Testemunho da verdade

01/03/2022

Nos últimos quarenta anos, vimos proliferar a produção mnemônica sobre a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente sobre a experiência dos judeus, principal grupo atingido pela política nazista. Seja no campo da literatura, do cinema, dos arquivos e patrimônio, muito tem sido dito ou mostrado, nos mais variados formatos e suportes.

Entre as múltiplas possibilidades do dizer, no entanto, uma adquiriu especial proeminência: os arquivos constituídos por relatos. Diferentes dos arquivos pessoais, em que indivíduos realizam um processo de autoarquivamento de seus documentos privados, trata-se de grupos e instituições voltados à coleta de narrativas autobiográficas, comumente associadas a projetos de História Oral ou Visual. Muitas vezes sem incorporar um único documento para além do testemunho, constituem coleções de histórias de vida, produzidas em um contexto designado por Beatriz Sarlo de “guinada subjetiva”, no qual a reconstituição da textura da vida adquiriu valor e estatuto de verdade, por meio da “rememoração da experiência, da revalorização da primeira pessoa como ponto de vista e da reivindicação de uma dimensão subjetiva”. Esses indivíduos são instados a falar sobre o seu passado a partir de um enquadramento institucional que não é neutro, e que reflete um desejo de memória de determinados grupos sociais, mobilizando questões como identidade social, perspectivas político-ideológicas e seus imbricamentos com os contextos históricos, políticos, culturais e tecnológicos nos quais foram produzidos.

Muitas foram as iniciativas para constituir arquivos de testemunhos de sobreviventes do Holocausto, em diferentes épocas e cantos do mundo: os pioneiros relatos coletados pelas Comissões Históricas no imediato pós-guerra em Munique, Varsóvia, Lodz, Lublin, Paris, Bratislava, Budapeste, passando pelo trabalho no Instituto Yad Vashem, em Israel, iniciado antes mesmo de sua criação oficial, em 1953; os projetos surgidos nos Estados Unidos em especial a partir da década de 1970, como o do Fortunoff Video Archive for Holocaust, abrigado a partir de 1981 na Universidade de Yale, o Jewish Family and Children’s Services, na área de São Francisco, também nos anos 1980, o United States Holocaust Memorial Museum (USHMM), iniciado em 1989 (antes da inauguração do próprio museu); ou ainda, no Brasil, o Arquivo Virtual sobre Holocausto (Arqshoah), iniciativa abrigada na Universidade de São Paulo desde 2015.

Neste texto vamos abordar uma experiência em particular, criada no contexto estadunidense nos anos 1990, então intitulada Fundação da História Visual dos Sobreviventes do Holocausto (Survivors of the Shoah Visual History Foundation), ou simplesmente Fundação Shoah. Criada em 1994 por Steven Spielberg, sua origem remonta ao período em que o cineasta filmou A Lista de Schindler (1992), quando foi, segundo ele, fortemente impactado pelo contato direto com os sobreviventes do Holocausto. Foi criada em Los Angeles uma organização sem fins lucrativos dedicada a registrar a experiência desses indivíduos a partir de sua própria voz. Tendo à frente cineastas, historiadores e educadores, conseguiu coletar entre os anos de 1994 e 1999 cerca de 50 mil testemunhos em mais de 30 países, entre eles o Brasil, o que foi possibilitado pela construção de uma rede transnacional baseada, em grande parte, por trabalho voluntário ou semi-voluntário. Esse empreendimento, qualificado como “luta contra o tempo”, possibilitou o acesso aos sobreviventes que, já naquele momento, estavam com idade bastante avançada.

O arquivo estabeleceu parâmetros de coleta a partir de um diálogo com experiências prévias – como as do USHMM (Washington, DC), do Museum of Jewish Heritage (Nova York), do Museum of Tolerance (Los Aangeles) e de outros projetos de história oral, como aqueles coordenados por Leni Silver (São Francisco) e Bonnie Gurwevistch (Nova York). Marcada pela sua origem no cinema e por um forte caráter tecnológico, a experiência resultou na constituição do maior arquivo desse tipo já construído, desdobrando-se em diferentes produtos (livros, documentários, exibições on-line, CD-ROMs, material educativo, entre outros), tornando-se uma referência na área.

Cabe compreender a emergência desse e dos outros arquivos similares em meio a um contexto mais amplo, no qual se destaca a valorização da noção de “experiência”, em que a trajetória biográfica emerge como algo que merece ser contado. Vale mencionar outros dois elementos importantes da sensibilidade contemporânea: a mudança no estatuto do sofrimento, que qualificaria um certo tipo de experiência a ser narrada, e a reconfiguração tecnológica pela qual as sociedades vêm passando a partir de meados do século XX.

Em seu trabalho sobre a constituição do trauma como categoria de pensamento da contemporaneidade, Didier Fassin e Richard Rechtman sinalizam a emergência de uma nova economia moral, na qual o sofrimento tornou-se um sentimento valorizado e entendido como fonte de autenticidade dos eventos. Retraçando uma longa história que tem como marco o início do século XX, os autores mencionam a experiência dos sobreviventes de acidentes de trem e dos combatentes da Primeira Guerra Mundial. Enquadrado sob o rótulo da categoria diagnóstica neurose traumática, o sofrimento manifestado por eles era visto com desconfiança, seja como uma estratégia para obtenção de compensações financeiras (no caso dos acidentes) ou como covardia (no caso dos soldados, que supostamente estariam visando à fuga do front de guerra); em ambos os casos, indicava algum tipo de falha moral.

Muito diferente foi o cenário que emergiu na segunda metade do século XX, quando se estabeleceu uma nova relação com o passado. Os grupos perseguidos pela política nazista, posteriormente chamados de sobreviventes do Holocausto, os veteranos da Guerra do Vietnã, as mulheres que denunciaram casos de estupro e outras violências no âmbito do movimento feminista, os grupos ligados ao movimento negro que se pronunciaram sobre a escravidão, entre outros exemplos, revelavam uma nova relação com o passado, na qual esses sujeitos passavam a pleitear seu lugar de vítimas. Essa nova concepção de sofrimento, pensado não exatamente como uma questão interior, psíquica, e sim como algo concreto decorrente de um evento externo violento, fez emergir no debate público a dimensão política do testemunho. Ele passa a ser valorizado, compreendido enquanto prova, despertando noções como “dever de memória”, na qual a vítima desfruta de um novo estatuto moral, positivado. Não por acaso, os anos 1980 e 1990 assistiram à proliferação de narrativas testemunhais, em geral feitas no âmbito de projetos de História oral, configurando o que alguns autores denominam de Era do Testemunho.

Um terceiro e último ponto merecedor de destaque diz respeito ao cenário comunicacional no qual essas iniciativas foram criadas. Os anos 1990 já se configuravam como um momento de plena constituição da sociedade de massas, marcados pela centralidade dos meios massivos, o que se percebe tanto pela origem da Fundação Shoah como pelas escolhas metodológicas e os usos feitos a partir do arquivo, com a vasta produção de documentários, exibições online e outros produtos derivados do acervo audiovisual. As décadas seguintes foram palco de uma reconfiguração ainda mais profunda, mediante o processo de midiatização das sociedades, com a diluição de fronteiras e o transbordamento da cultura midiática para outras instituições não-midiáticas e as relações interpessoais cotidianas. Esse processo foi acompanhado da dataficação e de uma nova organização dos dados nas plataformas digitais. Os impactos desses processos nas práticas mnemônicas não seriam banais, afetando tanto a produção dos objetos – com uma memória cada vez mais eletrônica – como a sua fruição, embaralhando progressivamente os âmbitos de produção e recepção dos bens simbólicos e acirrando de forma inédita a velocidade e alcance de sua circulação.

Que vida merece ser contada?

O primeiro ponto a ser destacado sobre o trabalho da Fundação Shoah se refere às suas políticas gerais de colecionamento, a começar pela definição daqueles cuja história de vida era considerada merecedora de ser registrada. A própria categoria “sobrevivente do Holocausto”, embora referida à experiência na Segunda Guerra Mundial, é, como qualquer outra, um construto social. Este termo, praticamente inexistente no pós-guerra (quando a principal palavra utilizada para se referir a esse grupo era “refugiados”), vai assumindo proeminência a partir da década de 1970. Em um primeiro momento, referia-se prioritariamente à experiência dos campos de concentração. Nos anos subsequentes, o debate da historiografia reveria essa restrição, incorporando outras experiências, perspectiva que se observa nas políticas de colecionamento da Fundação Shoah desde a sua origem.

Definiam-se como pessoas a serem entrevistadas aquelas que estiveram em guetos, campos de trabalho, concentração ou extermínio, se esconderam, viveram sob falsa identidade ou participaram de atividades de resistência, ou que foram de algum modo perseguidas pela política nazista em território ocupado pela Alemanha entre 1933 e 1945. Nesse grupo emergiram novas categorias, como os “sobreviventes-crianças”, vivência por muito tempo secundarizada por ser considerada “pouco palpável” e de memória “pouco precisa”. Elas passam a ser objeto de metodologias próprias e desdobradas em subcategorias, como foi o caso dos kindertransporten, crianças enviadas à Inglaterra por trem pelas próprias famílias para salvá-las do jugo nazista.

Essa ampla definição incluía, além dos judeus, grupos como ciganos, comunidade LGBTQIA+, Testemunhas de Jeová, sobreviventes de políticas de eugenia e prisioneiros políticos. Também foram entrevistadas testemunhas e participantes de Tribunais de Guerra, pessoas que ajudaram a salvar os grupos perseguidos — como agentes da diplomacia — e membros dos exércitos aliados que libertaram os campos de concentração ao final do conflito. Essas escolhas revelavam o registro de experiências de diferentes tessituras, sejam as de indivíduos comuns, em seus relatos ordinários e cotidianos, sejam as de ocupantes de posições de destaque na burocracia estatal.

A definição dos entrevistados envolvia, ainda, outras questões. Como qualquer arquivo, o debate sobre os critérios de inclusão/exclusão era marcado por uma dimensão “técnica”, mas estava indissociado do sistema de crenças e valores das sociedades nos quais foram construídos e se articulava a um desejo de memória dos grupos que os operacionalizavam. Nesta cosmovisão, percebe-se a importância do sofrimento como categoria central a definir as escolhas e delinear os sentidos do trabalho empreendido. Por outro lado, houve a exclusão dos “perpetradores”, sob o argumento de que não se iria retirar os escassos recursos “dos que sofreram para os que imputaram sofrimento”. Havia, em tal avaliação, todo um sentido de moralidade, que não excluía o reconhecimento do valor histórico das entrevistas dos algozes. No entanto, era o sofrimento o definidor do sentido do trabalho realizado: prestar uma homenagem aos que merecem, descartando os causadores daquela dor. “Sofrimento”, “justiça”, “reparação” e “honra” eram categorias chaves que permitiam compreender as fronteiras demarcadas e formavam um continuum que sustentava aquele sistema moral.

Um momento crucial: a entrevista

Todo o contato com os sobreviventes era fortemente regrado, revelando uma relação de reverência e cuidado com esse grupo. Isso se expressava desde o início, ao se evitar o acesso direto aos potenciais entrevistados, mobilizando-se, em vez disso, sua rede de sociabilidade para consultar sobre a disponibilidade para dar o testemunho. Uma vez obtido o aceite prévio, agendava-se a entrevista.

O trabalho consistia em duas etapas e em geral ocorria nas casas dos entrevistados. O primeiro encontro se dava de forma mais reservada, contando apenas com a presença do entrevistador e do entrevistado. Por meio de um questionário, buscava-se registrar com precisão datas e nomes, contornando as dificuldades de idioma, pronúncia e da falta de familiaridade com aspectos específicos da geopolítica da guerra. Essas informações possibilitavam a realização de uma pesquisa, crucial à elaboração do adequado roteiro. Explicava-se a dinâmica de trabalho, que envolvia o convite a exporem documentos e objetos (como passaportes, roupas da guerra, fotografias) e era solicitada permissão para a gravação em vídeo e uso de imagem. O primeiro contato permitia uma aproximação entre os envolvidos, uma vez que o testemunho seria centrado no relato de situações-limite, reforçando a necessidade de um clima de confiança e afetividade.

Ao segundo encontro, o entrevistador chegava acompanhado do cinegrafista e do assistente de produção, com os equipamentos necessários (câmeras, microfone, luzes, fitas Betacam). Estruturado em três blocos – o período antes, durante e depois da guerra – o roteiro previa em sua última parte a exibição dos objetos e documentos selecionados, e em seguida a apresentação da família, que poderia proferir breves palavras. Embora não houvesse um tempo predeterminado, em geral a gravação tinha duração média de duas horas.

Não era permitido interromper a gravação, sendo qualquer pausa realizada apenas ao término da duração de cada fita Betacam (30 minutos). Não era permitida a leitura de textos ou outros escritos, tampouco a presença de outras pessoas no local de gravação. Essas regras refletiam uma preocupação explícita com as narrativas negacionistas ou revisionistas do Holocausto, que poderiam contestar da veracidade dos depoimentos. Era um tópico ainda mais delicado devido à íntima relação do projeto com o universo do cinema. Buscava-se afastar qualquer suspeita de que houvesse um “roteiro” por trás das falas, ou que algum acompanhante (esposa, filhos, amigos) pudesse estar provendo informações, numa “memória emprestada”. O objetivo era a confirmação inequívoca do valor dos testemunhos enquanto prova, corroborando o que autores como Ricoeur, Fassin e Rechtman afirmam sobre a importância do Holocausto no estabelecimento das relações entre testemunho e verdade.

O arquivo: usos e produtos

Após a realização da entrevista, as fitas seguiam para Los Angeles, onde eram feitas diferentes cópias de trabalho. Uma delas era enviada ao sobrevivente, constituindo uma espécie de cumprimento de dever moral, numa economia simbólica na qual o que estava sendo devolvido não era apenas uma fita de vídeo, mas relatos, honras, ressarcimento e objetos de família. Era comum a cópia ser assistida entre amigos sobreviventes, mas o principal circuito de exibição se dava no grupo familiar. Há vários relatos de que a gravação era utilizada como vetor de transmissão de uma memória antes nunca compartilhada.

A entrevista tinha outro desdobramento importante, que era a constituição em si do arquivo. Nesse sentido, ela era catalogada, ou seja, cortada em segmentos, descrita e indexada com palavras-chave. Para tal, foi desenvolvido um software inédito de catalogação e recuperação de dados que pudesse ser capaz de processar mais de 100 mil horas de entrevista com precisão e velocidade. Esse processo levou anos e permitiu o melhor manejo de uma coleção monumental, potencializando a criação de inúmeros produtos. Permitiu, também, que posteriormente o arquivo fosse disponibilizado em universidades e centros de pesquisa pelo mundo via internet.

Os anos de 1994 a 1999 representaram o momento de maior esforço de coleta, quando foram obtidos cerca de 50 mil testemunhos. A experiência do Holocausto no arquivo totaliza, atualmente, aproximadamente 55 mil entrevistas, sendo 19.836 feitas nos Estados Unidos, 8.457 em Israel, 3.427 na Ucrânia, 2.819 no Canadá, 2.479 na Austrália e 1.652 na França. No Brasil foram entrevistados 564 sobreviventes, a maioria em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Após o término desse período inicial, a Fundação Shoah empreendeu uma revisão de seus propósitos, o que levou à reconfiguração da primazia das entrevistas para a viabilização do uso do arquivo. Tal transição foi consagrada por uma importante mudança ocorrida em 2006: a incorporação do projeto à Universidade do Sul da Califórnia (USC), que gerou o deslocamento físico para o campus universitário e a alteração do nome da instituição, que passou a ser USC Shoah Foundation – The Institute for Visual History and Education (ou seja, Instituto para História e Educação Visuais).

A incorporação à universidade ampliou algumas das atividades então em curso, como a produção de material educativo para o mundo acadêmico, com o estímulo ao uso do arquivo pelos alunos de graduação e pós-graduação como fonte de pesquisa e em concursos para a produção de filmes ou outros produtos artísticos. Viabilizou, também, a oferta de disciplinas com o uso do material e/ou a metodologia desenvolvida. Em 2014, foi criado o Centro de Estudos Avançados sobre Genocídio, voltado à promoção de palestras e oferta de bolsas para pesquisadores externos. Naquele momento se deu a citada expansão dos materiais por internet para diferentes espaços acadêmicos e de memória, levando o seu acesso integral a 138 instituições de 15 países, e de forma parcial a 232 instituições de 36 países, bem como provendo acesso aos metadados dos 55 mil entrevistados.

Nesse novo momento, duas características se destacam. A primeira refere-se à permanência do forte caráter tecnológico, já transmutada pelas novas características de uma sociedade marcada pela midiatização e plataformização. O portal crescentemente tornou-se uma importante via de acesso à instituição, proporcionando conhecimento sobre sua história, atividades, metodologia, catálogo com metadados, clips de entrevistas, entre outros produtos, e alcançou a marca de 15 milhões de usuários por ano. Vale mencionar em especial a plataforma IWitness, inaugurada em 2009, que fornece acesso via YouTube a mais de 1.500 histórias de vida completas para a exploração guiada. Voltada para professores e alunos do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, oferece junto aos depoimentos informações históricas e atividades de aprendizado multimídia, permitindo não apenas assistir, mas também buscar, editar e compartilhar vídeos e imagens dentro de um ambiente controlado. Outra iniciativa de destaque é o Projeto Novas Dimensões do Testemunho, ferramenta interativa que projeta uma imagem tridimensional do sobrevivente, permitindo que o sistema reconheça as perguntas feitas pela plateia e configurando um tipo de conversa.

Por fim, cabe destacar a ampliação do escopo do arquivo, por meio de novas entrevistas e pela incorporação de coleções já previamente constituídas. O projeto Preservando o Legado possibilitou a inclusão do material registrado pelo pioneiro programa de história oral do Jewish Family and Children Services, da Baía de São Francisco. Além do Holocausto, outras experiências passaram a constituir o arquivo, como o genocídio contra armênios (1915-1923), o ocorrido no Camboja (1975-1979), o Massacre de Nanjing na China (1937), o genocídio contra os tutsi em Ruanda (1994), o genocídio na Guatemala (1978-1983) e os conflitos na República Central da África e Sudão. Vêm sendo também incorporados os testemunhos de atos contemporâneos de violência contra judeus ocorridos nos Estados Unidos (como o caso da profanação de cemitérios na Filadélfia em 2017) e em diferentes países pelo mundo (entre eles Bélgica, Dinamarca, França, Hungria, Suécia, Reino Unido).

Os novos desafios da memória

Se a memória é algo dinâmico, e invariavelmente representa uma resposta a uma pergunta que o presente nos coloca, cabe indagar que novas questões estão sendo colocadas no contexto contemporâneo e como o olhar sobre o passado nos ajuda a compreendê-las e, eventualmente, a enfrentá-las.

A constituição do arquivo da Fundação Shoah se inseriu em um amplo movimento de luta pelo reconhecimento da experiência dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Alvo de uma política genocida, a dizimação desse grupo foi seguida do silenciamento de suas memórias, que circularam em espaços subterrâneos restritos àqueles que participaram da guerra. Tendo o olhar fincado no presente, mais de 70 anos após o final do conflito, quando conquistas foram consolidadas, muitas vezes se naturaliza a dimensão desse esforço e de seu caráter processual.

Na dinâmica dos processos sociais, percebe-se nesse novo tempo da memória a emergência de novas questões. Entre elas, desponta com ênfase o debate sobre a comparabilidade. Historicamente, a luta política pelo reconhecimento deste evento-limite teve como uma de suas marcas a demanda pela ideia de singularidade. Observa-se, no entanto, o deslocamento dessa narrativa em muitos dos projetos sobre o tema, entre os quais a Fundação Shoah encarna um exemplo emblemático. A narrativa do Holocausto tem sido reposicionada na sua articulação mais explícita com outros eventos-limite da história, impactando sua própria nomeação no arquivo, agora designado no portal como “Holocausto Europeu”, ou seja, qualificando-o como um entre outros holocaustos_._ Isso assume concretude de outros modos, como pelo entrelaçamento dessa experiência com outras formas de genocídio e de opressão no presente. Vários são os projetos educativos que buscam entrelaçar as narrativas dos sobreviventes aos grupos de periferia social, econômica e discursiva estadunidenses, por exemplo.

Em uma sociedade marcada paradoxalmente pelo excesso e pela escassez de informação, na qual muito se sabe sobre o Holocausto ao mesmo tempo em que muitos ainda o ignoram, e na qual os indivíduos têm fácil acesso aos dispositivos tecnológicos que lhes permitem produzir, fazer circular e consumir bens simbólicos, a antiga relação entre testemunho e verdade mais do que nunca necessita ser reafirmada. Mas como ter a segurança de que a narrativa exibida corresponde a um evento histórico concreto, e não a uma fabulação ficcional? Que garantias temos ao nos depararmos com um contexto de recrudescimento do conservadorismo, dos discursos autoritários e dos negacionismos, com o enfraquecimento das autoridades da modernidade (historiadores, professores, cientistas), quando os critérios de aferição da verdade se dão pelas crenças e ideologias, e não pela veridicidade dos eventos? Agora, mais do que nunca, a luta pela memória se faz necessária e, nela, os arquivos desempenham um papel estratégico a cumprir. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº5/ 2022.

Referências Bibliográficas:

FASSIN, D. e RECHTMAN, R. The Empire of Trauma. An Inquiry into the Condition of Victimhood. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2007.

LERNER, K. Memórias da dor: narrativas e coleções sobre Holocausto. Brasília: IBRAM, 2013.

NAMER, Gerard. Mémoire et société. Paris: Méridiens Klincksieck, 1987.

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2007.

SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

VHA_Brochure_Jul_2015_email.pdf

WIEVIORKA, Annette. L’Ère du témoin. France: Plon, 1998. https://sfi.usc.edu/vha/access

https://www.yadvashem.org/archive/about.html