Como a história pode ajudar a entender uma pandemia

Postado em 08/03/2021
Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".

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Em meio à atual crise do Covid-19, pesquisadores das mais diferentes áreas, além daquelas diretamente relacionadas ao campo da saúde, foram chamados a contribuir com reflexões, pesquisas e soluções. O que os historiadores podem contribuir? De muitas formas. O historiador Gabriel Lopes, para a live intitulada “A importância da história para o estudo das pandemias”, explicou que as epidemias e pandemias não são apenas uma função de patógenos ou um estudo para a microbiologia, a infectologia ou a epidemiologia. São também uma oportunidade para se analisar como a sociedade é estruturada, como o poder político é exercido em nome da saúde pública, como os dados quantitativos são coletados, como as doenças são categorizadas e modeladas, como os grupamentos humanos são classificados e representados e como as histórias de doenças são narradas. Cada uma dessas atividades tem sua própria história.

Em março de 2020, em um momento de grandes desafios causados pelo Covid-19, a Memória da Eletricidade lançou #MemóriaDaPandemia, uma série de lives nos seus canais oficiais no Instagram, Facebook e YouTube. O projeto atende à demanda por informações seguras e debates qualificados nas áreas de Saúde, Arte & Cultura e Gestão & Liderança. Com curadoria e apresentação do professor Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Os episódios de #MemóriaDaPandemia são transmitidos todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 10h.

Como historiadores da ciência e da medicina há muito apontam, mesmo as metodologias mais básicas que sustentam a pesquisa científica – observação, confiança nos números, uso de modelos e até o próprio método experimental – têm uma história. Eles não devem ser tomados como dados, mas entendidos como processos, ou mesmo estratégias, que foram negociados, argumentados a favor e contra e desenvolvidos dentro de contextos históricos e esquemas explicativos particulares. Saber a história de algo - seja de números, narrativas ou doenças - nos permite ver uma gama mais ampla de trajetórias à nossa disposição. Essas histórias variadas também nos lembram que estamos atualmente em meio a um drama caótico de incertezas, dentro de nossa própria narrativa instável e em desenvolvimento. Uma abordagem óbvia é aproveitar nosso conhecimento da história das epidemias e proclamar as lições da história. Mas a história oferece lições claras? Para tornar sua experiência relevante, alguns historiadores afirmam que existem padrões duradouros em como as sociedades respondem a todas as epidemias que podem informar nossas experiências hoje. Para Marialva Barbosa, historiadora e primeira entrevistada de nossas lives sobre a Covid-19, pandemias como a de Influenza de 1918 e de Covid-19 (2020-21) são reveladoras da manutenção duradoura e persistentes de desigualdades sociais profundas no Brasil e a necessidade de maior vontade política na garantia de acesso à saúde pública universal e de qualidade. O maior número de mortes coincide com as populações mais pobres, lá e aqui, replicando desigualdades.

Outros historiadores, como Gabriel Lopes, argumentam que existem analogias de epidemias passadas com a nossa crise atual, a partir das relações entre o aumento da degradação ambiental, da exploração dos territórios, do desmatamento, da maior interação com animais silvestres.

Mais fundamentalmente, a categoria e a definição de uma epidemia moldam quais doenças se qualificam para inclusão e também como são registradas nos relatos históricos. Afinal, o oposto de uma epidemia não é a falta de doença, mas a doença endêmica, isto é, distribuições de doenças consideradas típicas e domésticas (como a dengue se tornou no Brasil). Nesse caso, ao longo do tempo, tais doenças passaram a ser mais aceitáveis, menos disruptivas, cíclicas e esperadas. Foi-se aprendendo a lidar ou conviver com elas. Em contraste, as epidemias e pandemias são dramáticas. Elas parecem ser repentinas e muitas vezes parecem vir de fora. Rompem com a ordem, desorganizam hábitos e rotinas, provocam mortes e sofrimentos agudos, ansiedades e incertezas. Não há uma definição ou medição definida de quando a doença endêmica se torna epidêmica ou de quando a epidêmica pode se tornar endêmica. Em poucas palavras, uma epidemia é uma doença que se tornou um problema social amplo e até global, quando se trata de uma pandemia.

Excessivo x tolerável

A mudança da categoria de doenças epidêmicas depende da definição conceitual de excesso ou de tolerável — doença excessiva ou mortalidade excessiva, situação tolerável ou intolerável. Portanto, é definida por meio da comparação com o que é moderado. Assim, epidemias inaceitáveis ​​só podem ser entendidas em relação a doenças endêmicas aceitáveis. Não se pode ter uma epidemia sem um sistema de organização que categoriza — às vezes explicitamente e muitas vezes implicitamente — o que conta como doença e a que lugar pertence: seja em certos países, corpos, idades ou mesmo períodos históricos.

As pandemias representam crises de ordem social, em que os patógenos são deslocados de onde pertencem para onde a princípio não pertenceriam, e os estados de saúde são desordenados de onde deveriam estar ou de onde se é esperado que estivessem. Eles correm o risco de derrubar uma aceitação coletiva muitas vezes frágil do sistema de classificação dominante e, ao fazer isso, geram incerteza, medo e conflito. As tentativas de retificar a crise, invariavelmente, expõem as linhas classificatórias dentro de uma sociedade — frequentemente ampliando as diferenças em categorias como idade, classe, etnia, gênero, raça e sexualidade — e oferecem possibilidades para se pensar sobre sistemas de valores explícitos e implícitos de cada uma das sociedades.

As respostas às doenças destacam precisamente essas disputas entre tradições comunais, autonomia individual, responsabilidade coletiva e autoridade do Estado. Muitas vezes é durante epidemias ou no manejo de doenças endêmicas que a autoridade política é negociada, desenvolvida, exercida e revelada. A saúde pública — ela mesma confiando no conceito de uma população saudável e produtiva — portanto, tem uma história que remonta ao ponto em que a ação coletiva contra a doença pode ser rastreada. Mas essa história não tem trajetória definida. Por outro lado, da mesma forma, algumas respostas atuais à pandemia de Covid-19 estão em conformidade com os modelos de prevenção e controle muito antigos. Estratégias como quarentena e isolamento social remontam à Idade Média. Funcionavam para a separação de pessoas acometidas pela hanseníase (nos chamados leprosários), para evitar o contágio, mas também durante a pandemia que se chamou de “Peste Negra”: a peste bubónica. Certamente, outras pandemias desafiam as previsões históricas sobre a natureza do poder político moderno de maneiras surpreendentes.

O que sustenta tais intervenções políticas, até hoje, é o conceito de população. A noção de população é fundamental para o mantra recorrentemente repedido durante a crise deflagrada pela Covid-19: “achatar a curva”, um produto da modelagem de doenças e da epidemiologia estatística, mas que também tem uma história. Emergindo das ambições burocráticas dos estados europeus do século XVII, o conceito de população transforma os indivíduos em uma entidade abstrata e equivalente — comparável e calculável. De acordo com a lógica da população, a força nacional era medida por meio de números totais coletados centralmente: nascimentos, mortes, migração e outros fenômenos demográficos. Tal abordagem permite — e incentiva — a vigilância, a análise e a gestão coletivas. Permite ainda definir grupos de risco, mais propícios a adoecerem e contaminarem outras pessoas. Nesse contexto, a doença é retratada como uma distribuição de casos em uma população circunscrita no tempo ou no espaço; é resumido em estatísticas, representado por casos, probabilidades, riscos e, acima de tudo, por números. Os números de casos confirmados e de mortes nos noticiários, atualizados em tempo real, tornaram-se onipresentes nos relatórios sobre a pandemia. Esses números são transmitidos como parte do noticiário da televisão 24 horas por dia e citados para medir o fracasso ou o sucesso de políticas nacionais de proteção da população. São, muitas vezes, tomados como índices da governança. 

Confira abaixo a programação desta semana de lives da #MemóriaDaPandemia no Instagram oficial da Memória da Eletricidade @amemoriaoficial:

Quarta-feira (10/3), às 10h — "Vacinas para a Covid-19". Igor Sacramento conversa com Eduardo Jorge Fonseca, médico e membro do Comitê de Imunização da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Sexta-feira (12/3) às 10h — "Informação e Comunicação na Prevenção à Covid-19". Igor Sacramento conversa com Valéria Mendonça, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília.

Igor Sacramento

Igor Sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. Na UFRJ, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação. Na Fiocruz, além de editor científico da Revista de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, é professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde. Na Memória, colabora com as lives "Memórias da Pandemia".