A memória e o lento tempo do luto

01/03/2022

Dirigir em estradas sempre foi um temido desafio. Sem ônibus ou caronas, se eu quisesse passear um pouco, viajar para lugares próximos, que fosse, teria que enfrentar meus temores, sobretudo considerando a pandemia de Covid-19. Saí então com meus filhos para o feriado de 7 de setembro rumo ao litoral norte de São Paulo. Horas na estrada depois de uma semana exaustiva. Entre tantas tarefas, escrevia um artigo em parceria com Filipe Costa, jovem orientando que agora concluía o doutoramento, e cujo mestrado havia sido também orientado por mim. Chovia um pouco e a rodovia congestionava. No carro sem painel multimídia tampouco câmbio automático, primeira, segunda, primeira, segunda, a troca de marchas facilitava o tempo da escuta de seus áudios sobre o texto em construção. Ajudada por Sofia e Ulisses, que traziam o microfone do celular para perto da minha boca, eu conseguia responder, avançar nossa assíncrona conversa. Ele já tinha visto minhas sugestões de mudanças no texto, faltava ainda o resumo e falávamos dos detalhes finais da escritura.

Aquele artigo teria sido nosso último trabalho. Filipe se contaminaria com o coronavírus alguns dias depois, seria internado, teria alta, voltaria ao hospital para ser intubado e falecer em 15 de novembro.

Se a morte atravessa, fura e calcina, a consciência de sua inexorabilidade fez do trauma par da própria sutura. Já nos primórdios da humanização, emerge no sapiens um aparelho mitológico-mágico para lidar com a finitude e com a ideia de redução ao nada, como argumenta Edgar Morin em seu belo texto Sapiens Demens, de 1970. Lá nos diz sobre a importância dos mitos e dos rituais fúnebres que “traduzem ao mesmo tempo uma crise [graças à percepção objetiva da morte] e o ultrapassamento dessa crise [a necessidade de sua superação], por um lado a dilaceração e a angústia, e, por outro lado, a esperança e a consolação”. Rituais de sepultamento, pinturas sobre ossadas e um sem-número de manifestações estéticas sobre o corpo morto ou no ambiente compõem um arcabouço mítico-mágico-ritualístico que permite ao homem arcaico vencer simbólica e imaginariamente a morte.

Mesmo que os símbolos sejam signos culturais e por isso se modifiquem, os rituais – ordenações simbólicas por excelência – até hoje têm fundamental importância para a travessia de momentos de crise. Nesses tristes tempos pandêmicos, talvez não tenhamos ainda compreendido a dimensão dos efeitos provocados pela ausência ou brevidade dos rituais em nossa percepção da morte e para a continuidade da vida. Mais do que nunca os laços psicossociais e afetivos imprescindíveis à manutenção da espécie tecem-se pela via da memória a vibrar, em nós, a presença do amor além da presença física de quem amamos.

Da neurobiologia à literatura, sabe-se que a memória é seletiva, reconstrói o passado à sombra do esquecimento – seu par dialético. Como afirma Marc Augé, lembranças são esculpidas pelo esquecimento como os contornos da costa pelo mar. Já não posso lembrar todos os detalhes, mas a memória, com ajuda da imaginação, consegue expandir o amor encapsulado no último encontro em que eu e Filipe estivemos lado a lado, fazendo-se a rememoração de experiências táteis jamais pensadas como derradeiras: o abraço apertado, o olhar não mediado pelas telas, o som da voz nordestina livre dos ruídos do zoom, o aroma do jovem vaidoso que era, a explosão do sorriso em face a uma brincadeira qualquer de sala de aula. Quase impossível acreditar em seu desaparecimento. É a memória do que foi e do que poderia ter sido que de certa forma se aproxima ao trabalho de luto necessário para aplacar um pouco essa dor e deixar a vida seguir.

A arte da memória

De que modo memória e morte, memória e luto, se aproximam? Qual o papel das emoções e dos sentimentos em sua inscrição nesse estado desértico? O cenário atual brasileiro, pandêmico para além da pandemia, transforma em urgência a tarefa de pensar, escrever sobre a memória e igualmente sobre o luto. Como aliás temos testemunhado com números expressivos de publicações sobre luto e pandemia. Temas vitais para alguma sobrevivência física e psíquica não só das mais de 650 mil famílias diretamente afetadas pela necropolítica adotada desde o início da crise sanitária, mas para nossa história coletiva.

Uma das artes inventadas pelos gregos, a arte da memória, também conhecida como memória artificial ou mnemotécnica, foi narrada pelo orador Marcus Tulius Cícero no tratado De Oratore (55 a.C.). O episódio, relatado por Frances Yates, conta a peripécia do poeta grego Simônides, de Céos, que ao ser convidado para o banquete oferecido pelo nobre Escopas, se esquece do nome do anfitrião no momento de homenageá-lo com uma ode. Para driblar o esquecimento, o poeta inclui o nome de outros deuses em vez do que deveria ser pronunciado. Bastante desgostoso, Escopas se nega a pagar pelo texto do poeta. Nesse exato momento, Simônides é chamado à porta da casa e tudo desmorona, trazendo a morte aos convivas. O poeta de Céos foi capaz de identificar os presentes, pois lembrava-se do lugar em que os comensais estavam sentados, e, assim inaugura os princípios da memória artificial: as lembranças das imagens, necessárias à memória, e a organização dessas imagens – os lugares.

Helenistas e mitólogos como Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant consideram que a arte inventada por Simônides colabora para as transformações das funções sociais da memória. Na Grécia Arcaica, o ato psicológico de evocar o passado assume aspectos mítico-religiosos ao ser relacionado à Mnemosyne, deusa do panteão grego. A memória que os mitos refletem associa-se às técnicas de rememoração praticadas entre grupos fechados, confrarias de aedos, e inspira poetas com sophisa, palavra que revela o passado heroico de uma dada sociedade e o futuro adivinhado. Mnemosyne também prepara o êxtase divinatório ou pode se inserir nos exercícios de purificação e salvação. Porém, a função religiosa declina com a ascensão da mnemotécnica, que colabora para a memorização dos oradores e retores, que se lembram de grandes sequências discursivas dispondo mentalmente uma imagem em um lugar, isto é, com o uso de uma técnica de memorização.

A memória não mais se destina a liberar o tempo e abrir caminho para a imortalidade, tais os exercícios de purificação; aparece agora incluída no tempo; não é mais a fonte de um saber autêntico – como o dos poetas e dos aedos, mas traz as marcas da incompletude humana e revela a necessidade de meio artificial para acessá-la, um meio técnico. Entendemos a mnemotécnica também como um modo de elaborar a morte, afinal é para nomear/reconhecer os mortos que Simônides a inventa. O nome pronunciado opera a passagem do desconhecimento à lembrança, traz à vida o que subjaz soterrado pelas camadas do tempo.

Os trabalhos da memória e do luto

Das culturas arcaicas às das redes digitais, a memória externalizada e materializada em quaisquer linguagens atua em constante elaboração da grande morte – destino dos seres vivos – e das pequenas permeadas pelo cotidiano: perdas de objetos amorosos, de modo ideal e não necessariamente funesto, perdas inerentes à passagem do tempo, enfim. Interessa aqui sugerir, mais do que aprofundar, as conexões entre a memória, sua dimensão de um trabalho sobre o tempo e no tempo, e o trabalho de luto, ambos na esteira da simbolização de perdas, e, igualmente, na projeção ou abertura para futuros possíveis.

Em Luto e melancolia, Freud define o luto, de modo geral, como “reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”. O mundo esvaziado de interesse, a incapacidade de adotar novo objeto amoroso e o afastamento de qualquer atividade que não esteja ligada ao ser desaparecido marcam o luto profundo. O ego torna-se devoto ao luto, inibido e circunscrito. O trabalho de luto parte do teste da realidade: o objeto amado não mais existe, há uma desmaterialização perceptiva que exige que toda a libido abandone as ligações com aquele objeto, com cada lembrança e cada expectativa. É preciso certo lapso de tempo para que isso aconteça. “Quando o trabalho de luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido”, explica Freud.

Esse artigo seminal é frequentemente citado como ponto de partida para a compreensão dos processos de luto individual e coletivo, ainda que a literatura psicanalítica atual aponte nele incompletudes, impasses e questionamentos. Paulo Endo apresenta uma série de autores que apontam que o trabalho de luto deve se entender com algo que fora para sempre perdido, que não pode ser recuperado e nem substituído e que não necessariamente se relaciona com o luto patológico que redunda na melancolia freudiana. O sujeito que perdeu não esquece o objeto perdido e sabe que “os novos e inéditos objetos acolhidos com hospitalidade e interesse verdadeiro não são substitutos daqueles outros que se foram, se perderam ou que o próprio sujeito admitiu perder”, pondera o psicanalista.

O que fora para sempre perdido comparece à memória como traço vívido e íntegro, continua o autor, cuja leitura busca no psiquiatra Eugène Minkowski a ideia de que a desmaterialização perceptiva de pessoas e de experiências pode dar lugar à saudade e à esperança, ao desejo de rememorar e com ele preservar o que surge à percepção como imagem de memória e imagem onírica.

Evidentemente, o tempo vivido de cada um de nós não traz, no bojo das lembranças dos dias, apenas a imagem de quem amamos e hoje se ausenta, mas também móveis, roupas, objetos que têm o poder de simbolizar essa perda. Em cena a cultura material revivescendo a quem amamos e outros desaparecimentos, tomando o cuidado de dizer, tal como o psicanalista Christian Dunker, que existe notável diferença entre o luto por um ente querido e aquele vivido continuamente na elaboração de perdas inevitáveis.

Para tratar da vida social das coisas e da capacidade que têm de representar o passado e seus vazios, Peter Stallybrass remonta a um episódio pessoal: ao apresentar um trabalho acadêmico vestido com a jaqueta de um grande amigo morto, é tomado por forte comoção a ponto de interromper sua conferência e pedir a outra pessoa para continuar a ler o paper que preparara; dá-se conta de que fora habitado pela presença do companheiro por meio da roupa. “Allon me vestia. Ele estava lá nos puimentos do cotovelo, puimentos que no jargão técnico da costura são chamados de ‘memória’. Ele estava lá nas manchas que estavam na parte inferior da jaqueta”.

Cláudia Pereira e Fernanda Martinelli escrevem especialmente sobre o protagonismo dos objetos nos processos de luto a partir dos aportes teóricos do antropólogo do consumo Daniel Miller, cuja obra marca-se pela centralidade da cultura material na criação e manutenção dos vínculos sociais. As autoras concebem as materialidades, conjunto de coisas/objetos, não só dotadas de caráter simbólico, mas como mediadoras das relações humanas, com poder de agência sobre os indivíduos. A circunstância do luto “confere às coisas novo poder de agência: coloca os objetos em evidência, e a consciência da presença desses objetos é uma forma de fazer com que a pessoa querida permaneça presente” – mesmo que de modo inopinado e paradoxal, como na conferência de Stallybrass, em que a emoção da presença, a recordação e a consciência da perda do amigo o impediram de continuar a falar.

Todo objeto intermedia relações e nos conforta segundo determinadas ordenações que damos a eles, como quer Daniel Miller ao falar em conforto das coisas. A morte e o luto exigem novas ordenações, “dar um destino às coisas que ficaram sem dono”, segundo Pereira e Martinelli que, do mesmo modo, expõem o luto das próprias coisas. Nessa situação, sobressai a dimensão biográfica-afetual de todo objeto, porque alguns deles ficam sobrecarregados de lembranças capazes de transcender a desmaterialização imposta pela morte. Roupas, joias, acessórios, enfeites e uma infinidade de objetos ressignificam-se no dia a dia dos enlutados e podem, com seu uso, gerar algum tipo de alegria. Penso nos objetos herdados ou naqueles ofertados igualmente prenhes de afetos positivos pulsantes a cada uso, a cada recordação. Conforme Pereira e Martinelli, não preservamos os objetos que remetam a momentos ruins da vida de quem amamos, como os ligados a doenças ou situações de penar.

Reordenar objetos sem dono, reencontrar entre guardados os que nos foram dados por alguém que partiu, pode significar, suponho, o mesmo reconhecimento do qual nos fala Paul Ricoeur ao trazer para a fenomenologia da memória a ideia de memória feliz. Num átimo reconheço e capturo do fundo do armário uma canequinha vermelha como sendo aquela que Filipe me deu, embora não possa lembrar exatamente quando ou por quê. Agora sob meus olhos, elejo a quentura da ágata para conter meu café da manhã e posso começar a jornada alimentada pelo presente e pela presença de meu orientando já ausente.

O reconhecimento que brota da sobrevivência das imagens é o pequeno milagre da memória, afirma Ricoeur: “quando se produz, sob os dedos que folheiam um álbum de fotos, ou quando do encontro inesperado de uma pessoa conhecida, ou quando da evocação silenciosa de um ser ausente ou desaparecido para sempre, escapa o grito: ‘É ela! É ele”. Para o filósofo, isso se passa, com cores menos vivas, também com o acontecimento rememorado. A reconquista da lembrança, o trabalho da memória nas escavações do tempo, aproxima-se ao trabalho de luto, igualmente um trabalho no tempo, com a diferença de que com o reconhecimento a recordação triunfa e o luto vence a melancolia, pois ele é a experiência do reencontro com o vivo enquanto a melancolia é a experiência contínua com o morto, como adverte Paulo Endo.

Filipe Costa, meu querido orientando assassinado pelo Brasil-catástrofe desses anos desgovernados, escrevia sobre as fotografias publicitárias cujas narrativas ostentavam o tempo de vida das marcas. Em sua quase-tese, coletou inúmeras imagens e seus míticos nascimentos: “desde”, “fundado em” e outras expressões temporais acalentavam a esperança do reconhecimento, fosse da tradição ou da inovação, tentando vivificar e futurizar suas existências ligadas ao consumo e à construção de memórias biográficas. Não chegou a finalizar sua empreitada intelectual. Sua vida foi interrompida aos 32 anos. Resta-nos o dever e o fazer-memória, o luto possível na enunciação de suas ideias inacabadas, na proclamação de justiça e no banimento dos perpetradores da epidemia com resultado de morte. O fazer-memória resume-se ao reconhecimento como ato de recognição e o luto como infinito, lento lembrar-se, insistência da vida e do futuro. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº5/ 2022.

Referências Bibliográficas:

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