Arte e cultura hoje
As seis lives finais da terceira temporada do projeto Semana de 22, mapearam o chamado “estado-da-arte” das manifestações artísticas brasileiras a cem anos da Semana realizada em fevereiro de 1922. Um a um, os grandes temas do debate cultural brasileiro foram expostos e esmiuçados, por meio de lives com eméritos e agudos especialistas.
Os desafios da e-cultura
Assim, o panorama e os desafios da e-cultura e os dilemas essenciais da vida digital foram abordados por dois dos mais destacados pesquisadores desta área. No dia 17 de outubro, Teixeira Coelho mostrou o descompasso estrutural da educação brasileira neste momento, que ainda gira em torno da cultura letrada quando deveria fazer da cultura digital o seu foco fundamental para a formação das novas gerações que agora começam a frequentar os bancos escolares, no reinício das aulas presenciais.
Aos 77 anos, Coelho é um dos mais profundos conhecedores da e-cultura que nos cerca as 24 horas de cada dia. Comandou, como curador-chefe, o MASP e o MAC-USP. Especializou-se em política cultural e é colaborador da Cátedra Unesco de Política Cultural da Universidad de Girona, Espanha. Desde 2008, coordena o curso de especialização em gestão e política cultural do Observatório Itaú Cultural em colaboração com a Universidade de Girona.
Seu diagnóstico não é otimista. Recorre ao mito da caverna enunciado pelo filósofo grego Platão, segundo o qual as pessoas vivem no fundo de uma caverna (o reino da doxa, ou opinião), e só veem o simulacro da realidade lá fora, esta sim o domínio do conhecimento do bem, belo e da verdade. As palavras de Teixeira são duras:
– Estamos perto de um tempo em que as pessoas só morrerão se quiserem, pois terão recursos se puderem pagar por uma juventude e vida eternas. O ser humano urbanizado parece querer sempre criar uma bolha protetora ao seu redor, afastando o outro, o estranho, o intruso tanto quanto possível. A vida humana sempre foi um equilíbrio instável entre o paraíso e o inferno e cada nova etapa coloca-a outra vez mais perto daquele e deste, ao mesmo tempo.
Somos produtos mais do que usuários no mundo digital
A artista e professora livre-docente da FAU-USP Giselle Beiguelman promove intervenções artísticas no espaço público e com mídias digitais. Entre seus projetos, destacam-se: "Memória da amnésia" (2015), "Odiolândia" (2017), "Monumento nenhum" (2019) e "Nhonhô" (2020). É membro do Laboratório interdisciplinar Image Knowledge da Universidade Humboldt de Berlim. Coordena o GAIA – Grupo de Arte e Inteligência Artificial do INOVA-USP. Tem obras em acervos de museus na Inglaterra, Alemanha e Israel. além dos principais museus brasileiros, como a Pinacoteca de São Paulo e o Museu de Arte Contemporânea da USP e no MAM carioca. Tem muitos livros publicados. Os mais recentes são “Memória da amnésia: Políticas do esquecimento” (2019, Edições Sesc) e “Coronavida: Pandemia, cidade e cultura urbana” (2020, Editora Escola da Cidade) sobre os impactos da pandemia na cultura visual e urbana, como a supressão do espaço público, os novos formatos de ativismo, a proliferação de imagens, a vigilância molecular do novo normal, a precarização das relações sociais e o trabalho remoto.
Na Live de 21 de outubro, a nossa conversa partiu de seu livro “Políticas da Imagem – Vigilância e Resistência na Dadosfera”, lançado em outubro de 2021 pela Editora UBU. Seus seis ensaios são impactantes. Ela mapeia a radical transformação do mundo das imagens em que vivemos: selfies, memes, aplicativos de manipulação de imagens, deepfakes, internet das coisas, inteligência artificial.
Beiguelman discute o estatuto da imagem no mundo contemporâneo e sua conexão com um novo regime de vigilância, não mais instituído pelo Estado, mas resultado da captação sistemática de dados pessoais por plataformas de mídias sociais.
– Somos rastreáveis pelo que compartilhamos. É isso que o mercado chama de ‘profilagem’ – explicou, para, em seguida mostrar como a cultura do compartilhamento nas redes sociais se cruza com a cultura da vigilância. – Vivemos em constante vigilanciamento ou compartilhância, termos que caracterizam o estado em que nos encontramos.
Como resistir a isso e não se conformar em ser mero produto das grandes emrpesas digitais que dominam o planeta? Ela lembra uma iniciativa que nasceu como intenção artística mas é na verdade um aplicativo: “Ben Grosser criou o Go Rando em 2017, uma extensão do Chrome que embaralha os dados do usuário e impede a profilagem correta”.
A vanguarda e o racismo estrutural
Duas das lives da terceira temporada do projeto Semana de 22 enfocaram a música em aspectos bastante diferenciados, mas complementares entre si. De um lado, um dos cantores-compositores mais radicais da cena brasileira nas últimas quatro décadas, Arrigo Barnabé. Ele botou pimenta no seu genial caldeirão criativo, misturando Stravinsky com Lupicínio Rodrigues, navegando com inteligência entre gêneros musicais que se pensava serem estanques. Arrigo explodiu cercas, acabou com a divisão entre popular e erudito. E por isso é um dos nomes-chaves não só da vanguarda paulista dos anos 1980 – uma década explosiva que abriu, naquele ano, com sua obra-prima “Clara Crocodilo”, na qual Arrigo mistura a narrativa dos gibis à crônica policial radiofônica à Gil Gomes, e num universo reificado, povoado pelo kitsch – bala de conhaque, Maverick, drinques, drive-in, balcão de fórmica vermelha, lábios de carmim, calcinha de pele de leopardo – cria uma atmosfera tensa, de humor corrosivo, beirando o horror. São palavras recorrentes para definir o mundo muito original de Arrigo. A saída deste labirinto não está no passado, está no futuro, um futuro inesperado, misterioso e, quem sabe, redentor.
O racismo estrutural
A conversa com a cantora Fabiana Cozza acabou se transformando numa conversa essencial sobre o racismo estrutural no Brasil, assim como da afirmação da cultura negra, que não pode ser vista como mero insumo da música brasileira, mas como uma linguagem musical autônoma, riquíssima, original, que convive com outras formas na música do país há séculos.
Afinal, o Brasil foi o maior país escravocrata das Américas. Durante séculos, “importou” quase 5 milhões de negros africanos. E foi o último dos países do continente a abolir a escravatura. Fabiana, 45 anos, filha do cantor Osvaldo dos Santos, frequentou desde criança, com o pai, as quadras de escola de samba em São Paulo.
Tem uma carreira absolutamente consistente e sólida, impondo-se atualmente como uma de nossas grandes cantoras, em sentido absoluto. Pois em 2018 ela foi vítima de uma manifestação inesperada de racismo ruminada em alguns movimentos negros. Por isso, renunciou ao papel em que representaria Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – Um sorriso negro – O musical”, em homenagem à Dama do Samba. Motivo: protestos acerca da cor de sua pele, mais clara que a de Ivone Lara. Os argumentos se deram acerca das poucas oportunidades que as atrizes de pele mais escura têm de protagonizar um espetáculo.
Em artigo publicado com repercussão na página de Opinião do jornal “O Dia”, o historiador Ricardo Cravo Albin escreveu o seguinte acerca dos protestos: "Uma censura ainda mais cruel por atacar a própria grei, os artistas, os fazedores de beleza e de arte. E digo isso com a isenção de ter lutado em Brasília anos e anos contra a truculência censória às diversões públicas. Concluo minha perplexidade clamando pela volta à cena de Fabiana e de sua dignidade. Pelo respeito a Dona Ivone Lara. E pelo silêncio, sim, um silêncio obsequioso, de vozes tão inconsequentes".
Fabiana gravou com a própria Dona Ivone Lara, e foi esta quem a ungiu como intérprete do musical que originou estes tristes acontecimentos. A cantora, porém, não se abateu. Prossegue em sua carreira de modo firme. E acrescenta ao palco seu doutoramento em cultura negra na Unicamp.
Fabiana construiu na live um relato ao mesmo tempo emocionado e muito racional e consequente sobre a música nega e de como ela deve ser vista sempre como uma cultura antônoma, não mero insumo da chamada MPB branca.
As duas últimas lives da terceira temporada do Projeto Semana de 22 constituíram o clímax de um longo, belo e emocionado trajeto de mapeamento da arte e da cultura brasileira desde fevereiro de 1922, quando aconteceu a emblemática Semana de 22, até hoje, às vésperas do centenário.
A força dos 'Inumeráveis': Bráulio Bessa, Chico César e Gil Jardim
A live de 11de novembro transformou-se num iluminado webinar, do qual participaram os três personagens-chaves de um dos projetos audiovisuais mais impactantes do Brasil na pandemia. Fiz questão de seguir um roteiro cronológico dos “Inumeráveis” na live.
Tudo começou com o poeta-rapadura Bráulio Bessa, 36 anos, nacionalmente conhecido por participar durante meses do programa matutino de Fátima Bernardes da Rede Globo. A superexposição pública do poeta cordelista transformou-o em fenômeno de vendas de seus livros de poesia. Contou que, ao ver um site em Fortaleza chamado Inumeráveis, comoveu-se porque ele dava rosto e informações sobre cada uma das vítimas da covid (naquela altura, ano passado, perto de cem mil). Escreveu o poema impactado. Em 24 horas, o cantor-compositor pernambucano Chico César, radicado em São Paulo, e que não conhecia Bráulio, entrou em contato com ele pedindo autorização para pôr música no poema.
O terceiro e virtuoso ato iniciou-se quando o maestro Gil Jardim, da Orquestra de Câmara da ECA-USP, ouviu Chico César na canção. E decidiu convocar Bráulio e Chico para um projeto envolvendo vídeo. Gil acabou compondo uma suíte em que cabem uma orquestra inteira e coral, com direito a citações de Villa-Lobos. Nenhum rosto aparece, apenas os dos mortos na Covid. Tudo isso tornou ainda mais impactante a mensagem do site cearense: os hoje mais de 610 mil mortos não são números, são pessoas, gente de carne e osso, com família, amigos, nossos semelhantes. Um documento impactante que pratica princípios democráticos por excelência, como a solidariedade, ouvir o outro, restituir-nos nossa humanidade.
Os depoimentos são comoventes. Bráulio leu uma de suas poesias mais famosas, “Arte que transforma”, no final. E Chico César acentuou que a arte não precisa necessariamente ser panfletária. Ela pode sim ter qualidade de invenção. Quando isso acontece, estamos no melhor dos mundos.
Música inteligente não precisa ser elitista – ou impopular
Aos 83 anos, o maestro Júlio Medaglia, nascido no bairro paulistano da Lapa e cidadão musical do mundo, continua ativíssimo nos domínios do que chama de “música inteligente”. Ou “música impopular”, título de um de seus livros mais vendidos. Na live de 18 de novembro, a conversa iniciou-se com seu recém-lançado livro “Atrás da Pauta – Histórias de Música Brasileira”, coletânea de 170 de suas mais de 280 colunas mensais num arco de 25 anos para a revista “Concerto”.
O maestro vai sempre direto ao ponto. Não faz rodeios. Música inteligente não é necessariamente música impopular. Debussy? "Música sem sabor de chucrute.” Gospel? “Uma dor festiva.” Zuza Homem de Mello, que nos deixou há pouco e foi tão importante para a música brasileira? “O ouvido clínico da MPB.” Bach & Steve Jobs? “O eterno e o descartável."
Na conversa, emergiu sua característica mais marcante: a diversidade. Ele foi um dos personagens da turma da música nova, ao lado de Willy Correa de Oliveira e Gilberto Mendes, nos anos 1960, que se aproximaram dos irmãos Campos e Décio Pignatari, poetas concretistas. Concebeu a “oralização” dos poemas concretistas. Um “casamento” que se esparramou pela MPB em 1967, quando Augusto de Campos tornou-se guru de Caetano. Disso resultou um dos álbuns mais emblemáticos da música brasileira, em sentido absoluto, “Tropicália – Panis et Circenses”. Medaglia fez o arranjo icônico do movimento para a canção “Tropicália”, de Caetano: uma fusão inusitada de sinfônica com percussão, sons eletrônicos, apitos e até uma gravação debochada de trecho da carta de Pero Vaz Caminha. Daí às cerca de cem trilhas sonoras para a Globo foi um salto natural (sua trilha para “Grande Sertão: Veredas”, de 1985, é obra-prima).
Maestro está escrevendo suas memórias
Sua trajetória dita “erudita” renderia um livro suculento – aliás, ele revela que está escrevendo suas memórias, contando timtim por timtim os encontros com Boulez, Stockhausen, as aulas com o maestro Sir John Barbirolli (seu ídolo confesso na regência) e também Cartola, igualmente seu ídolo eterno, como demonstra esta resposta à pergunta “O que vale a pena na música popular brasileira de hoje?
– Na primeira metade do século XX, a melhor música popular brasileira fez parte essencial da programação dos meios de massa do Brasil. A partir dos anos 70, porém, o rádio e a TV abandonaram o que chamo de "música inteligente", optando por uma superficialidade medíocre, facilmente consumível e rapidamente descartável.
Medaglia reconhece que existe excelente música popular no Brasil de hoje, mas esclarece:
– Ela só pode ser ouvida em circuitos alternativos, do tipo shows do Sesc, em pequenos teatros ou casas noturnas. Enquanto isso, estamos submersos num mar de música dita sertaneja, que nada mais é que um bolerão brega de bordel de cais do porto de quinta categoria ou de um falso pagode que não vale uma pausa de uma música do Cartola.
De volta à música de concerto, ele fala com orgulho de seu programa de calouros “Prelúdio”, no ar pela TV Cultura desde 2005.
– O que há de maravilhoso no Brasil de hoje é a imensa geração de novos músicos que estudam música de concerto. Tenho a oportunidade de exibi-los através do ‘Prelúdio’, onde se candidatam mais de 150 jovens músicos por ano para tocarem, com sinfônica regida por mim, complicados concertos e se candidatarem para estudo superior na Academia Franz Liszt de Budapeste – contou.
Sobre a série Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro
A série de lives "Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro" tem por objetivo construir, às vésperas da celebração do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, um amplo, diversificado e profundo painel da arte e da cultura brasileira. Com curadoria e apresentação do jornalista e crítico musical João Marcos Coelho, os bate-papos são transmitidos pela página da Memória da Eletricidade no Youtube, sempre às quintas-feiras, às 18h.
"Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro" estreou no dia 18 de março de 2021. Os programas passados podem ser vistos na página da Memória da Eletricidade no Youtube.