Vacinação, desinformação e Covid-19

Postado em 11/04/2021
Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".

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À medida que 2020 entra nos anais da saúde pública como o ano da pandemia Covid-19, estamos marcando uma nova era científica. Isso é praticamente cem anos após a Grande Influenza de 1918/1919, que representou entre 50 e 100 milhões de vidas e que definiu o advento da nova disciplina da virologia. Nos anos que se seguiram, uma sucessão de novos vírus, incluindo HIV, gripe aviária, SARS, gripe suína e ebola, apareceu no cenário mundial. No entanto, se a experiência da pandemia nos ensina algo é que, embora a ciência moderna seja fundamental para a defesa da vida, nos últimos anos, nos acostumamos a um lento aumento no ceticismo da vacina, que recebeu um impulso de Andrew Wakefield e suas afirmações sobre a associação do autismo com a imunização com a vacina do sarampo, caxumba e rubéola. Anteriormente, também tínhamos que resistir e observar como propagandistas enganosos minaram a medida baseada em evidências de fluoretação da água para beneficiar a saúde bucal da população. O que agora é preocupante é se aqueles que se opõem às novas vacinas Covid-19 não reconhecerem as notícias falsas como um problema profundo que requer responsabilidade e investimento para ser resolvido. A desinformação da vacina Covid-19 não é levada tão a sério quanto deveria.  

Em março de 2020, em um momento de grandes desafios causados pelo Covid-19, a Memória da Eletricidade lançou #MemóriaDaPandemia, uma série de lives nos seus canais oficiais no Instagram, Facebook e YouTube. O projeto atende à demanda por informações seguras e debates qualificados nas áreas de Saúde, Arte & Cultura e Gestão & Liderança. Com curadoria e apresentação do professor Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Os episódios de #MemóriaDaPandemia são transmitidos todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 10h.

A desinformação sobre as vacinas Covid-19 é uma séria ameaça não apenas à saúde pública, mas também à confiabilidade na ciência e à segurança econômica global. Na live com a professora Ana Regina Rêgo, autora do livro A construção intencional da ignorância: o mercado de notícias falsas, com Marialva Barbosa, ela explica como narrativas baseadas em informações sem evidência científica persistem e se espalham. Enfatiza o caráter social das notícias falsas. As conexões entre nós em grupos ou redes permitem a propagação de evidências enganosas, bem como de crenças verdadeiras. Modelos de comunicação mostram a importância da confiança em moldar a disseminação de crenças. Quanto maior a desconfiança de quem tem pontos de vista diferentes, maior o risco de polarização permanente. Também somos vítimas do preconceito da conformidade – um desejo de concordar com os outros e confiar nos julgamentos dos outros. Nossa predileção pela conformidade torna mais difícil enfrentar a multidão. Nessa lógica, se a sua rede de relações tiver pontos de vista anti-vacinais fortes, você pode achar mais difícil chegar a um julgamento independente, mesmo se estiver inclinado a ter confiança em uma vacina. E a desinformação piora quando há propagandistas ativos espalhando notícias falsas. O campo das vacinas contra a Covid-19 está repleto de propagandistas que procuram manipular e enganar.

O antivacinismo e hesitação vacinal: ameaças à saúde pública global

O que pode ser feito? Embora não tenham escrito sobre Covid-19 especificamente, Ana Regina Rêgo e Marialva Barbosa tiraram conclusões que podem ser aplicadas à nossa situação atual. Um aviso: eles enfatizam que quem pensa que o “mercado de ideias” separará o fato da ficção está perigosamente enganado. Primeiro, então, as empresas de mídia social, especialmente Facebook e Twitter, devem fazer mais para policiar suas redes e eliminar informações falsas. Em segundo lugar, políticos e outras figuras públicas precisam se manifestar em apoio à ciência. Terceiro, cientistas de vacinas (e editores de revistas científicas que publicam ciência de vacinas) devem elevar seus padrões para o trabalho que fazem (e publicam). É importante que os cientistas mantenham a máxima independência dos fabricantes que patrocinam seus estudos. Não ajuda muito a causa das vacinas quando executivos de empresas farmacêuticas falam de forma encorajadora sobre uma vacina. Os propagandistas usam suas palavras para alimentar a desconfiança sobre a ciência das vacinas. Quarto, os jornalistas devem evitar a disseminação involuntária de desinformação. Eles nunca devem dar qualquer tipo de plataforma para os céticos da vacina. Quinto, os legisladores podem fazer mais para regulamentar as fontes de desinformação, assim como fizeram com outras ameaças à saúde, como o tabagismo. O antivacinismo é uma ameaça à saúde pública global muitíssimo mais grave, catastrófica, para a reinserção de doenças praticamente erradicadas ou bastante controladas em escalas pandêmica. 

Thaiane Oliveira, na live de que participou no Centro de Memória da Eletricidade, afirmou que precisamos reconhecer as notícias falsas como um problema profundo que requer responsabilidade e investimento para ser resolvido. A desinformação da vacina COVID-19 não é levada tão a sério quanto deveria. Apesar dos grandes avanços na vacinação ao longo do século passado, o ressurgimento de doenças evitáveis ​​por vacinas levou a Organização Mundial da Saúde a identificar a hesitação da vacina como uma grande ameaça à saúde global. A hesitação vacinal pode ser alimentada por informações de saúde obtidas de uma variedade de fontes, incluindo novas mídias, como a internet e plataformas de mídia social. À medida que o acesso à tecnologia melhorou, as mídias sociais alcançaram penetração global. Em contraste com a mídia tradicional, as mídias sociais permitem que os indivíduos criem e compartilhem conteúdo globalmente muito rapidamente, sem supervisão editorial e sem regulação e regulamentação específicas. Os usuários podem selecionar os fluxos de conteúdo, contribuindo para o isolamento ideológico. Como tal, existem consideráveis ​​preocupações de saúde pública levantadas por mensagens antivacinação em tais plataformas e o consequente potencial para hesitação da vacina a jusante, incluindo o comprometimento da confiança pública no desenvolvimento futuro de vacinas para novos patógenos, como SARS-CoV-2 para a prevenção de Covid-19. Nesta revisão, discutimos a posição atual das plataformas de mídia social na propagação da hesitação vacinal e exploramos as próximas etapas de como a mídia social pode ser usada para melhorar a educação em saúde e promover a confiança do público na vacinação.

A primeira experiência com a vacinação se deu no século XIX e, junto com ela, movimentos antivacinação também surgiram. A vacinação generalizada contra a varíola começou no início de 1800, após os experimentos de Edward Jenner contra a varíola, nos quais ele mostrou que poderia proteger uma criança da varíola se a infectasse com linfa de uma bolha de varíola. Em 1789, ele começou a observar que as pessoas que ordenhavam vacas não contraíam a varíola, desde que tivessem adquirido a forma animal da doença. O médico extraiu o pus da mão de uma ordenhadora que havia contraído a varíola bovina e o inoculou em um menino saudável, James Phipps, de oito anos, em 4 de maio de 1796. O menino contraiu a doença de forma branda e, em seguida, ficou curado. Em 1º de julho do mesmo ano, Jenner inoculou no mesmo menino líquido extraído de uma pústula de varíola humana. James não contraiu a doença, o que significava que estava imune à varíola. Estava descoberta a primeira vacina com vírus atenuado que, em dois séculos, erradicaria a doença. As ideias de Jenner eram novas para sua época, no entanto, e foram recebidas com críticas públicas imediatas. A justificativa para essa crítica variou e incluiu objeções sanitárias, religiosas, científicas e políticas.

Religião, ceticismo e individualismo

Para alguns pais, a própria vacinação contra a varíola induziu medo e protesto. Incluía marcar a carne no braço de uma criança e inserir linfa da bolha de uma pessoa que havia sido vacinada cerca de uma semana antes. Alguns opositores, incluindo o clero, acreditavam que a vacina era “anticristã” porque vinha de um animal. Para outros antivacinadores, seu descontentamento com a vacina contra a varíola refletia sua desconfiança geral na medicina e nas ideias de Jenner sobre a disseminação da doença. Suspeitando da eficácia da vacina, alguns céticos alegaram que a varíola resultou de matéria em decomposição na atmosfera. Por último, muitas pessoas se opuseram à vacinação porque acreditavam que violava sua liberdade pessoal, uma tensão que piorou à medida que o governo desenvolvia políticas de vacinação obrigatória.

A Lei de Vacinação de 1853 ordenou a vacinação obrigatória para crianças de até 3 meses de idade, e a Lei de 1867 estendeu essa exigência de idade para 14 anos, acrescentando penalidades para a recusa da vacina. As leis encontraram resistência imediata dos cidadãos que exigiam o direito de controlar seus corpos e os de seus filhos. A Liga Nacional Anti-Vacinação e a Liga Anti-Vacinação Compulsória foram formadas em resposta às leis obrigatórias, e vários jornais antivacinação surgiram. À época, a cidade de Leicester foi um foco particular de atividade antivacinas e local de muitos comícios antivacinas. 

Essas demonstrações de oposição geral à vacina levaram ao desenvolvimento de uma comissão destinada a estudar a vacinação. Em 1896, a comissão decidiu que a vacinação protegia contra a varíola, mas sugeriu a remoção das penalidades por não vacinar. A Lei de Vacinação de 1898 removeu as penalidades e incluiu uma cláusula de “objetor de consciência”, para que os pais que não acreditassem na segurança ou eficácia da vacinação pudessem obter um certificado de isenção.

Os esforços organizados para evitar ou combater a vacinação têm, de fato, uma longa história. Neste momento em que uma esmagadora maioria do público saúda a chegada da vacinação Covid-19, é salutar relembrar os principais argumentos contra o seu valor e uso. Além do medo de injeções, talvez facilmente compreendido, outras objeções incluíram que a vacinação é "não-cristã" (e presumivelmente de outras religiões), que é uma violação da liberdade pessoal e que é parte de uma suspeita mais geral da ciência medicamento; este último talvez tenha sido reforçado pela ideia de a vacina chegou cedo demais.

A base que sustenta a aceitação da vacinação é a confiança

Não é imediatamente evidente porque a mídia social é tão desproporcionalmente bem-sucedida na promoção da hesitação da vacina em oposição à aceitação. A base que sustenta a aceitação da vacinação é a confiança. Confiar nos processos, práticas e políticas de desenvolvimento, licenciamento e fabricação de vacinas; nos formuladores de políticas que estabelecem recomendações de vacinas; e no sistema de saúde - os médicos, enfermeiras e imunizadores comunitários que administram vacinas como parte da rotina de atendimento e durante as campanhas de vacinação em massa. Sem compreender e abordar a confiança, os esforços para melhorar a confiança na vacina serão uma escalada íngreme. Esse certamente será o caso quando as vacinas COVID-19 chegarem, especialmente devido às muitas novas tecnologias de vacinas que estão sendo testadas e a velocidade com que estão sendo desenvolvidas. Embora a vacinação continue a ser a norma social em todos os países, este patamar de aceitação, juntamente com surtos de doenças evitáveis ​​por vacinação, levou a um foco mais nítido na qualidade dos serviços de vacinação e no último centímetro da última milha: a decisão de aceitar ou recusar uma vacina que está disponível e sendo oferecida.

O cálculo da tomada de decisão da vacinação é o equilíbrio entre benefício e risco, juntamente com a incerteza, e são esses mesmos elementos que geram rumores. Como nenhuma vacina - e nenhum produto médico - é isenta de riscos, sempre haverá terreno fértil para rumores. O desafio é, então, administrar os rumores e mitigar táticas de intencionais de promoção da ignorância. Não são toupeiras a serem abatidas, mas sinais que exigem um entendimento mais profundo não apenas sobre porque surgiram, mas também porque permanecem.

Confira abaixo a programação desta semana de lives da #MemóriaDaPandemia:

Segunda-feira (12/4), às 10h — "O Compromisso Social do Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19". Igor Sacramento conversa com Roberta Lemos dos Santos, fisioterapeuta, mestra e doutora em Biomédica e Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz.

Quarta-feira (14/4), às 10h — "As Implicações da Covid-19 no Sistema Cardiovascular". Igor Sacramento conversa com Daniele Melo Sardinha, enfermeira, mestra em Epidemologia e Vigilância em Saúde, Instituto Evandro Chagas da Fiocruz e epidemiologista na Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará.

Sexta-feira (16/4) às 10h — "Em Busca de Sentido em Meia à Tragédia". Igor Sacramento conversa com Sonia Leite, psicanalista e doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ).

Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".