Legado compartilhado

01/03/2022

Em 2021, prestes a completar 21 anos na equipe da Gerência Executiva Jurídica do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), sendo os onze últimos anos como gerente da área, recebi o honroso convite do então Diretor Geral para atuar como assessoria executiva da Diretoria Geral da instituição.

Passada a euforia do desafio, que prontamente assumi, fui tomada pelo sentimento de nostalgia e compromisso com a minha antiga equipe. Era necessário desconectar-me de forma leve, harmônica, do passado, para que a continuidade das atividades não fosse atingida.

No HSM Expo 2019, cuja temática era “Ouse Aprender”, as principais palestras a que assisti me trouxeram a reflexão sobre que legado nós profissionais deixamos por onde passamos. Afinal, o que exatamente as pessoas lembrarão sobre nós daqui a alguns anos, quando olharem para trás? Em algum momento da nossa trajetória deveríamos fazer uma pausa e refletir sobre isto.

Naqueles últimos anos, a equipe do Jurídico passara por grandes mudanças: saída de profissionais antigos (cerca de 50% da equipe foi alterada) e uma reorganização organizacional que demandou uma gerência mais operacional, alterando a forma (estratégica) de atuação da equipe. Somou-se a isso a saída de uma gerente que durante anos conduziu os rumos jurídicos da organização.

Com esse cenário, estava latente a necessidade de preservação do conhecimento. Foi com esse objetivo que, ainda à frente da gerência jurídica, realizamos um projeto denominado Banco de Pareceres Jurídicos, que contou com a participação de todos os advogados. Selecionamos cerca de 300 pareceres para atualizá-los e, com isto, percorremos as principais orientações juridicas que tinham sido emanadas no ONS nos últimos dez anos. Uma grande reciclagem.

Mas foi em 2021, com uma nova função, atuando na diretoria-geral, que me entreguei com afinco à realização do Projeto Legado, com a parceria da equipe do Jurídico e do então Diretor de Assuntos Corporativos do ONS, Jaconias de Aguiar, grande entusiasta dos temas jurídicos.

Na estruturação e realização do projeto, contei com o apoio incondicional da advogada e amiga Carla Botrel, que não envidou esforços e horas de trabalho para o projeto acontecer.

A motivação era evidente – evitar fuga intelectual, ou seja, que conhecimentos relevantes desaparecessem com o profissional que se desligava da equipe, já que o tempo que essa pessoa dedicou ao tema implicava na acumulação de competências e/ou conhecimentos específicos.

E o objetivo principal era disseminar conhecimentos e experiências adquiridas no exercício das atividades realizadas pela equipe da Gerência Executiva Jurídica do ONS.

A definição da metodologia a ser utilizada foi discutida com a equipe da Gerência Executiva de Gestão de Pessoas, resultando na escolha do Storytelling, talvez mais desafiador para mim do que a definição dos temas, que também não foi simples. Eu já tinha uma lista de temas que entendia relevante alinhar com a nova gestora do Jurídico. Compartilhamos a lista com a equipe e decidimos que selecionaríamos aquele que era mais abrangente e, principalmente, que ainda estava “vivo” na Organização: a Resolução Normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) nº 780, de 25 de julho de 2017, que estabelece critérios para o Operador Nacional do Sistema Elétrico desempenhar as atividades de gestão orçamentária.

Definido o tema principal — cuja discussão no âmbito da agência reguladora tinha se iniciado em 2010, em um debate na Reunião Pública da Diretoria colegiada da Aneel, quando da aprovação do orçamento do ONS para o ciclo 2010/2011 — dividimos a Resolução em oito subtemas, denominados “Top 8”. Então, comecei a escrever as oito intrigantes histórias dos assuntos que vivenciei nesses mais de 20 anos de Jurídico.

Quais são os Top 8? História 1: “As Fases da Audiência Pública Aneel nº 016/2013”; História 2: “Governança”; História 3: “Gastos Prudentes e Eficientes”; História 4: “Performance Organizacional”/ “Programa de Participação de Resultados”; História 5: “Funding”; História 6: “Aplicação de multa Aneel”; História 7: “Pagamento de multa Aneel”; e História 8: “Análise de Impacto Regulatório (AIR) e Análise de Resultado Regulatório (ARR)”.

Para cada história, selecionamos um advogado da equipe atual do ONS e outro que tinha saído do Jurídico ou da Organização. Foi uma oportunidade única para que os ex-empregados deixassem também seu legado e interagissem com a nova equipe de advogados. Eu escreveria as histórias com o apoio da equipe interna, principalmente com as pesquisas dos documentos e informações, e no dia da apresentação, ao término da contação da história, iniciaria o debate com o ex-profissional convidado. As linhas de base do projeto estavam bem definidas, era o momento de começar a escrever as histórias que iriam compor o legado.

O contexto que deu início aos debates dos temas foi o questionamento da diretoria da Aneel, em junho de 2010, quando da análise do orçamento do ONS, a respeito dos motivos para a agência aprovar a peça orçamentária do Operador. A dúvida suscitada acarretou na constituição de um grupo multidisciplinar, envolvendo praticamente todas as superintendências da agência, para elaborar proposta de alteração na governança do ONS, incorporando melhores práticas de gestão orçamentária e governança regulatória.

A proposta inicial desse aprimoramento somente foi a público em 2013, com a abertura da Audiência Pública (AP) nº 016/2013, com prazo para contribuição de 7 de março a 8 de abril daquele ano. E assim, como conta a História 1, o processo perdurou por bons anos, com três fases de discussão, culminando na publicação da REN Aneel nº 780/2017, em 25 de julho de 2017.

Para escrever as histórias me foi exigido, além do esforço de lembrar de eventos e momentos de mais de dez anos atrás, debruçar na leitura e pesquisa de muitos documentos — arriscaria dizer que foram mais de mil. Nesse processo, aproveitei para organizar os arquivos digitais da gerência, o que também seria um importante legado a deixar.

Acrescentaria três outros desafios. O primeiro, a dificuldade de escrever um texto em forma de história e não de um artigo ou peça jurídica. Para isso, investi em estudos sobre a técnica storytelling e no excelente curso de oratória Clube da Fala, que me orientou na parte oral da exposição.

O segundo, foi evitar ao máximo (é claro que nem sempre consegui) externar as minhas teses sobre cada um dos temas. Eu precisava apresentar a história sem emitir opinião sobre o que entendia daquele ou de outro assunto. Tratar de governança, funding, vício de iniciativa para revisão do estatuto, fazia parte do meu dia a dia na Organização, o que agigantava meu desafio.

E, por fim, manter a atenção dos espectadores, tal como estou me esforçando para fazer agora, na preparação deste artigo. Na contação da história utilizei um material de PowerPoint de altissima qualidade elaborado pela dupla de gênios “da arte”, que faz parte da equipe do Jurídico, além de contar com o apoio da Gerência Executiva de Comunicação e Relacionamento com a Sociedade.

A cada nova história, outros profissionais da Organização foram chegando para participar daquele momento. O convite era feito para aqueles que tinham afinidades com o tema, tais como: financeiro, governança, riscos, pessoal.

Em síntese, apresento os principais pontos abordados e discutidos em cada uma das histórias.

Na História 1, foram abordadas as três “Fases da Audiência Pública Aneel nº 016/2013”, que culminou na publicação da REN Aneel nº 780/2017. Foram boas discussões tanto no aspecto formal, ou seja, sobre a competência legal da Aneel para propor alteração no Estatuto do ONS, quanto no aspecto material, abordando com profundidade as seguintes temáticas: aprimoramento da gestão e governança; forma de custeio do ONS (funding); receita extraorçamentária; multas Aneel e metas de desempenho.

Na História 2, relembramos os traços principais da governança do ONS que estão contidos na lei de sua criação (lei nº 9.648/98), que instituiu o Operador como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, integrado por titulares de concessão, permissão ou autorização e consumidores que tenham exercido a opção prevista nos artigos 15 e 16 da lei no 9.074/95, e que sejam conectados à rede básica.

Enfrentamos o debate sobre a natureza jurídica sui generis do ONS, dadas as características particulares da “associação ONS”. Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o tema, escrevi um artigo sobre o assunto no livro Temas relevantes no direito de energia elétrica. Além disso, pontuamos e poderamos os limites de atuação dos agentes dentro de um sistema de governança.

À luz da REN Aneel nº 780/2017, fica evidente a necessidade de um diálogo com a agência, de forma a pacificar um conflito antigo a respeito do papel da Aneel na governança do Operador.

Neste mesmo viés, mas já avançando para a História 3, abordamos os parâmetros e as métricas estabelecidas na REN Aneel nº 780/2017, no esforço de trazer maior entendimento sobre o que a Aneel considera gastos prudentes e eficientes. Afinal, o regulador é responsável por aprovar o orçamento do ONS. A despeito do processo robusto de aprovação do orçamento do ONS por sua alta direção (Diretoria colegiada, Conselho de Administração e Assembleia Geral), que indubitavelmente demonstra a responsabilidade do Operador para com a gestão orçamentária, ainda são recorrentes os debates com a Aneel sobre as necessidades de recursos para que o ONS realize sua missão legal, sobretudo a respeito da rubrica de pessoal. E, neste particular, a regulação incluiu vedação à prática de salários superiores aos do mercado. Os efeitos danosos deste comando se arrastam a cada orçamento do ONS, principalmente pelo fato de o dispositivo regulatório ser amplo e subjetivo, comportando interpretações a cada ciclo orçamentário.

Para demonstrar o quão abragente é a REN Aneel nº 780/2017, basta a leitura da História 4, que aborda o tema da Performance Organizacional/ Programa de Participação de Resultados contemplados na resolução. O cerne da proposta era apoiar o ONS na adequação da Performance Organizacional (PO), mecanismo implantado desde 2006, com natureza de incentivo à produtividade por meio de metas anuais para os empregados de acordo com o Programa de Participação de Resultados (PPR), previsto na lei nº 10.101/2000. Com o enquadramento, o ONS teria uma redução tributária significativa, o que contribuiria para a modicidade tarifária.

Outro tema que sempre me intrigou, e que foi objeto de discusão na Audiência Pública Aneel nº 016/2013, são as fontes de receita do ONS (funding). A primeira definição do funding consta do primeiro Estatuto do ONS, aprovado pela Resolução Aneel nº 307 de 30 de setembro de 1988, da seguinte forma: I – uma parcela dos encargos de uso do sistema de transmissão, definida pela Aneel; II – contribuição dos associados, proporcional ao número de votos na Assembleia Geral; III – outras fontes que venham a ser aprovadas pela Aneel. Na REN nº 780/2017, foram incluídas duas outras fontes de recursos: IV – receitas provenientes da emissão de documentos e prestação de serviços aos agentes do setor elétrico; e V – receitas provenientes de convênios firmados com entidades sem fins lucrativos.

Na constituição do Operador, foi definido que cerca de 93% do orçamento advém da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST, paga pelos usuários do sistema) e 7% por meio de contribuição associativa. Essa distribuição evoluiu e, com base na REN Aneel nº 780/2017, hoje tem a relação de cerca de 97% para TUST e 3% para a contribuição associativa. O principal debate da AP Aneel nº 016/2013, que originou a REN Aneel nº 780/2017, foi trazer à reflexão qual seria a melhor forma de custeio para o ONS. A totalidade (100%) por meio de contribuição? Ratear contribuição e TUST em 50% cada? A complexidade e os reflexos (interfere na governança, rebatimentos tributários e outros) fizeram com que o tema fosse remetido a uma Consulta Pública (nº 04/2018) com o objetivo específico de aprimorar o cálculo da TUST e da forma de rateio do orçamento do ONS.

Ao final das duas discussões, de todas as alternativas apresentadas, por mais que houvesse pontos positivos e negativos, foram mantidos os critérios atualmente utilizados para o rateio do orçamento do ONS, sendo entendido que esta sistemática representa menor risco financeiro e regulatório e que assegura a isonomia entre os agentes nas regras de repartição, seja por contribuição associativa seja por tarifa, de modo que não haja tratamento diferenciado.

Dentro do aspecto do funding, existe outra discussão que foi apenas tangenciada no processo de tramitação da REN nº 780/2017, mas que, para mim, talvez seja o tema central a ser refletido. Afinal, por que é a Aneel que define o funding do ONS? Para esta pergunta ainda não encontrei resposta.

Nas Histórias 6 e 7, relembrei uma saga ainda sem fim. Primeiro, abordei e apresentei, com detalhes, toda a discussão existente entre o ONS e o regulador, e até mesmo no Judiciário, acerca da (im)possibilidade de aplicação de multa pela Aneel por ausência de fundamento legal e/ou pela regulação prever outras modalidades de penalização (em especial, a obrigação de fazer e não fazer) que se mostram mais aderentes à natureza do Operador. E é importante lembrar que na discussão da atual REN Aneel nº 846/2019 – que dispõe sobre os procedimentos, parâmetros e critérios para a imposição de penalidades aos agentes do setor de energia elétrica – foi prevista em uma de suas versões que ao Operador seriam aplicadas, preferencialmente, as penalidades de obrigação de fazer e não fazer. Na versão final este texto não permaneceu e, na prática, desde a publicação dessa resolução não experimentamos nenhuma mudança na fiscalização do regulador.

O foco principal da REN Aneel nº 780/2017 foi a forma de arrecadação de valores para o pagamento de eventuais multas aplicadas pela Aneel ao Operador, sendo definido que seria suportado por contribuições associativas dos agentes sem repasse tarifário. Esse dilema já vinha sendo enfrentado desde 2009, em razão de alteração ocorrida na antiga REN Aneel nº 63/2004, que vedou o repasse tarifário de multas apilcadas pela Aneel ao ONS. A proposta não levou em conta a natureza sui generis do Operador, em especial a alteração ocorrida no marco regulatório do setor em 2004, que conferiu competência exclusiva à diretoria do ONS para exercer as atribuições técnicas, rompendo o nexo de causalidade entre a conduta praticada e a consequente responsabilização.

Por fim, não foi por acaso que escolhi para a última história abordar os instrumentos para a eficácia da regulação, Análise de Impacto Regulatório (AIR) e Avaliação de Resultado Regulatório (ARR). Ambos os instrumentos são previstos pela própria Aneel e visam melhorar a qualidade das decisões da agência no tocante à expedição de uma regulação: verifica-se se os benefícios potenciais da medida excedem os custos estimados (AIR) e avalia-se o desempenho do ato normativo adotado ou alterado, considerando se foram atingidos os objetivos e resultados pretendidos, bem como demais impactos observados sobre o mercado e a sociedade (ARR).

A primeira discussão foi a ausência de AIR para a elaboração da REN Aneel nº 780/2017, o que foi sanado na III Fase da Audiência Pública – AP nº 016/2013, ou seja, na fase final que antecedeu a expedição da resolução normativa.

Como explanado até aqui, as oito histórias estruturam temas que sofreram reflexos significativos para o ONS desde o advento da REN Aneel nº 780/2017, e que, portanto, clamam por uma nova reflexão pelo regulador, o que torna oportuno utilizar o mecanismo regulatório da ARR.

Afinal, os objetivos pretendidos pela resolução foram atendidos? Que outros reflexos não foram vislumbrados pela Aneel quando do início dessa discussão?

Em algumas oportunidades o ONS apresentou, sem sucesso, esse pleito à Aneel. Mas, para a boa surpresa de todos, após contar a última história do legado, a diretora da Aneel, relatora do processo de análise do orçamento do ONS para o ciclo 2023/2025, em seu voto pela aprovação integral do orçamento proposto pelo ONS declarou ser oportuna a ARR, de modo que os resultados possam ser aplicados, eventualmente, no próximo ciclo orçamentário (2025-2027).

Posteriormente, por advento do Decreto nº 10.139/2019, foi determinada a revisão e consolidação de todos os atos normativos inferiores a Decreto, compreendendo, portanto, as regulações da Aneel. 

E a Portaria da Aneel nº 6.405/2020 dispôs sobre as competências e o detalhamento dos procedimentos para os trabalhos de revisão e consolidação de atos normativos inferiores a decreto no âmbito da Aneel. 

Neste contexto, a REN Aneel nº 780/2017 foi revogada pela REN nº 1.017/2022, mantendo quase a integralidade dos dispositivos da antiga Resolução. 

Ao encerrar essa jornada, recordamos, com êxito, os resultados que nos moveram a pensar nesse projeto: ampliar o repertório dos profissionais da atual equipe do Jurídico para dar continuidade à discussão dos temas; fomentar a prática de legados para os temas que estão sendo conduzidos atualmente na equipe e despertar o interesse dos profissionais em escrever novas histórias sobre o ONS.

E, para concluir, uma moral da história, utilizando uma frase célebre do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. E é por isso que instigo você a deixar seu legado, compartilhando o que tem de mais valioso para aqueles que cativou nesta estrada, e que certamente lembrarão de você. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº5/ 2022.

Referências Bibliográficas:

ROCHA, Fabio Amorim da. Temas relevantes no direito de energia elétrica (vol. II), Rio de Janeiro: Synergia, 2013.