incursão neste universo, Moraes indica o livro “Cartas a um jovem escritor”, uma preciosidade:

– O encontro raro entre Fernando Sabino, um jovem aprendiz de escritor aos 18 anos, e o velho mestre. É sem dúvida a melhor porta de entrada para esse universo fascinante.

Próximo episódio

Hoje, dia 6 de maio, o historiador Carlos Guilherme Mota vai conversar sobre um dos personagens importantes da Semana e que é simplesmente esquecido nas narrativas convencionais sobre o evento histórico: o escritor, poeta, crítico literário, de artes plásticas Sérgio Milliet (1898-1966), um “polígrafo”, na expressão de Mota.  

Programação

Confira a programação completa da primeira temporada da série de lives "Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro". Os episódios são transmitidos sempre às quintas-feiras, às 18h, no canal da Memória de Eletricidade no Youtube.

Tudo que você precisa saber sobre a semana de 22:

Abril:

15/4 – Os intelectuais na década de 1920 – Com Milton Lahuerta, professor da UNESP-Araraquara(SP), autor de “A década de 20 e as origens do Brasil moderno” (Ed. Unesp). 

29/4 – Está tudo nas cartas – Mário de Andrade foi o maior missivista do Brasil no século XX. Escreveu cartas prodigiosamente, fez delas seu jeito de conversar com os amigos mas também com todos os que o procuraram. Com Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e autor de “Orgulho de jamais aconselhar – a epistolografia de Mário de Andrade” (Edusp, 2007).  

Maio:

6/5 – O grande esquecido – Sérgio Milliet – Com o historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da USP e Mackenzie, que prepara um livro sobre Milliet.  

13/5 – A força da poesia modernista – Com Manuel da Costa Pinto, jornalista, crítico literário e curador do Prêmio Oceanos.

20/5 – A Semana e as vanguardas latino-americanas na década de 1920 – Viviana Gelado, professora de literatura latino-americana na Universidade Federal Fluminense (UFF), autora de "Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura popular nos anos 20 na América Latina".

27/5 – Revolução nas Artes Plásticas: Anita Malfatti, Tarsila e a Semana de 22 – Com Francisco Alambert, professor de História da Arte e Cultura Contemporânea, História (USP) professor de História da Arte e Cultura Contemporânea, História (USP) e autor de "A Semana de 22 - A aventura modernista no Brasil".  

João Marcos Coelho