Do sonho à realidade

01/06/2022

Getúlio Vargas foi a figura dominante da política brasileira entre 1930 e 1954, período que ficou conhecido como Era Vargas pelas marcas inegáveis nos rumos políticos e econômicos do país. Nascido em São Borja, no Rio Grande do Sul, Vargas alcançou o poder com a Revolução de 1930, nele permanecendo por 15 anos até ser deposto pelo golpe que encerrou a ditadura do Estado Novo em 1945. Sucedido pelo general Eurico Gaspar Dutra, o líder gaúcho reassumiu a presidência em 1951, desta vez eleito pelo voto popular direto, prometendo continuar o esforço de industrialização e construção da infraestrutura necessária ao desenvolvimento nacional.

No ambiente do regime democrático, Vargas buscou conciliar diferentes tendências políticas e ideológicas, sem perder de vista os compromissos programáticos de campanha. Nacionalismo, estatismo e trabalhismo foram marcas fundamentais do segundo governo (1951-1954) e também os alvos mais visados pela oposição. No terreno da economia, como escreveu o historiador Boris Fausto, “as iniciativas no sentido de promover o desenvolvimento ganharam um ímpeto extraordinário”. Merecem destaque a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e da Petrobras e o projeto da Eletrobras. Citadas na famosa Carta-Testamento, a Petrobras e a Eletrobras são consideradas pontos altos da política nacionalista de Vargas.

Era preciso superar a “civilização da lenha”, afirmou Vargas em mensagem ao Congresso na abertura da sessão legislativa de 1951, ao abordar o problema da energia no Brasil. Estimativas da época apontavam para a esmagadora predominância da lenha no panorama energético brasileiro. Como disse o presidente: “Cerca de 80% da energia não muscular que consumimos é proveniente de nossas matas. Construímos uma civilização de lenha, cujo destino seria desolador, se não nos dispuséssemos a captar outras fontes mais nobres de energia e conservar nossa riqueza florestal”.

A indústria petrolífera era praticamente inexistente no país. Limitada aos poços do Recôncavo Baiano, a produção nacional atendia a menos de 2% do consumo, que simplesmente triplicara entre 1945 e 1950 em razão do crescimento do transporte rodoviário. O governo Dutra tomou iniciativas como a compra de navios petroleiros e a construção da refinaria de Mataripe, na Bahia, inaugurada em 1950, mas isso era pouco em face das necessidades do país. O caráter estratégico da questão petrolífera suscitou na época a campanha “O petróleo é nosso”, em defesa do monopólio estatal integral do petróleo que reuniu militares, trabalhadores, intelectuais e estudantes, ganhando as ruas de todo o país.

O setor elétrico brasileiro vinha se desenvolvendo de forma desigual, sob a égide do capital privado. A base produtiva era formada por sistemas isolados, a maioria de pequeno porte. Os principais sistemas elétricos pertenciam às concessionárias dos grupos estrangeiros Brazilian Traction, Light and Power (conhecido como Light) e American & Foreign Power Company (Amforp).

Atuante no eixo Rio-São Paulo desde o início do século XX, o grupo americano-canadense Light dominava o mercado de energia elétrica na região mais urbanizada e industrializada do país. Suas usinas somavam 980 megawatts (MW) de potência instalada, equivalentes a pouco mais da metade do total nacional. As concessionárias do grupo norte-americano Amforp detinham 13% da capacidade instalada e respondiam pelos serviços de eletricidade em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Recife, entre outras capitais, e numerosas cidades do interior paulista. As concessionárias de capital privado nacional detinham uma pequena parcela do mercado de energia elétrica e uma fração pouco significativa da capacidade geradora do país.

A situação do Brasil era deficiente quanto ao atendimento das necessidades de energia elétrica. O acesso à eletricidade era bastante restrito em grande parte do país. Segundo o Censo de 1940, menos da metade dos domicílios urbanos contava com energia elétrica e apenas 2,4% dos domicílios rurais dispunham de iluminação elétrica. Esse quadro motivou as primeiras ações do poder público no campo da geração de energia, notadamente a criação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) e iniciativas pioneiras dos governos do Rio Grande do Sul e Minas Gerais para o atendimento de áreas precariamente eletrificadas e a garantia de abastecimento energético de projetos industriais.

1951: a mensagem programática

Em março de 1951, Getúlio Vargas apresentou as diretrizes de seu programa de governo na mensagem ao Congresso que ficou conhecida como “mensagem programática”. Em longa e detalhada exposição, o presidente defendeu um projeto de desenvolvimento assentado na industrialização com maior intervenção do Estado na economia, sem prejuízo do combate à inflação e do controle do déficit público. Reconhecendo a inserção do Brasil no contexto econômico e político das nações ocidentais, Vargas admitiu a necessidade de o país contar com a participação do capital e da tecnologia estrangeiros. Analisada por diversos estudiosos, a mensagem foi considerada pelo economista Ricardo Bielschowsky como o “mais amplo documento de afirmação da industrialização integral até então escrito no Brasil”.

No tocante à questão energética, Vargas ressaltou que as grandes companhias não vinham respondendo satisfatoriamente ao aumento da demanda, enquanto as empresas privadas de menor porte de capital nacional não eram capazes de mobilizar recursos suficientes para realizar investimentos reconhecidamente elevados e de lenta maturação. Mesmo nos Estados Unidos, segundo o presidente, as empresas privadas de serviços públicos enfrentavam dificuldades de financiamento, ao passo que a França e a Inglaterra haviam estatizado as companhias de eletricidade.

De fato, os investimentos da Light e Amforp não acompanharam o acelerado crescimento industrial e urbano verificado na região Sudeste a partir de 1930. O desequilíbrio entre a oferta e a demanda se acentuou durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive pela dificuldade de importação de equipamentos. Na época, uma missão técnica norte-americana, chefiada pelo engenheiro Morris Cooke, apontou a pequena oferta de energia como um dos principais obstáculos ao desenvolvimento econômico do país.

Terminada a guerra, as deficiências se tornaram crônicas, inclusive nas áreas atendidas pela Light e Amforp na região Sudeste. O quadro de crise foi agravado pela prolongada estiagem que reduziu as afluências aos reservatórios da Light no Rio de Janeiro e em São Paulo nos primeiros anos da década de 1950. Nesse período, o racionamento foi uma constante nas duas maiores cidades brasileiras. Os cortes no fornecimento de energia chegaram a ser de 5 a 7 horas diárias no Rio de Janeiro. Em São Paulo, os cortes sem aviso prévio ao público eram bastante comuns.

Há tempos, as companhias estrangeiras alegavam que a baixa remuneração das tarifas impedia investimentos de maior porte. Light e Amforp questionavam principalmente a norma do Código de Águas de 1934 que limitara os lucros das empresas ao nível de 10% do capital investido, segundo o princípio do custo histórico. Como observou Ricardo Bielschowsky, “o regime do custo histórico para determinar o valor das tarifas de serviços públicos de eletricidade era um tema básico da controvérsia entre nacionalistas e defensores das empresas estrangeiras concessionárias desses serviços”.

Embora reconhecendo a necessidade de regulamentar o Código de Águas, Vargas defendeu a intervenção do Estado como forma de superação dos pontos de estrangulamento na área de energia elétrica. “Para que a eletricidade seja um elemento de progresso e permita o desenvolvimento industrial”, disse num trecho da mensagem, “não é meramente necessário que seja barata, é indispensável sobretudo que seja abundante. A oferta de energia deve preceder e estimular a demanda. A falta de reserva de capacidade e as crises de eletricidade são processos de asfixia econômica de consequências funestas. É indispensável, por isso, que o Poder Público assuma a responsabilidade de construir sistemas elétricos, onde sua falta representa maiores deficiências”.

Os projetos na área de energia

Os programas desenvolvimentistas do segundo governo Vargas foram elaborados em duas áreas: o Ministério da Fazenda, inicialmente comandado por Horácio Lafer, representante de poderoso grupo econômico paulista, e a Assessoria Econômica da Presidência da República, organizada pelo advogado e economista baiano Rômulo de Almeida. Os projetos mais identificados com o ideário nacionalista – Petrobras e Eletrobras – foram formulados pela Assessoria Econômica. Os mais comprometidos com a participação do capital estrangeiro foram elaborados na órbita do Ministério da Fazenda pelos técnicos da Comissão Mista Brasil–Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, constituída em julho de 1951, tendo entre seus colaboradores o engenheiro Lucas Lopes e o economista Roberto Campos. O desenvolvimentismo era comungado pelos técnicos das duas áreas, mas não havia consenso em torno do nacionalismo, que dividia opiniões e correntes no governo.

A Comissão Mista Brasil–Estados Unidos estudou e aprovou 41 projetos específicos nas áreas de energia, transportes e agricultura, ao passo que a Assessoria Econômica desenvolveu uma atividade planejadora mais abrangente, formulando projetos sobre os principais aspectos da economia do país. Como observou a cientista social Maria Antonieta Leopoldi, a Comissão Mista tendia não só a favorecer o capital estrangeiro, como a estimular empreendimentos que envolvessem capitais e tecnologia norte-americanos, enquanto a Assessoria Econômica tinha uma orientação nacionalista, embora não ortodoxa.

Os trabalhos da Comissão Mista foram iniciados em meio a grande expectativa de concessão de créditos do Banco Mundial (Bird) e do Eximbank dos Estados Unidos para projetos de modernização da infraestrutura do país. Em dezembro de 1951, o Congresso autorizou a criação do Fundo de Reaparelhamento Econômico para o financiamento em moeda nacional dos projetos chancelados pela Comissão Mista. Vargas propôs então a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) como entidade responsável pela administração do fundo e dos recursos em moeda estrangeira que estavam sendo negociados com o Eximbank e o Banco Mundial. O BNDE foi constituído em junho de 1952 como uma agência de fomento do desenvolvimento de setores básicos da economia brasileira.

Os projetos de energia elétrica estudados pela Comissão Mista previram o acréscimo de 683 megawatts de potência instalada no período 1952-1957. Cerca de 60% dos investimentos compreendiam projetos de empresas públicas, como a Chesf, a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE) do governo do Rio Grande do Sul, a Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig), constituída em 1952 quando Juscelino Kubitschek era governador do estado, e a Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa), do governo de São Paulo. Os demais 40% foram destinados a concessionárias privadas (30% às estrangeiras e 10% às nacionais).

A Comissão Mista também sugeriu “medidas que criassem condições prévias favoráveis a um maior surto da iniciativa privada” e a revisão da legislação do setor com a eliminação do princípio do custo histórico. Recomendou que a intervenção estatal fosse sobretudo reguladora e supletiva, embora tenha reservado às empresas públicas espaço significativo nos projetos do setor. A comissão foi dissolvida em dezembro de 1953 por decisão do governo norte-americano. No encerramento de seus trabalhos, os empréstimos concedidos pelo Banco Mundial e Eximbank haviam contemplado 15 de 41 projetos aprovados, sendo cinco de energia elétrica, o setor mais contemplado. Coube ao BNDE o encargo de levar avante as negociações para execução dos projetos recomendados pela Comissão Mista.

A Assessoria Econômica de Vargas funcionou como principal órgão de planejamento do governo. Chefiada por Rômulo de Almeida até setembro de 1953, e em seguida pelo economista Jesus Soares Pereira, preparou os projetos da Petrobras e Eletrobras com inteira independência em relação aos órgãos da administração responsáveis pelo equacionamento dos problemas de energia, nomeadamente o Conselho Nacional do Petróleo (CNP) e o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), criados pelo Estado Novo. A Assessoria Econômica também foi responsável pela elaboração do Plano do Carvão Nacional, aprovado em junho de 1953, que entre outros dispositivos previu a construção de termelétricas em locais próximos às jazidas carboníferas na região Sul.

Encaminhado ao Congresso em dezembro de 1951, o projeto da Petrobras definiu as bases para a constituição de uma empresa de economia mista sob o controle da União que teria por objeto a pesquisa, lavra, refinação, comércio e transporte do petróleo e seus derivados. O projeto dividiu as opiniões entre intelectuais, militares, empresários e políticos, suscitando uma campanha acirrada e afinal vitoriosa pelo monopólio estatal do petróleo, não previsto em seu texto original. A batalha pela criação da Petrobras causou um sério desgaste político para Getúlio. O projeto do governo enfrentou críticas tanto de nacionalistas quanto de adversários da intervenção estatal no setor de petróleo.

“Posto na defensiva”, escreveu Gabriel Cohn, “Vargas foi obrigado a desdobrar-se na defesa de sua imagem de porta-voz do nacionalismo”. No famoso discurso de Ano Novo, no final de 1951, o presidente denunciou “a criminosa ‘multiplicação’ do capital estrangeiro em detrimento do trabalho de milhões de brasileiros”, qualificando de “espoliação” a forma como vinham sendo efetuadas as remessas de lucros desde o início do governo Dutra. Vargas acompanhou de perto a tramitação do projeto da Petrobras, autorizando a abertura de negociações para a instituição efetiva do monopólio. Criada por lei em outubro de 1953, a Petrobras foi encarregada de explorar em caráter monopolista todas as etapas da indústria petrolífera, menos a distribuição. Como desejava o presidente, a empresa iniciou suas operações em maio de 1954, ainda em seu governo.

No caso do setor elétrico, a Assessoria preparou quatro projetos de lei diferentes, mas inter-relacionados, apresentados ao Legislativo entre maio de 1953 e abril de 1954. O primeiro era de natureza fiscal e visava capitalizar as empresas públicas do setor. Instituía o Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE) e destinava 40% de sua arrecadação para o Fundo Federal de Eletrificação (FFE). O segundo projeto tratava dos critérios de rateio do Imposto Único entre os estados, os municípios e o Distrito Federal. O terceiro estabelecia o Plano Nacional de Eletrificação e o quarto autorizava a constituição da Centrais Elétricas Brasileiras S.A., ou seja, a Eletrobras.

O Plano Nacional de Eletrificação foi concebido em articulação com os programas de expansão dos governos estaduais e das concessionárias privadas, propondo um amplo esforço no sentido de solucionar o problema do suprimento de energia elétrica. Preconizou o desenvolvimento dos sistemas interligados e medidas de interesse geral para a indústria de eletricidade, como a unificação de frequência em 60 Hz e a padronização das tensões de transmissão e distribuição.

Segundo a Memória Justificativa do Plano Nacional de Eletrificação, a interligação de sistemas elétricos representava uma “transição de importância verdadeiramente revolucionária para toda a economia das regiões onde fosse realizada”. Daí a divisão do país em “área das grandes centrais” – as que tendiam a constituir ou já constituíam os polos de sistemas regionais – e “área das usinas isoladas e serviços locais”. Os empreendimentos programados para a área das grandes centrais visavam um acréscimo de potência de 5 mil megawatts no período de 1955 a 1965.

O principal encargo da Eletrobras seria a execução dos empreendimentos do Plano Nacional de Eletrificação, sob a responsabilidade do governo federal, diretamente ou por intermédio de subsidiárias. A atuação da empresa teria como princípio dominante a construção de grandes usinas geradoras e linhas transmissoras de alta tensão, além da implantação da indústria de material elétrico pesado. A intervenção do governo federal na produção de energia elétrica ganharia dimensão nacional. Além da ampliação da usina de Paulo Afonso pela Chesf, a União marcaria sua presença na região Sudeste, mediante a construção de várias hidrelétricas, e também na região Sul, com a instalação de usinas térmicas movidas a carvão.

O primeiro projeto de Vargas foi aprovado no final de seu governo. O presidente deixou de sancioná-lo por questão de dias. A tarefa coube ao seu sucessor, Café Filho, que promulgou a Lei nº 2.308 em 31 de agosto de 1954, instituindo o IUEE e o Fundo Federal de Eletrificação. A administração do fundo foi entregue provisoriamente ao BNDE. O segundo projeto permaneceu três anos em tramitação, dando origem à Lei nº 2.944, assinada por Juscelino Kubitschek em novembro de 1956. O projeto do Plano Nacional de Eletrificação acabou sendo abandonado e o projeto nº 4.280, que autorizava a União a constituir a Eletrobras, somente seria aprovado em 1961, com emendas.

1962: A Eletrobras torna-se realidade

O projeto da Eletrobras esbarrou na oposição das concessionárias estrangeiras, segmentos do empresariado nacional e de dirigentes de empresas estaduais que temiam a centralização do poder na esfera federal. Em sua carta-testamento, o presidente Vargas chegou a afirmar que os interesses contrariados pela Eletrobras eram em parte responsáveis pela crise que o levou ao gesto extremo do suicídio, em 24 de agosto de 1954.

O projeto da Eletrobras tramitou durante sete anos no Congresso. As emendas apresentadas em primeira discussão foram votadas na Câmara em novembro de 1954. O processo foi interrompido durante mais de um ano, sendo retomado em abril de 1956, por pressão do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Embora eleito com o apoio das correntes nacionalistas, o presidente Juscelino Kubitschek não se comprometeu com o andamento do projeto. A crescente afirmação das empresas públicas no governo Kubitschek ocorreu sem a coordenação de uma holding setorial. Gestor do Fundo Federal de Eletrificação, o BNDE desempenhou na prática a função de banco do setor elétrico, garantindo recursos para a construção da usina de Furnas e de outros empreendimentos do Plano de Metas de JK.

A Eletrobras foi praticamente ignorada pelos autores do programa de energia elétrica do Plano de Metas, os engenheiros Lucas Lopes e John Cotrim. Ambos deixaram claro o desinteresse pela criação da empresa durante a Semana de Debates sobre Energia Elétrica, promovida pelo Instituto de Engenharia de São Paulo em abril de 1956. Além de conhecidos adversários da opção estatizante, como Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, o encontro contou com a presença de numerosos engenheiros e técnicos que formavam a elite do setor, incluindo dirigentes de empresas públicas como Otávio Marcondes Ferraz (Chesf) e Mario Bhering (Cemig). A criação da holding foi condenada pela maioria dos participantes.

Em depoimento prestado à Memória da Eletricidade em 1988, quando era presidente da Eletrobras, Mario Bhering se referiu à oposição ao projeto da holding federal: “A lei, como concebida pela assessoria de Vargas, não agradou à Cemig. É claro que da Light nem se fala. As companhias estaduais não se interessaram pelo assunto, não gostaram da ideia”. Lucas Lopes, presidente do BNDE entre 1956 e 1958 e, em seguida, ministro da Fazenda até 1959, admitiu: “Eu trabalhei para que o Plano de Eletrificação não tivesse prosseguimento no Congresso. Indiretamente, trabalhei também para que o projeto da Eletrobras não fosse aprovado. Tínhamos a preocupação de que, se a Eletrobras fosse aprovada nos termos do projeto, enfrentaríamos sérias dificuldades. […] Uma crítica frequente ao projeto era de que ele afunilava todas as decisões em um conselho ao lado da Presidência da República. Ora, isso era uma completa incongruência! Impossibilitava a sequência de um Plano de Eletrificação fluente” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995, p. 57).

Aprovado na Câmara em maio de 1956, o projeto foi remetido para o Senado, onde recebeu novas emendas, incluindo até mesmo a alteração do nome da empresa para Centrais Elétricas Federais S.A. (Celfe). Em outubro de 1957, a discussão voltou para a Câmara, permanecendo confinada em várias comissões até novembro de 1960.

As mudanças sofridas pelo projeto original da Eletrobras, somadas à criação do Ministério das Minas e Energia em 1960, contribuíram em muito para que a discussão chegasse a termo. As resistências, contudo, prosseguiram. O empresariado, particularmente o de São Paulo, organizou uma campanha pelos meios de comunicação visando obter, tanto do presidente Kubitschek como de seu sucessor, Jânio Quadros, o veto total ou ao menos parcial ao projeto. Tomaram parte desse movimento diversos órgãos de classe, destacando-se o Sindicato das Indústrias de Energia Elétrica de São Paulo. Por sua vez, a corrente nacionalista procurava resguardar a integridade do projeto nº 4.280, buscando garantir para o Estado o mais amplo espaço possível de atuação.

Finalmente, em 25 de abril de 1961, Jânio Quadros assinou a Lei nº 3.890-A, que autorizava o governo federal a proceder à constituição da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobrás (o acento agudo da sigla cairia em 2010). Tal como destacado no livro Panorama do setor de energia elétrica no Brasil, produzido pela Memória da Eletricidade, “nem nacionalistas nem privatistas foram totalmente atendidos em suas reivindicações, uma vez que, apesar de consagrar a solução estatizante, o texto legal foi sancionado por Quadros com vetos parciais, entre os quais o referente à formação de uma indústria estatal de material elétrico” (p. 195).

O processo de constituição da empresa começou de fato em outubro de 1961, já no governo João Goulart. Por solicitação do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos, um grupo de trabalho chefiado pelo engenheiro Paulo Richer promoveu um inquérito sobre a Eletrobras e os problemas de financiamento do setor, ouvindo mais de 20 dirigentes de concessionárias públicas e particulares. Novo grupo de trabalho, também chefiado por Richer, elaborou o estatuto da empresa, concluindo a tarefa em maio do ano seguinte.

A Eletrobras foi oficialmente instalada em 11 de junho de 1962, em sessão solene no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com a presença do presidente Goulart. Toda a carteira de aplicações e a administração do Fundo Federal de Eletrificação saíram do BNDE, passando para o âmbito das atribuições da nova empresa.

A legislação facultava a sua atuação direta em empreendimentos de geração e a empresa chegou a receber duas concessões para aproveitamentos hidrelétricos. Desde cedo, porém, a Eletrobras assumiu as características de holding, ancorada inicialmente em quatro subsidiárias: Chesf, Furnas, Companhia Hidrelétrica do Vale do Paraíba (Chevap) e Termoelétrica de Charqueadas S.A. (Termochar). Sua primeira diretoria foi composta por Paulo Richer, presidente da empresa até abril de 1964, o economista José Ribeiro de Lira, o jurista Válter Tolentino Álvares e o engenheiro Antônio Aureliano Chaves de Mendonça, futuro vice-presidente da República.

A Eletrobras, diferentemente da Petrobras, não surgiu como empresa monopolista, mas como entidade coordenadora do setor elétrico e de projetos de geração e transmissão, considerando o aproveitamento do grande potencial hidrelétrico nacional.

O Brasil contava então com pouco mais de 4.900 megawatts de capacidade instalada de energia elétrica. A disponibilidade de energia era extremamente desigual entre as regiões e insuficiente para o avanço do processo de urbanização e industrialização. A Eletrobras contribuiu decisivamente para mudar esse quadro, criando as condições para que o Brasil disponha hoje do sistema elétrico interligado que une o país de ponta a ponta, abrangendo praticamente todo o território nacional. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº6/ 2022.

Referências Bibliográficas:

BHERING, Mario. Reminiscências de um líder. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. 2010.

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

BRANDI, Paulo. A trajetória política de Getúlio Vargas. In: Raul Mendes Silva; Paulo Brandi Cachapuz; Sergio Lamarão. (Org.). Getúlio Vargas e seu tempo. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2004.

BRANDI, Paulo. Eletrobras (verbete). In: PAULA, Christiane Jalles de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando (Coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro [online]. São Paulo: FGV, 2010. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/eletrobras-centrais-eletricas-brasileiras-s-a

CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. A Eletrobras e a história do setor de energia elétrica no Brasil: ciclo de palestras. Renato Feliciano Dias (Coord.). Rio de Janeiro: 1995.

CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil /Panorama of electric power sector in Brazil. Rio de Janeiro: 2006.

COHN, Gabriel. Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difel, 1968.

D’ARAÚJO, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas (1951-1954): democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

EARP, Fabio Sá; KORNIS, George. O desenvolvimento econômico sob Getúlio Vargas. In: Getúlio Vargas e seu tempo. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social: Mauad, [2004]. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/11914/2/F%c3%a1bio%20S%c3%a1%20Earp%20e%20George%20Kornis%20

FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

LAMARÃO, Sergio. A campanha do petróleo e a criação da Petrobrás. In: Raul Mendes Silva; Paulo Bandi Cachapuz; Sergio Lamarão. (Org.). Getúlio Vargas e seu tempo. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2004.

LEITE, Antonio Dias. A energia do Brasil. Rio de Janeiro: Lexikon, 2014.

LEOPOLDI. Maria Antonieta. O difícil caminho do meio: Estado, burguesia e industrialização no segundo governo Vargas In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

LIMA, Marcos Costa (org.). Os boêmios cívicos: a assessoria econômica-política de Vargas (195154). Rio de Janeiro: E-papers: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2013.

LIMA, José Luiz. Estado e energia no Brasil: das origens à criação da Eletrobrás (1890-1962). São Paulo, USP/IPE 1984.

LIMA, José Luiz. Políticas de governo e desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos 80. Rio de Janeiro. Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995.

MELO, Hildete Pereira de; OLIVEIRA, Adílson de; ARAÚJO, João Lizardo de. O sonho nacional: petróleo e eletricidade (1954-1994). In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

PEREIRA, Jesus Soares. Petróleo, energia elétrica, siderurgia: a luta pela emancipação. Um depoimento de Jesus Soares Pereira sobre a política de Vargas. Medeiros Lima (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra 1975.

VARGAS, Getúlio. Mensagem ao Congresso Nacional (1951). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.

VIANNA, Sérgio Besserman. As relações Brasil-EUA e a política econômica do segundo governo Vargas. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, vol. 40 n 3. jul.-set. 1986, p. 193-210.