A Light e os temporais na Serra do Mar

Postado em 06/03/2023
Paulo Brandi

Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), iniciou carreira profissional no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É pesquisador da Memória da Eletricidade desde 1987, onde coordenou diversos trabalhos publicados pela instituição, entre os quais, "Eletrificação rural no Brasil: uma visão histórica".

Compartilhar

Nos dias 18 e 19 de fevereiro do fim de semana do carnaval de 2023, fortes chuvas atingiram o litoral norte de São Paulo, causando inundações e deslizamentos de encostas, com consequências trágicas no município de São Sebastião, situado no sopé da Serra do Mar, a cerca de 200 km da capital paulista. Mais de sessenta pessoas morreram e centenas de famílias ficaram desabrigadas em decorrência da enxurrada.

Foi um evento absolutamente extremo e histórico, segundo o climatologista Carlos Nobre, um dos criadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Com efeito, o volume de chuva no fim de semana em São Sebastião foi um dos maiores já registrados no país. Nas palavras de Nobre, “um fenômeno meteorológico raro que infelizmente, devido ao aquecimento global, se torna muito mais comum em todo o mundo”.

A catástrofe em São Sebastião acionou a lembrança de grandes desastres provocados por tempestades na Serra do Mar, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Uma das maiores tragédias desse tipo no país ocorreu em janeiro de 1967, quando chuvas torrenciais desabaram sobre a cidade do Rio de Janeiro e a região do Complexo de Ribeirão das Lajes, onde foram instaladas usinas da Light. O temporal inundou e paralisou a usina subterrânea de Nilo Peçanha, afetando seriamente o suprimento de eletricidade ao Rio de Janeiro, na época dependente em ampla medida da energia da Light.

As empresas do grupo Light atuavam no eixo Rio-São Paulo desde o início do século, respondendo pelo suprimento e distribuição de eletricidade às duas maiores cidades brasileiras. Em 1940, o parque gerador da Light somava 580 megawatts (MW) de capacidade instalada, equivalentes a pouco mais da metade do total nacional. Entre as principais usinas, destacavam-se as hidrelétricas de Fontes (RJ) e Cubatão (SP).

Fontes foi a primeira usina do Complexo de Ribeirão das Lajes, um conjunto de reservatórios e hidrelétricas que utilizam águas dos rios Piraí e Paraíba do Sul. Situada no município de Piraí, a usina de Fontes atingiu a capacidade de 24 megawatts (MW) em 1909, destacando-se então como uma das maiores do mundo. A usina de Cubatão, localizada no município de mesmo nome entre São Paulo e Santos, foi inaugurada em 1926 juntamente com um sofisticado sistema de barragens e reservatórios para aproveitamento das águas da bacia do rio Tietê e do grande desnível da vertente oceânica da Serra do Mar.

Após a Segunda Guerra Mundial, a Light iniciou as obras das usinas de Cubatão II e Nilo Peçanha com objetivo de atender ao extraordinário aumento de demanda de energia das duas maiores cidades brasileiras. Em 1947, chuvas intensas na Serra de Cubatão causaram o escorregamento de um talude, colocando em risco o trabalho de ampliação da usina da Light. O engenheiro austríaco Karl Terzaghi, considerado o pai da Mecânica de Solos, veio ao Brasil a convite da empresa para dar solução ao caso. Na época, problemas semelhantes de escorregamento de terra ocorreram durante a construção da Via Anchieta entre São Paulo e Santos.

Levantamentos geológicos indicaram que a instalação de usina subterrânea nas proximidades da já existente era mais vantajosa, pois dispensaria gastos com drenagem, proteção e serviços de segurança contra eventuais desmoronamentos de encostas. A hidrelétrica foi inaugurada em 1956, completando sua capacidade cinco anos depois. As usinas de Cubatão I e II foram oficialmente denominadas Henry Borden I e II.

A usina de Nilo Peçanha foi instalada em Barra do Piraí (RJ), no interior de um maciço rochoso ao pé da Serra das Araras, como é conhecido o trecho da Serra do Mar situado entre os municípios de Piraí e Paracambi. Inaugurada em 1953, em meio a uma grave crise de racionamento no Rio de Janeiro, a hidrelétrica foi concebida junto com um engenhoso sistema de transposição de águas do rio Paraíba do Sul, agregando 390 megawatts ao Complexo de Ribeirão das Lajes.

1967: chuvas paralisam usinas e causam racionamento no Rio de Janeiro

Na madrugada de 23 de janeiro de 1967, fortes chuvas desabaram na região da Serra das Araras, provocando o desmoronamento de extensas massas de terra, a inundação e a paralisação das usinas da Light no Complexo de Lajes. Rios de lama desceram a serra, arrastando ônibus, caminhões e carros na rodovia Presidente Dutra. Além de municípios de Itaguaí, Piraí e Paracambi, o temporal atingiu duramente a cidade do Rio de Janeiro, deixando um rastro de destruição em favelas e em diversos bairros. Já no dia 18 março, chuvas intensas devastaram a cidade litorânea de Caraguatatuba (SP), vizinha a São Sebastião. Centenas de pessoas morreram nos dois desastres climáticos daquele ano.

No Complexo de Lajes, as usinas de Nilo Peçanha e Fontes foram paralisadas. Blocos de pedra de até 20 toneladas, troncos de árvores, lama e areia entupiram os canais de descarga das águas que movimentam as turbinas das duas hidrelétricas. A usina de Nilo Peçanha ficou completamente inundada. Cinco funcionários decidiram, de forma heroica, desligar as chaves e fechar as válvulas antes de deixarem a usina, e por pouco não morreram afogados na casa de força subterrânea. Tiveram de escapar pelo túnel de ventilação, no escuro, subindo sessenta metros de montanha, já que o túnel de acesso se transformara numa cachoeira, com detritos de todo tipo.

Com a paralisação das usinas de Nilo Peçanha e Fontes, o fornecimento de energia elétrica pela Rio Light ficou reduzido a 40% da demanda da área de concessão da empresa. Durante os primeiros dias depois da catástrofe, o suprimento ficou por conta das usinas de Fontes Velha e Ilha dos Pombos, situada no município de Carmo, e da linha de interligação com a usina de Cubatão. Uma situação alarmante que redundou no racionamento para toda a área de concessão da Light. Na época, o Rio de Janeiro ainda utilizava energia em 50 Hz e, por conseguinte, não estava em condições de receber a energia das usinas de Furnas e do estado de São Paulo, gerada em 60 Hz.

Os trabalhos de recuperação da usina de Nilo Peçanha demoraram quase cinco meses. Após a retirada da água e do entulho de lama, pedras e árvores em suas instalações, as unidades geradoras foram totalmente desmontadas para secagem e meticulosa limpeza. Segundo a Light, mais de mil engenheiros, técnicos e operários especializados trabalharam nessa empreitada. Em abril, a usina voltou a operar com duas unidades geradoras. O racionamento persistiu até o mês de junho, quando as outras unidades da hidrelétrica foram acionadas.

Referências:

CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Notas sobre racionamento de energia elétrica no Brasil (1940-1980). Rio de Janeiro, 1996.

_____ . Panorama do setor de energia elétrica no Brasil=Panorama of electric power sector in Brazil. 2ª. ed. Rio de Janeiro, 2006.

ENERGIA elétrica: pioneirismo e desenvolvimento na região Rio-São Paulo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1965.

LIGHT: um século de muita energia: 1905-2005. Coordenação: Ligia Maria Martins Cabral. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2005.

LIGHT SERVIÇOS DE ELETRICIDADE. Lajes: 20 anos da epopeia. [Rio de Janeiro]: [Light], [1987].

VARGAS, Milton. Dupla transferência: o caso da Mecânica de Solos. Revista USP, São Paulo, n. 7, p. 3-12, setembro/novembro 1990.

____ . A Baixada Santista: suas bases físicas. Revista USP, São Paulo, n. 41, p. 18-27, março/maio 1999.

____ . Usinas hidroelétricas, linhas de transmissão. In: 500 anos de engenharia no Brasil. (Org) José Carlos T. B. Moraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005.

Paulo Brandi

Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), iniciou carreira profissional no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É pesquisador da Memória da Eletricidade desde 1987, onde coordenou diversos trabalhos publicados pela instituição, entre os quais, "Eletrificação rural no Brasil: uma visão histórica".