Por que a música das ruas não esteve na Semana de 22

24/03/2021


Definitivamente, o paulistano Livio Tragtenberg, 55 anos, não obedece ao figurino convencional do compositor. Olhos e sobretudo ouvidos antenadíssimos às músicas que tecem o caleidoscópio sonoro do mundo, trabalha com os músicos como se eles fossem instrumentos musicais. São os músicos e músicas que compõem, como ele gosta de dizer, os nervos sonoros subcutâneos da metrópole. Música invisível para a cultura oficial. Música essencial na cidade. Foi com esta ideia que ele criou em 2004 a Orquestra dos Músicos de Rua de São Paulo, experiência replicada no Rio de Janeiro, Frankfurt e várias outras cidades europeias.

Foi esta música a grande ausente da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em fevereiro daquele ano no Teatro Municipal de Sâo Paulo. Livio lançou em 2020 o livro “O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22” (pdf disponível gratuitamente no portal do Arquivo do Estado de São Paulo e a versão física por R$ 39,90 em freenote.com.br). 

Em pouco mais de uma hora, Lívio desconstruiu a imagem de “ruptura” com o passado fortemente ligada à ideia que temos da Semana de 22.

– A Semana foi uma confluência de interesses. Na verdade, ela começou em 1917, com a critica feroz de Monteiro Lobato à pintura de Anita Malfatti. Havia de um lado uma burguesia ascendente buscando legitimidade cultural, que só mirava na Capital Federal – explica. – Em torno dela, encontrou alguns de seus filhos que estavam se informando sobre a modernidade. O grupo de artistas era muito heterogêneo, de Mário de Andrade a Graça Aranha, passando por Oswald. Não eram exatamente deslumbrados, mas viam na Semana uma oportunidade de exposição pública, citadina, de vivências ou no exterior ou em ciclos restritos dos saraus da elite. Graça Aranha tinha também suas pretensões pessoais, daí sua palestra na abertura da Semana. Ele também criou a ponte com o Rio de Janeiro.

Villa-Lobos, um estranho no ninho:

Por isso, Villa-Lobos surgiu na Semana como “um estranho no ninho”, diz Lívio:

– A capital paulistana era ainda um reflexo do interior rural, com ingredientes de imigrantes paupérrimos em sua maioria. As ideias de ruptura ou modernidade, como nós as conhecemos historicamente, eram ainda totalmente estranhas a São Paulo de Piratininga. Não havia nada próximo à renovação que Villa-Lobos já promovia no Rio. Mário de Andrade deve muito a ele, tanto que o convidou a trabalhar no Departamento de Cultura que iria fundar num período posterior à Semana. Uma vida musical periférica, totalmente pautada pela música francesa e italiana do século XIX.

O desnível era flagrante. Era inegável a força da música popular no Rio de Janeiro de 1922. Em São Paulo a tônica era outra:

– O recalque, pelas elites paulistanas, das músicas das ruas, como a música caipira de Cornélio Pires, as miscigenações naturalmente provocadas pela convivência de imigrantes japoneses, africanos, portugueses e italianos, entre outros. Eram manifestações muito ricas – disse Lívio. – Mas as elites culturais paulistanas só tinham olhos para o que vinha da Europa e, paradoxalmente, como se viu posteriormente, caíram nos braços perigosos do nacionalismo.

Mais detalhes desta conversa riquíssima (Lívio estudou a fundo a música popular no Rio e em Sâo Paulo nas décadas de 1910 e 1920 para embasar sua postura) você terá assistindo a esta live, disponível no canal da Memória da Eletricidade no Youtube.

Na próxima quinta-feira, 25 de março, a musicóloga Flávia Toni (IEB-USP), que acaba de lançar pela Edusp a edição crítica do “Ensaio sobre a música brasileira”, de Mário de Andrade, conversa sobre o lugar da música popular na obra do modernista.

Programação

Confira a programação completa da primeira temporada da série de lives "Semana de Arte Moderna de 1922: Passado, Presente e Futuro". Os episódios são transmitidos sempre às quintas-feiras, às 18h, no canal da Memória de Eletricidade no Youtube.

Tudo que você precisa saber sobre a semana de 22

Março:

25/3 – Mário de Andrade e a música popular – Com Flávia Toni, diretora do IEB-USP, Instituto de Estudos Brasileiros e pesquisadora da obra de Mário, com vários livros publicados, o mais recente em 2020, a edição crítica do “Ensaio sobre a música brasileira” (Edusp). 

Abril:

1/4 – Polêmica, antropofagia e criatividade – Um sobrevoo pelo mundo do escritor mais amado e odiado, criativo e polêmico, que teve a vida mais modernista entre todos os modernistas da Semana de 1922, na feliz expressão do jornalista Renato Pompeu, por sua biógrafa Maria Augusta Fonseca, professora de teoria literária da USP (Editora Globo, 2007). 

8/4 – Frutos do exílio carioca na estética de Mário de Andrade – A estética e o “exílio” de Mário de Andrade no Rio de Janeiro, entre 1938 e 1941, com o professor Eduardo Jardim, de Filosofia na PUC-RJ e autor de “Mário de Andrade, a morte do poeta” (2005) e da biografia “Mário – Eu Sou Trezentos” (2015), entre outros livros sobre o modernismo brasileiro.

15/4 – Os intelectuais na década de 1920 – Com Milton Lahuerta, professor da UNESP-Araraquara(SP), autor de “A década de 20 e as origens do Brasil moderno” (Ed. Unesp). 

29/4 – Está tudo nas cartas – Mário de Andrade foi o maior missivista do Brasil no século XX. Escreveu cartas prodigiosamente, fez delas seu jeito de conversar com os amigos mas também com todos os que o procuraram. Com Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e autor de “Orgulho de jamais aconselhar – a epistolografia de Mário de Andrade” (Edusp, 2007).   

Maio:

6/5 – O grande esquecido – Sérgio Milliet – Com o historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da USP e Mackenzie, que prepara um livro sobre Milliet.  

13/5 – A força da poesia modernista – Com Manuel da Costa Pinto, jornalista, crítico literário e curador do Prêmio Oceanos.

20/5 – A Semana e as vanguardas latino-americanas na década de 1920 – Viviana Gelado, professora de literatura latino-americana na Universidade Federal Fluminense (UFF), autora de "Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura popular nos anos 20 na América Latina".

27/5 – Revolução nas Artes Plásticas: Anita Malfatti, Tarsila e a Semana de 22 – Com Francisco Alambert, professor de História da Arte e Cultura Contemporânea, História (USP) professor de História da Arte e Cultura Contemporânea, História (USP) e autor de "A Semana de 22 - A aventura modernista no Brasil".