Vozes que iluminam o passado: a História Oral na construção da memória do setor elétrico

Em 39 anos de Memória da Eletricidade, já são 19 projetos com uso do método, reunindo quase 300 entrevistados
03/11/2025

Altino Ventura Filho, ex-presidente da Eletrobras, durante depoimento para o Programa de História Oral da Memória da Eletricidade. Foto: Arthur Baptista / Acervo Memória da Eletricidade

A tradição oral é praticada desde os primórdios da humanidade. Milhares de anos antes da escrita existir, povos já se comunicavam por meio da fala, transmitindo aprendizados, saberes, crenças, mitos e até ritos de geração em geração. Os griots, contadores de história da África Antiga, por exemplo, ajudaram a preservar a cultura do continente e a memória dos antepassados por meio da oralidade. Já Heródoto, conhecido como o pai da História, recorreu, principalmente, à observação direta e a depoimentos para elaborar a obra sobre a invasão persa da Grécia. Em ambos os casos, os relatos formaram uma ponte entre as vivências e os registros.  

A memória forma identidade, tanto pessoal quanto coletiva, preserva a cultura, e, ao traçar os passos do passado, se consolida como legado para o presente e o futuro. A História como disciplina começou a se consolidar a partir do século XVI, com a preocupação da Europa de considerar somente fatos e textos como autênticos após verificações, e, desde então, os documentos escritos são fundamentais na prática do historiador. A partir disso, já nos anos 1950, a História Oral surge como uma das formas de produção destes registros.  

Baseado em entrevistas, o método de pesquisa busca conhecer e aprofundar aspectos sobre determinada realidade, sejam padrões culturais, estruturas sociais, processos históricos e até laços do cotidiano. Resgata informações guardadas nas lembranças do depoente que ajudam a compreender contextos específicos e até a abrir novas perspectivas sobre determinados acontecimentos. 

Durante as décadas de 1980 e 1990, empresas ao redor do mundo, principalmente de ramos estratégicos, buscavam por reconhecimento histórico, maior organização institucional e fortalecimento de identidades corporativas. É nesse contexto que a Memória da Eletricidade surge, criada pelas empresas do setor elétrico brasileiro em 1986 com objetivo de preservar e divulgar a trajetória do ramo. 

O Programa de História Oral tem praticamente o mesmo tempo de vida da própria instituição. Em 39 anos de Memória da Eletricidade, foram realizados 19 projetos com uso do método, reunindo quase 300 entrevistados. Alguns, o utilizando como fator principal da pesquisa, outros como complemento. Ao longo do tempo, com o desenvolvimento tecnológico, as formas de gravar e armazenar os materiais evoluíram, da fita cassete aos DVDs e, mais recentemente, aos vídeos em alta resolução. 

Nesse contexto, o primeiro projeto da entidade teve como objetivo investigar e consolidar informações sobre o período de antes da criação da Eletrobras, entre 1954, ano em que o projeto de desenvolvimento da empresa foi encaminhado ao Congresso, e 1962, ano de sua instalação. A iniciativa tomou forma em 1986, meses antes da formação da Memória da Eletricidade, a partir de um convênio entre a holding e o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), instituição ligada à Fundação Getúlio Vargas (FGV), que foi pioneira no uso da metodologia no país. 

À época, foram 19 depoimentos, que totalizaram 110 horas de gravação, de profissionais que atuaram diretamente no setor e tiveram papel decisivo nas discussões e decisões que levaram à criação da empresa. As entrevistas, divididas entre as categorias de história de vida e temática, foram conduzidas por pesquisadores do Cpdoc, enquanto as etapas seguintes, como transcrição, datilografia e organização do material já ficaram a cargo da Memória da Eletricidade.  

Historiador e pesquisador da instituição desde a criação, Paulo Brandi reforça a importância da História Oral e detalha a organização do programa precursor. “Muitas vezes ela ilumina um assunto, traz novas informações e revelações que podem ser de grande interesse e que não estão nos documentos usuais que o historiador sempre trabalha, além de contar com esse lado da subjetividade, da vivência dos agentes... É nesse fator que eu enxergo a sua grande validade”, afirma.   

Historiador Paulo Brandi durante depoimento para o Programa de História Oral da Memória da Eletricidade. Foto: Leila Guimarães / Acervo Memória da Eletricidade

“Neste primeiro trabalho, foram entrevistadas figuras proeminentes da história do setor elétrico, como John Cotrim (fundador e primeiro presidente de Furnas); Lucas Lopes (primeiro presidente da Cemig); Paulo Richer (primeiro presidente da Eletrobras); e Mario Bhering (quarto presidente da Eletrobras e fundador da Memória da Eletricidade)... Eles tinham muito a contar, sobre a Chesf, sobre a Cemig, que já tinham uma atuação forte anterior à criação da Eletrobras. Foi uma iniciativa muito importante, abriu novos caminhos no setor”, lembrou.  

Os programas costumam seguir duas linhas principais. A primeira, ligada às comemorações de aniversário das empresas, como os 50 anos da Eletrobras (2012), os 35 anos do Cepel (2009) e o Centenário da Light (2005). Nessas ocasiões, os temas abordados costumam ser mais amplos, dando espaço para que diferentes colaboradores contem suas experiências. A ideia é registrar histórias de dentro e, ao mesmo tempo, reforçar a ligação entre as pessoas e a própria empresa. 

A outra vertente busca traçar a trajetória da instituição ou de uma respectiva iniciativa, como os estudos que focaram na história da eletrificação rural e da universalização da energia elétrica; na história de criação do Operador Nacional do Sistema (ONS); na relação do meio ambiente e o setor elétrico brasileiro; nas relações internacionais envolvendo a integração energética na América do Sul; entre outros.   

Paulo Brandi conta ainda que, entre os diversos programas que participou, um dos mais marcantes foi o que buscou reunir informações sobre a história do desenvolvimento do setor elétrico brasileiro, intitulado “O planejamento da expansão do setor de energia elétrica: a atuação da Eletrobras e do Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos - GCPS”. Na ocasião, foram realizadas entrevistas com métodos da História Oral, mas o objetivo principal era a publicação de dois livros, um com a história do GCPS e outro voltado aos relatos dos entrevistados. Ambos os títulos podem ser encontrados no acervo da Rede Bibliotecas da Energia

“Quanto mais informações o entrevistador tem sobre o tema e sobre a atuação do entrevistado, mais frutos ele colhe. Todas as entrevistas se baseiam em roteiros elaborados a partir de pesquisa, notícias, currículo do depoente. Chegar na conversa preparado é fundamental. No decorrer, também é comum que novas questões venham a surgir, para além do roteiro”, acrescentou o pesquisador. 

Memória Institucional x Memória Organizacional 

Ao falar em memória corporativa, é importante diferenciar dois conceitos complementares: Memória Institucional e Memória Organizacional. 

A Memória Institucional é o conjunto de registros, lembranças, práticas e narrativas que preservam a trajetória, identidade e valores de uma instituição. Ela se materializa em documentos, imagens, depoimentos e objetos, mas também vive na experiência das pessoas que fizeram e fazem parte dessa história. 

No entanto, para o legado se consolidar, ele precisa ser sustentado pela Memória Organizacional, que são os registros e dados do cotidiano da empresa que, ao longo do tempo, se tornam parte da história, como manuais, procedimentos operacionais, relatórios de projetos, indicadores internos etc. Enquanto isso, a Memória Institucional proporciona contexto histórico e identidade a esses fatores, o que pode orientar e até inspirar futuras ações da instituição. As duas dependem de organização dos documentos, registros constantes e troca de informações. 

 A Memória Institucional pode dar origem a uma série de produtos que ajudam a preservar e divulgar a história da organização. Entre eles estão as publicações, como livros comemorativos, catálogos de exposições, cadernos de história oral e álbuns fotográficos. Também podem ser realizadas exposições e mostras, presenciais ou virtuais, com recortes temáticos que abordem projetos, pessoas, obras e marcos históricos.  

No ambiente digital, a memória pode se transformar em vídeos documentais, podcasts, galerias virtuais e publicações para redes sociais. Outra possibilidade é o desenvolvimento de material educativo, como jogos de memória, cartilhas, guias temáticos e recursos voltados para treinamentos e integração de novos colaboradores. Por fim, também é possível criar produtos institucionais, como calendários, agendas, brindes e objetos personalizados com imagens e histórias da empresa. 

Acesse os depoimentos e projetos de História Oral da Memória 

As entrevistas de História Oral, tanto em vídeo quanto em áudio, e os produtos que resultaram dessas iniciativas podem ser acessados no site da Memória da Eletricidade. Abaixo, também listamos alguns dos projetos citados ao longo do texto. Preservar a memória é mais do que guardar documentos, é garantir que as histórias continuem a inspirar o futuro.