Corporificação, empatia, rituais

01/06/2022

O que fazer com o passado após o fim da história?

Durante os últimos cinquenta anos, poucos textos provocaram tantas reações tão apaixonadas no campo acadêmico das “Humanidades” e das “Ciências Sociais” quanto o ensaio publicado em 1989 por Francis Fukuyama e intitulado “O Fim da História”. Inspirado por uma linha de raciocínio originada em Hegel e Marx, Fukuyama argumentou que aquilo que ele identificou como a trajetória progressiva em direção a uma sociedade e a um Estado democráticos tinham encontrado sua completude no fim da chamada “Guerra Fria”, marcado pelo desaparecimento da alternativa totalitária com o colapso da União Soviética. A “História”, no sentido de um desenvolvimento finito com um objetivo claramente circunscrito, daí o título de Fukuyama, precisa chegar a um fim uma vez que sua visão final se torna realidade.

Dois tipos de críticas tentaram rejeitar essa posição. Primeiramente, e principalmente com base em fundamentos ideológicos, a insistência de que os modelos tipicamente ocidentais de sociedade e política de forma nenhuma representam o que Hegel, Marx e outros imaginaram como sendo estruturas ideais da vida humana. Ao mesmo tempo, houve um mal-entendido generalizado, internamente heterogêneo e frequentemente grotesco que confundiu o argumento de Fukuyama com o desaparecimento de fato impensável da tridimensionalidade do tempo entre passado, presente e futuro da forma como ela emerge da estrutura da consciência humana. A minha própria forma de usar as palavras “o fim da História” é diferente tanto da de Fukuyama quanto da de seus críticos. Proponho que “História”, como a disciplina acadêmica moldada desde o início do século XIX (primeiro sentido), era epistemologicamente dependente da matriz de “História” como a “visão de mundo histórica” (segundo sentido) cujo surgimento, nas décadas em torno de 1800, estudiosos como Michael Foucault e Reinhart Koselleck descreveram de forma convincente. É verdade, no entanto, que a visão de mundo histórica perdeu seu antigo lugar institucional central no nosso cotidiano do início do terceiro milênio (primeiro sentido de “fim”) e, portanto, a disciplina precisará rever profundamente as suas premissas, redefinir suas funções potenciais e, por fim, substituir a si mesma (segundo sentido de “fim”).

Acredito que a maioria dos historiadores profissionais ignoraram ativamente este desafio, embora ele possa muito bem dizer respeito às Humanidades e às Artes de forma ampla – o que provavelmente nunca teria acontecido sem o impulso da visão de mundo histórica. A questão do que fazer com o passado hoje, portanto, parece uma metonímia e uma condensação do problema muito mais frequentemente levantado e que concerne o futuro de todo o campo das Humanidades. Mas os historiadores, muito mais do que seus colegas de disciplinas vizinhas, isolaram a si mesmos de quaisquer dúvidas quanto a seus padrões institucionais, e o fizeram por meio da des-historicização da visão de mundo histórica, em outras palavras, elevando-a, em última análise, ao nível da única maneira autêntica de relacionar o passado, o presente e o futuro. Os historiadores frequentemente denunciam de forma condescendente outras maneiras de configuração do tempo como uma falta de sofisticação acadêmica ou como puro sensacionalismo intelectual. Em minha experiência, é difícil, se não impossível, tentar transcender o reino da visão de mundo histórica e escapar completamente destas acusações. Isto porque, ao perguntarmos “o que fazer com o passado após o fim da História”, entramos em um território amplamente desconhecido e que é uma zona em que passos elementares, às vezes até mesmo aparentemente ingênuos, precisam ser dados, em vez do engajamento com posições e opiniões já formuladas e bem definidas. Quem quer que entre nesta zona se torna academicamente vulnerável.

Ao fim de uma vida profissional que, em sua maior parte, procurou pensar sobre novas perspectivas de se conceber o passado, encontro-me em uma situação confortável o bastante para aceitar o risco. Minhas breves reflexões, que tentam alcançar o território desconhecido além dos limites estabelecidos da História e das Humanidades, começarão invocando o contraste entre a visão de mundo histórica e o outro “cronotopo” (isto é, a outra “construção social de temporalidade”) que, presumo, domina quase globalmente nosso cotidiano contemporâneo. A questão de como o nosso pensamento pode interagir com o passado sob as condições do novo cronotopo nos levará ao conceito de “corporificação” no sentido de uma modalidade até agora academicamente negligenciada de mediação entre o passado e o presente. Com base nisso, tento demonstrar como a “empatia” constitui um nível de corporificação que já começou a permear nossas relações com o passado, em sua maior parte fora da academia. “Rituais”, por fim, surgirão como um possível foco para nos ajudar a imaginar maneiras pelas quais, ao contrário das expectativas primárias, abordagens corporificadas do passado possam abordar pelo menos algumas deficiências e problemas do nosso presente.

Para uma descrição da visão de mundo histórica como um pano de fundo e um ponto de partida, utilizarei um resumo em cinco etapas de sua reconstrução desdobrado em múltiplos ensaios que constituem a obra de Reinhart Koselleck. Pela primeira vez, talvez, a visão de mundo histórica apresentou o futuro como um horizonte aberto de possibilidades dentre as quais os seres humanos acreditavam que podiam escolher e, portanto, criar mundos novos e diferentes. O passado, por sua vez, parecia recuar para trás do presente e perder autoridade à medida que crescia sua distância cronológica em relação ao presente (assim desvendou-se o princípio da “Historia magistra vitae”). Entre o novo passado e o novo futuro, o presente encolhia, de sua extensão tradicional de uma geração ou de aproximadamente trinta anos, para se tornar, segundo uma fórmula lançada pelo poeta Charles Baudelaire, “um momento de transição imperceptivelmente curto”. Este breve presente, acima de tudo, serviu à humanidade do princípio da era moderna, que igualava ontologia e consciência (“Penso, logo existo”), como o lugar em que, com base na experiência do passado, tentou-se moldar o futuro dentro de um “campo de contingência” (ou de possibilidades abertas) cercado pela necessidade (ou seja, condições sem alternativas) e pela impossibilidade (imaginações de formas de vida não acessíveis aos seres humanos). O tempo em geral finalmente aparecia como um agente inevitável de mudança, o que significava que nenhum fenômeno estava isento de tais transformações e que as regras podiam ser delas extraídas para previsão do futuro.

Em nosso presente, continuam a existir setores de nossa sociedade e cultura ainda regidos pela visão histórica de mundo. Um deles, como já mencionamos, é a disciplina da História no contexto das Humanidades com suas camadas adjacentes de vida ambiciosa no sentido intelectual. Por diferentes razões, a prática de políticas democráticas também requer de nós a crença de que o futuro pode ser determinado a partir do presente. Não obstante, nós passamos hoje a maior parte do nosso tempo de vida contando com um futuro diferente, um futuro ocupado com ameaças que se aproximam irreversivelmente do presente (o “aquecimento global” é provavelmente a ameaça mais frequentemente mencionada dentre todas elas). Devido em grande parte, mas não exclusivamente, às capacidades de armazenamento eletrônico, o novo passado não mais recua para trás do presente, mas o inunda com conhecimento, memórias e vestígios materiais (não há nenhum documento do passado que não seja potencialmente acessível em qualquer tela de computador). Entre o futuro congestionado e o passado agressivo, o presente agora entrou em um processo provavelmente ilimitado de alargamento em direção à inclusão de tudo o que se possa imaginar. Se o presente imperceptivelmente curto da visão de mundo histórica costumava estar conectado a uma autoimagem humana que era coextensiva com a mente, o novo presente alargado pode explicar a impressão de que as dimensões físicas da existência estão de volta em nossas visões e desejos (basta pensarmos no impulso das atividades físicas diárias, bem como nos novos projetos intelectuais híbridos como a “Neurofilosofia” – mas também na tentativa de Heidegger, através do conceito de “Dasein”, de trazer o espaço e o corpo de volta à nossa visão de existência humana).

Na medida em que o novo presente tende a absorver e a integrar a maior parte da impressão de diferença e distância do passado, podemos muito bem voltar a considerar segmentos do passado como modelos possíveis para as nossas vidas. Essa alteração traria de volta para a disciplina da História aqueles modos de argumentação banidos há muito tempo por serem tidos como anacrônicos. Ao mesmo tempo, a História, assim como a política, se a mudança cronotópica for levada em conta, não dispõe mais realmente do futuro como um horizonte de projeção e planejamento, mas se limita a gerenciar os sempre novos desafios com o quais o novo futuro nos confronta. Os políticos emblemáticos do presente passaram de visionários a solucionadores de problemas, quanto mais pragmáticos e mais flexíveis melhor – quer admitam isso ou não. Mas, acima de tudo, a mudança da autorreferência humana com sua inclusão no lado somático da existência reserva novos potenciais de nos ligar ao passado por meio da corporificação.

Com um escasso desenvolvimento conceitual até agora, todos esses novos ângulos se reúnem sob a noção do “antropoceno”. Ao cobrir um lapso temporal entre o primeiro impacto danoso da presença humana na ecosfera do planeta Terra e o fim previsto dessa presença, um fim que é provavelmente sinônimo do desaparecimento da humanidade, este é o presente mais estendido que se pode imaginar. Em vez da construção de um futuro diferente, em nada melhor, o que o antropoceno nos deixa em aberto é a esperança de diminuir o passo da deterioração das condições de vida em seu presente alargado. Além disso, como vítimas de seu próprio comportamento ecologicamente irresponsável (mas como as tribos da Idade da Pedra ou as sociedades medievais poderiam realmente ter antevisto essas consequências?), os seres humanos se deparam com situações de sofrimento físico. Apenas a posição de observador que o antropoceno sugere como uma narrativa tendenciosamente mitológica corresponde a esta mente crítica moderna tão familiar, à medida que se torna óbvio, do ponto de vista de um julgamento moral, que ela é administrada como se estivesse ontologicamente de fora. É exatamente aqui, acredito, que se encontra o ponto mais sensível para a História e para as Humanidades – caso finalmente ousem pensar em meio a um território não familiar. Que maneiras diferentes de relação com o passado humano essa posição corporificada requereria? Ela poderia se tornar, entre outras coisas, uma posição (não apenas imaginada) de participação em vez de observação?

A tarefa verdadeiramente filosófica adiante de nós, como base para uma autossubstituição da disciplina da “História” e das Humanidades, seria equivalente, para um participante corporificado, ao que Michel Foucault fez, sob o conceito de “epistemologia”, com o desenvolvimento histórico e sistemático dos aspectos pertinentes a um observador consciencioso. Os temas das teologias cristãs da “encarnação” podem se tornar úteis nesse contexto. É também desnecessário dizer que este é um escopo de empreendimento intelectual demasiado complexo e demorado para ser abordado em uma primeira resposta à pergunta do que fazer com o passado após o fim da História.

Devo a vários ensaios de Marcelo Rangel a percepção de que a relação com as “vítimas da história” descritas nas famosas “Teses sobre a Filosofia da História” de Walter Benjamin, publicadas em 1940, pode ser entendida como um passo inicial e bastante prático nesta direção. Diante do “Angelus Novus” de Paul Klee, Benjamin fez com que o “anjo da história” virasse suas costas para o futuro, uma versão inicial da impressão de que o futuro não parece mais um horizonte aberto de possibilidades dentre as quais os seres humanos possam escolher. Benjamin deve de fato ter morrido com o trauma de ter perdido o futuro aberto da visão de mundo histórica a partir do momento em que a União Soviética, da qual o futuro ele havia adotado como o seu próprio futuro, se tornou aliada da Alemanha Nazista que o havia excluído como um judeu por nascimento. O único olhar possível do anjo agora se voltava para o passado e se tornava uma visão de empatia para com as “vítimas da História”, uma visão corporificada, que tornava presente a dor de outros seres humanos em vez de atribuir significado a ela.

Ao desencadear um impulso de dor física no participante emocional, este olhar tenta colocá-lo de volta no ambiente concreto que infligiu o sofrimento individual e físico. Diferentemente das próprias especulações de Benjamin que partiam do conceito de uma dimensão “messiânica”, não tentarei conectar diretamente a empatia com qualquer visão de futuro. Podemos, naturalmente, esperar que alguém que tenha compartilhado empaticamente o sofrimento físico de seres humanos no passado esteja menos inclinado a causar dor entre os seres humanos no presente e no futuro. Acho, no entanto, esse argumento demasiadamente funcional e pedagógico. O que me parece mais produtivo existencial e intelectualmente é o aspecto de mesmice e retorno espaciais, que desempenham um papel importante principalmente fora das instituições acadêmicas, nas novas maneiras de relação com o passado. Devemos perguntar por que visitar o local de um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial, como Auschwitz, deixa, falando de forma apenas meio metafórica, uma cicatriz em nossas almas, almas no sentido medieval da palavra, ou seja, na interseção entre a nossa existência espiritual e física. Tenho consciência de que a exposição às reconstruções, a partir de restos efetivamente materiais, de um campo de concentração alemão e de um campo de concentração soviético construídos durante a década de 1940 na capital letã de Riga me mudou para sempre – embora ainda me faltem conceitos para capturar este efeito enfático específico. Será que aqueles lugares em que o sofrimento de fato aconteceu têm um impacto mais forte em nossa imaginação do que a leitura e o ouvir à distância, um impacto mais forte em nossa imaginação como um recurso que nunca deixa os corpos intocados?

Soa certamente equivocado dizer que “aprendemos” com esses momentos sobre uma relação corporificada com o sofrimento no passado. Mas, por outro lado – e de volta àquela intuição de que “aprender com o passado” pode se tornar novamente possível em nosso presente ampliado –, podemos perguntar se existem quaisquer problemas ou deficiências específicos em nosso presente ampliado que possam e, de fato, devam ser abordados por gestos de uma relação corporificada com o passado. Para começar, indicarei algumas consequências não resolvidas provenientes do uso da tecnologia eletrônica (que eu, de outro modo, admiro) para resolver essa questão.

Já dissemos que, dentro da moldagem (ou confrontação) da visão de mundo histórica, o futuro costumava acontecer em um “campo de contingência”. Agora é óbvio que os polos de “necessidade” e “impossibilidade” que cercam esse campo estão derretendo sob o impacto de novas ferramentas eletrônicas que podem processar quantidades de dados que antes eram gigantescas. São dois os exemplos. Se sempre existiram seres humanos que sabiam pertencer a um sexo diferente daquele indicado pelos órgãos genitais com os quais nasceram, a única reação disponível era lembrá-los do sexo como uma “necessidade” física. Contudo, com o desenvolvimento da cirurgia transgênero, essa necessidade torna-se cada vez mais passível de substituição por fatores de escolha. Se, de maneira semelhante, tínhamos o hábito de atribuir a divindades e a outros seres transcendentais aquelas visões de comportamento que podíamos imaginar, mas não associar a seres humanos, como onipresença e onisciência, a comunicação eletrônica e o gerenciamento por meios eletrônicos do conhecimento incorporaram aquelas habilidades tradicionalmente “divinas” à nossa vida cotidiana. Agora, o aumento substancial da liberdade e do alcance individuais resultante do derretimento da “necessidade” e da “impossibilidade” vem com o preço de transformar nosso campo de contingência existencial em um universo de contingência, uma condição que nos sobrecarrega com mais possibilidades do que sentimos ser capazes de gerenciar com nosso intelecto e nossos afetos.

Como uma reação pré-reflexiva, sentimos um desejo de “segurarmos em algo” – e este sentimento, presumo, tem mais do que uma conotação meramente corpórea. É um anseio por pontos físicos de apoio em nossa existência. Contudo, embora o impulso de ter aquilo em que segurar possa apenas crescer, nosso contato físico especialmente tátil com o mundo material desaparece progressivamente. Uma infinidade de diferentes conexões físicas com o ambiente material em que costumamos viver está agora condensada na forma do único objeto palpável e multifuncional que é o smartphone. E, embora o sonho de “segurar o mundo inteiro nas mãos” pareça, portanto, ter se tornado realidade, nossos corpos, como uma consequência paradoxal, estão individualmente mais isolados do que nunca. Até mesmo o novo status dominante do conhecimento acerca do mundo agrava essa situação de carência existencial, pois experimentamos o mundo material e o descartamos através de uma grossa camada de estatísticas. Essa camada faz com que porções de informação (como boletins meteorológicos) sejam mais confiáveis do que nunca, enquanto dissolve a concretude e a palpabilidade individuais de uma manhã de primavera ou de uma noite de verão em uma paisagem específica.

Se desejarmos recuperar camadas de um mundo que podemos segurar, precisamos reaprender a habitá-lo. Mas como é possível que isso aconteça? Habitar o mundo significa estar em um relacionamento presente com seus componentes, em um relacionamento em que experimentamos a nós mesmos como uma parte física do mundo em vez de observá-lo e interpretá-lo de fora. Visto que essa posição externa se tornou habitual desde o início da Modernidade, podemos presumir que ela contribuiu com a tendência de percepção do mundo em um fluxo de transformação permanente que os seres humanos podem tentar influenciar e até controlar – e isto explicaria pelo menos parcialmente a emergência do futuro aberto da visão de mundo histórica. Habitar o mundo, ao contrário, é uma forma de vida que adquirimos em sua maior parte através da mediação de rituais, definidos como coreografias que atribuem posições e movimentos aos nossos corpos em coordenação com outros corpos e objetos. Os rituais preservam a continuidade na variação.

É por isso que, começando com o nosso desejo atual de segurar e habitar o mundo, um novo foco sobre o passado que enfatiza a corporificação deve tentar trazer os rituais de volta ao horizonte. Podemos agora simplesmente apontar para eles como uma dimensão abandonada muito coerente da vida, mas também podemos tentar preenchê-los e ativá-los com nossa presença física, como participantes de suas estruturas e suas regras, e não como observadores externos e espirituais. São três as ilustrações que vêm à mente. O esforço de reconstrução dos espaços, de representificação dos papeis interativos e de recitação dos discursos dos rituais iniciais da democracia parlamentar poderiam se tornar uma alternativa às esferas fisicamente vazias na política contemporânea. Poderiam se tornar o contraste a uma esfera em que assistir a debates parece ter se tornado um incômodo e em que as decisões são tomadas dentro de uma “nuvem” eletrônica desconectada da concretude de nossa vida física.

De modo semelhante, podemos reaprender a habitar os espaços da universidade. Os anos da pandemia de coronavírus forneceram aos administradores acadêmicos e aos seus superiores políticos uma imagem poderosa de como o ensino remoto é mais barato em comparação com a presença em sala de aula, e essa evidência dá ímpeto a promessas de uma inclusão estudantil mais ampla e, portanto, mais democrática. Por outro lado, acaba sendo muito mais difícil identificar e demonstrar empiricamente o quanto de energia, acuidade e potencial inovação intelectuais podem se perder nessa transformação institucional em andamento. Este pode ser o momento, para aqueles que valorizam e acreditam na função insubstituível da tradição universitária ocidental, de revisitar e reativar alguns de seus principais rituais. Reacender e estar aberto a participações das coreografias de seminários de grupos pequenos, de “defesas” públicas de dissertações de doutorado ou de cerimônias de graduação coletivas pode ser mais convincente quanto à presença de instituições acadêmicas e seus eventos do que os números jamais seriam.

Finalmente, além de sua concretude e palpabilidade, os rituais têm a tendência de desenvolver formas e sabores locais específicos. Em vez de impor denominadores globais comuns sobre nossas formas de vida, enfatizar um relacionamento corporificado com o passado pode implicar em um processo de re-habitação de prédios, paisagens e climas específicos. Isso pode nos ajudar a redescobrir como o efeito opressor e necessariamente frustrante de um mundo que se tornou um universo de contingências pode ser domado sem qualquer sentimento de perda se deixarmos que a vida corporificada aconteça sob circunstâncias locais.

Não há como essa experiência do pensamento em direção à autossubstituição parcial da disciplina da História, enfatizando-se as modalidades corporificadas em nosso relacionamento com o passado, possa evitar a crítica político-acadêmica usual de que ela é conservadora e potencialmente tacanha. Uma rejeição possível dessas acusações soa igualmente convencional: é claro que podemos dizer que o local e o conservador, no sentido literal dessas palavras, se tornaram, por razões tanto ecológicas quanto intelectuais, uma condição de sobrevivência coletiva. Mas esse, espero, não será o tipo de debate que decidirá acerca do valor dos primeiros passos em novas direções no campo das Humanidades e das Artes. Devemos reivindicar teimosamente o direito de projetar e realizar projetos nunca antes perseguidos por ninguém, e devemos ser capazes de fazê-lo sem a promessa de que eles serão bem-sucedidos. O direito de começar algo novo, mesmo que tenha uma conotação “conservadora”, não deve depender de julgamentos políticos. O tempo destes, bem como o tempo das avaliações, chegará assim que vislumbrarmos aonde a energia dos passos inovadores realmente nos conduzirá. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº6/ 2022.

Referências bibliograficas:

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latência como origem do presente. São Paulo: Unesp, 2014.

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KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

RANGEL, Marcelo de Mello. Melancolia e história em Walter Benjamin. Ensaios Filosóficos, vol. XIV, dez. 2016. Disponível em: http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo14/11_RANGEL_Ensaios_Filosoficos_Volume_XIV.pdf.

RODRIGUES, Thamara de Oliveira. Introdução. In: KOSELLECK, Reinhart. Uma latente filosofia do tempo. São Paulo: Unesp 2021, pp. 13-52.