Preservar para irradiar

01/03/2022

O acervo da Fundação Energia e Saneamento é rico em documentos de fonte primária para a pesquisa de todos os interessados na área energética e do desenvolvimento urbano do estado de São Paulo. Os conteúdos já digitalizados, como fotografias dos séculos XIX e XX de São Paulo e objetos cotidianos dos anos 1950, encontram-se disponíveis para acesso no site institucional.

A Fundação foi criada em 1998, com o intuito de guardar, preservar e divulgar o patrimônio material referente à história da energia, da industrialização e da urbanização do estado de São Paulo, recolhido pela instituição no momento de privatização do setor nos anos 1990. Esse acervo foi gerado no decorrer do desenvolvimento das atividades energéticas no Brasil por diversas companhias nacionais e estrangeiras desde as últimas décadas do século XIX.

Visando consolidar a difusão desses patrimônios, a Fundação, além da sede do acervo, em Jundiaí, mantém uma rede de Museus da Energia em três cidades paulistas: Itu, Salesópolis e na capital São Paulo. A instituição tem como propósito inspirar pessoas sobre o valor da água e da energia para a vida.

O Acervo da Fundação Energia e Saneamento conta com mais de 300 mil itens e 42 fundos e coleções. Em números aproximados, contam-se 1.600 metros lineares de documentos textuais, 260 mil documentos iconográficos, 2.300 documentos audiovisuais e sonoros, 10 mil documentos cartográficos, 50 mil títulos na biblioteca e 4.050 itens no acervo museológico.

O acervo encontra-se armazenado na Reserva Técnica, em Jundiaí, em uma edificação dos anos 1920 que abrigara uma antiga subestação de energia da cidade e foi adaptada para o recebimento dos documentos, com a instalação de aparelhos de ar-condicionado, desumidificadores e estantes deslizantes e simples de aço. O espaço é organizado em blocos separados, de acordo com os gêneros documentais. Há, no momento, seis espaços para armazenamento adequado de todo o acervo.

A Reserva Técnica 01 (RT01) acondiciona a maior parte dos documentos textuais, audiovisuais, sonoros eletrônicos e a biblioteca; a RT02 acondiciona os acervos cartográfico, iconográfico e parte do textual; a RT03 acondiciona o acervo audiovisual analógico e uma pequena parte do iconográfico. Já as Reservas Técnicas de número 04, 05 e 06 acondicionam o acervo museológico. Por ser um acervo histórico de grande dimensão, não faltam desafios para a sua preservação.

O acervo é fundamentalmente composto por fotografias em diversos formatos, além de documentação textual e filmes, sendo a maior parte das consultas de pesquisadores direcionada ao acervo de textos e imagens. Isto se deve ao foco de organização do acervo definido na época de constituição da Fundação, que priorizou trabalhos em algumas coleções e fundos documentais. É o caso da Série São Paulo, com imagens da capital paulista no começo do século XX, pertencentes ao fundo The São Paulo Tramway, Light & Power Company (popularmente conhecida como Light), da coleção do fotógrafo Guilherme Gaensly (1843-1928). O fotógrafo fez registros importantes para a Light, referentes à eletrificação da cidade de São Paulo, nos quais é possível observar não apenas a instalação de postes de iluminação, linhas de bonde e outras estruturas de energia, mas também todo o entorno, como prédios, meios de transporte, calçamentos e até cidadãos em seus afazeres cotidianos pela capital paulista.

O acervo da Fundação é reconhecido como fonte de pesquisa histórica, com o devido tratamento, higienização, catalogação e disponibilização gratuita para pesquisa. O acesso a documentos exige atividades de salvaguarda (conservação e preservação) e catalogação em base de dados nas quais os pesquisadores obtêm acesso aos metadados. Isto só é possível devido ao empenho do corpo técnico da Fundação Energia e Saneamento, que, a partir de estudos e reuniões, estabelece prioridades de tratamento documental, elegendo os documentos fundamentais para auxiliar na expansão do conhecimento sobre as cidades de São Paulo no século XX.

O tratamento de conservação do acervo é o primeiro passo para possibilitar o acesso à documentação. O acervo fotográfico de Gaensly, por exemplo, composto por negativos de vidro e seus respectivos positivos fotográficos (fotografia em papel), demandou um trabalho multidisciplinar, exigindo do corpo técnico estudos sobre processos históricos de produção fotográfica para estabelecer parâmetros técnicos de preservação, tais como: materiais que deveriam ser utilizados para higienização e embalagem, equipamentos e mobiliários adequados para a execução dos serviços e de sua guarda, bem como conhecimento de técnicas de restauro específicas para materiais utilizados no começo do século XX.

Esse processo de trabalho foi incorporado e permanece na cultura da instituição, onde, antes de quaisquer procedimentos de conservação e preservação, se faz necessária a realização de reuniões para definição de prioridades, apontando-se as reais necessidades de compra de materiais adequados para acondicionamento e higienização. Devido ao grande volume de acervo, anualmente são estabelecidas metas de trabalho, levando-se em consideração não apenas as informações registradas, mas também o estado de conservação do acervo para a realização de ações de salvaguarda, priorizando os documentos que estejam com problemas.

Um aspecto importante no histórico do acervo são as mudanças de local de guarda, fato comum também em outras instituições. Para preservação de um acervo de valor histórico, além das questões de higienização e acondicionamento, um ponto a ser considerado é a climatização do ambiente para estabilização dos processos de degradação.

No caso do acervo da Fundação Energia e Saneamento, houve, ao longo dos anos, a mudança de endereço em três ocasiões. Isto se deu devido os espaços de guarda terem sido cedidos por empresa instituidora da Fundação como forma de apoio, e não em caráter definitivo.

A primeira sede do acervo localizava-se em São Paulo, no bairro do Cambuci, em um espaço amplo que integrava a área de acervo (Reserva Técnica) e a administrativa, incluindo o atendimento à pesquisa. Naquele local, um edifício antigo em amplo terreno que abrigou, no começo do século XX, as oficinas de bondes elétricos da Light, ocorreram adaptações, sendo utilizados desumidificadores e equipamentos de ar-condicionado. Em 2013, o acervo foi transferido para o bairro da Penha, também na cidade de São Paulo, o que demandou um estudo prévio sobre o melhor local para instalação dos equipamentos de climatização e regulagem que garantiriam temperatura (T) e umidade relativa do ar (UR) estáveis em uma sala única, em um espaço compartilhado entre o setor administrativo e a Reserva Técnica.

Devido à necessidade de mudança do acervo demandada pela empresa apoiadora que cedia o edifício na Penha, a Fundação optou por planejar a transferência de seu acervo para uma sede própria, enquanto o mesmo foi destinado temporariamente a uma reserva técnica de empresa especializada. Após estudos e adaptações, em 2015 o acervo foi transferido, em definitivo, para a sua sede atual em Jundiaí, em imóvel de propriedade da Fundação. Nesse espaço, foram realizados estudos para manutenção de T e UR estáveis, com uma nova organização: o acervo foi distribuído segundo o gênero documental, levando em consideração a sua climatização, com cada gênero obtendo índice adequado próprio de T e UR. A resolução foi implementada para criar um local apropriado para cada um dos grupos documentais, visando sua estabilidade e preservação.

A climatização é parte fundamental da preservação e salvaguarda do acervo, e demanda empenho e dedicação constantes da equipe para aferições de T e UR, com a realização de ajustes necessários para a manutenção dos equipamentos e, por conseguinte, para a preservação do acervo.

Até meados dos anos 2000, a produção fotográfica era preponderantemente analógica, com a existência de um mercado pulsante de material fotográfico e de acondicionamento. Como qualquer mercado, a produção e venda de determinadas mercadorias dependem de sua demanda. A compra de itens como embalagens para guarda de negativos de filmes, molduras e caixas plásticas para slides e cartelas de poliéster para fotografias era facilitada por haver consumidores. Alguns insumos podiam ser facilmente comprados em lojas especializadas em material fotográfico. A compra de químicos para higienização e restauro também era facilitada pelo mercado aquecido. Em São Paulo, era possível ir à conhecida e tradicional Botica Veado D’Ouro e comprar os solventes necessários, ou ir à rua Conselheiro Crispiniano para adquirir cartelas de polipropileno para guarda de negativos.

Com a popularização das câmeras digitais, o mercado de fotografia analógica foi perdendo público e as lojas não tinham mais interesse em manter estoques de material de guarda ou produção desse tipo de acervo. Atualmente, a produção de fotografias em laboratórios com uso de papel fotográfico tornou-se um mercado de arte, no qual o papel fotográfico e os químicos para sua revelação são comercializados a preços elevados, bem como o material de acondicionamento e higienização. A compra de simples pincéis de cerdas naturais, cartelas de poliéster ou caixas confeccionadas em papel neutro representa altos custos, principalmente devido à necessidade de importação de insumos, com o valor do dólar influindo diretamente na oscilação dos preços.

Molduras plásticas para slides dificilmente são encontradas hoje. Não há interesse das lojas especializadas em encomendar este tipo de material e, por conseguinte, não há também interesse em sua fabricação. Devido à pouca saída, fecha-se um ciclo de produção e de existência de tais produtos. O que resta ao profissional de acervos históricos? Criatividade, muito conhecimento sobre química de materiais para elaboração de embalagens e utilização de materiais de higienização compatíveis com as premissas de conservação.

Se, por um lado, enfrenta-se dificuldades para encontrar poliéster, por outro é simples adquirir sacos plásticos de polipropileno (PP) e há fornecedores especializados em fabricação de caixas com material quimicamente estável e neutro. Assim, vem surgindo um novo caminho para se conseguir manter arquivos conservados e preservados, mesmo diante de restrições quanto a fornecedores e preços acessíveis.

Hoje, é preciso estabelecer uma rede de troca de informações sobre procedimentos de conservação e preservação. A indicação de um simples papel pode ajudar, sobremaneira, um parceiro da área de acervos históricos. A mudança do mercado de produção de insumos de conservação nos leva a buscar novos caminhos e realizar novas pesquisas. A grande saída é a colaboração de todos para estabelecer ações de salvaguarda viáveis no cenário atual. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº5/ 2022.