Admiráveis lições
Em maio de 2021, o governo emitiu um alerta de emergência hídrica para a região hidrográfica da bacia do rio Paraná, responsável por mais da metade da capacidade de produção de energia do país. Como o senhor acompanhou o desenrolar da atual crise hídrica no Brasil?
Eu tenho uma linha do tempo pessoal para isso. Não sei se ela explica, mas dá o tom, a emoção do que vem acontecendo. Cheguei ao ONS, vindo de Furnas, em maio de 2020, quando já havia começado o isolamento social. Todo mundo que é do setor elétrico conhece o ONS e sabe mais ou menos seu papel e suas responsabilidades, mas pouca gente sabe como a coisa funciona lá dentro. Lembro muito bem que, na primeira reunião do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), o Rui Altieri, da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), me disse: “Você é um sujeito de sorte, vai pegar quatro anos de moleza aqui, com a queda da demanda”. Eu respondi que gosto de uma agitação, nunca gostei de nada muito fácil. Nossas discussões internas passavam por um problema atípico no ONS, e ainda mais para mim, que tinha acabado de chegar: a carga de demanda estava tão baixa que chegava a ser menor do que a chamada geração compulsória, inflexível. Em finais de semana, precisávamos fazer manobras como desligar linhas de transmissão e fazer circuitos de corrente contínua trabalharem como conversores. Isso causava um desgaste muito grande com os proprietários dessas linhas de transmissão. Esse foi o cenário que vivemos durante maio, junho e julho de 2020. Aí, com o isolamento social diminuindo, houve algum sinal de crescimento da carga. Em agosto, nosso diretor de Operação, Sinval Gama, disse que em alguns dias teve dificuldade de atender à demanda. Como pode? Se tudo está tão vazio... O planejamento também não via grandes dificuldades. Mas, na sala de operação, os desafios apareciam.
Como estava a situação hídrica, naquele momento?
Começavam os alertas da climatologia. O Cemaden, Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, avisava que a chuva poderia atrasar. Passamos pelos meses de agosto e setembro, e a chuva deu sinais claros de que não ia começar. Por bem da transparência, alertamos o CMSE: a carga está subindo. Começamos a enfrentar uma situação delicada, inclusive porque nossa geração tem como característica a inflexibilidade, principalmente a hídrica, com as vazões mínimas definidas pelo IBAMA e pela Agência Nacional de Águas (ANA). Em outubro ficou evidente que a estação chuvosa iria atrasar. Mês após mês, foram batidos os piores recordes de todo o histórico de vazões de 91 anos: o pior setembro, o pior outubro, o pior novembro, o pior trimestre da história. Com a autorização do CMSE, começamos a despachar térmicas fora da ordem de mérito, para que pudéssemos poupar um pouco de água. Essa decisão não foi uma unanimidade dentro do CMSE. Alguns diziam: a chuva vem. De fato, a chuva sempre vem, mas, em 2020, ela veio com dois meses de atraso. A chuva que esperávamos para meados de outubro começou a chegar em meados de dezembro. O período chuvoso é sempre uma incógnita, a gente nunca sabe quanto vem de água na estação chuvosa. Os climatologistas nos falam sempre: a primeira semana tem previsão bastante boa, com nível de confiabilidade grande, a semana seguinte tem algum grau de certeza, as outras duas que completam o mês têm variabilidade significativa. E daí para frente são indicadores dos modelos: modelo americano, europeu, como essas coisas estão sendo vistas e analisadas. Normalmente, a estação chuvosa vai até abril, mas na reunião de março de 2021 o Cemaden decretou que ela tinha acabado. Tivemos uma estação chuvosa curta e muito aquém da intensidade média histórica.
Que providências tomaram, diante daquele quadro?
Levantamos alternativas e elencamos 35 grandes ações. Desde o começo do ano buscamos mecanismos regulatórios para reduzir a vazão mínima de alguns reservatórios, particularmente os das usinas de Jupiá e Ilha Solteira. Nós já vínhamos com despachos de termelétricas e fizemos chamamentos de outras que não estavam sendo despachadas por vários motivos, como falta de combustível, falta de contrato e problemas judiciais. Fizemos a revisão de alguns procedimentos operacionais de transmissão de energia, porque, nessa mesma época e durante quase o ano todo, o Nordeste estava muito bem do ponto de vista da energia eólica e solar, e havia bastante energia chegando do Norte também, mas havia o gargalo da transmissão para o Sudeste. Foi quando o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) detectou situação de severidade na bacia do Paraná e, logo em seguida, a ANA decretou a escassez hídrica da bacia. Isso acendeu várias luzes dentro do ministério. Então o governo decidiu criar, através de medida provisória, a CREG, Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética, para que todos os agentes tivessem conforto jurídico para tomar decisões que muitas vezes vão contra outorgas iniciais e deliberações anteriores.
Como funciona a CREG na prática?
Um exemplo simples é a questão da redução de vazão: se uma usina reduz sua vazão abaixo do mínimo estabelecido por outorga, ela pode sofrer multas e até ter a outorga cassada. Quando uma MP define o poder de decretar esse tipo de ação, essa empresa pode fazer a manobra dentro de parâmetros e em prazos determinados. Ninguém está fazendo letra morta das leis e regulamentos de outorga. Isso ocorre dentro de um período delimitado e com várias condições. A CREG tem participação da ANA e do IBAMA, é um comitê presidido pelo Ministério das Minas e Energia mas tem em sua composição os ministérios da Economia, do Desenvolvimento Regional, da Infraestrutura, da Agricultura, do Meio Ambiente, a Casa Civil. O papel do ONS é levar as informações técnicas canalizadas pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico. Levamos o assunto, fazemos uma recomendação, os ministros deliberam e decidem se aquela recomendação faz sentido ou não, se é imperiosa ou não. Todas as nossas recomendações foram aceitas até agora, temos que agradecer ao papel que os poderes públicos têm de viabilizar as questões técnicas que recomendamos.
Quais foram as primeiras medidas tomadas pela CREG?
As primeiríssimas foram as reduções das vazões de Jupiá e Porto Primavera, fundamentais para que pudéssemos economizar bastante água na bacia do Paraná e, principalmente, para permitir que, com a redução dessa geração, pudéssemos alocar termelétricas no sistema. Sem a Câmara, essas medidas de flexibilização tardariam, porque para fazer uma mudança dessas seriam necessárias audiências públicas, análises de impacto ambiental pelo IBAMA, análises de impactos e outros aspectos pela ANA. Quando há uma Câmara desse tipo, o IBAMA analisa, junto com a gente: se vamos reduzir a vazão de tanto para tanto, o que vai acontecer? A água vai baixar, vão aparecer pequenos lagos que podem aprisionar peixes. Então, vamos recolher esses peixes e levar até o canal central do rio. Determinada cidade não vai poder fazer a captação. Vamos fazer captação flutuante. A Câmara não é um trator passando por cima de tudo: o IBAMA e a ANA estão juntos para fazer as coisas com agilidade. Sabemos como as questões ambientais no país são demoradas, como o processo é completo e complexo. Uma ação judicial poderia paralisar tudo. Outra possibilidade que a Câmara permite: a contratação de termelétricas por processo simplificado. Teríamos que cumprir um ritual que pode demorar até um ano para chegarmos à condição de fazer um leilão. No processo simplificado, em um mês conseguimos fazer, porque na mesma sala estão sentados técnicos da Aneel, do ONS, do Ministério das Minas e Energia. Dali a gente sai com um produto baseado na experiência e incluindo os principais ditames da administração pública, como leilões, contratações feitas de forma transparente, com supervisão do TCU.
O comitê de monitoramento também vinha acompanhando a situação dos reservatórios?
Desde setembro de 2020, as reuniões mensais do CMSE passaram a ser intercaladas com reuniões de um comitê técnico: semanalmente era feito um acompanhamento de bacia por bacia, de reservatório por reservatório, de recurso por recurso. E a partir de abril de 2021 foram sucessivas batalhas, eu diria vencedoras, no sentido de trazer energia adicional, conscientizar a população para uma redução voluntária do consumo, e também junto às empresas, às indústrias, aos grandes consumidores de energia elétrica, no mercado livre e no mercado regulado. Eu não participei de toda a história do ONS, mas, pelo que nos contam, fizemos esse trabalho com um nível de transparência jamais visto. Publicamos tudo em notas técnicas, explicamos, abrimos nossos dados. Sofremos muitas críticas, algumas com fundamentos, outras não. Disseram que deveríamos ter despachado as térmicas antes, mas não era possível fazer isso: as térmicas não cabiam dentro da geração, se eu colocasse as térmicas teria que verter água, não havia alternativa.
O senhor se refere a usinas a fio d’água, ou de maneira geral?
De maneira geral. Mesmo as usinas que não são a fio d’água têm vazões mínimas. Por exemplo, a vazão mínima estabelecida para o complexo de Jupiá e Ilha Solteira estava em torno de 4 mil m3 por segundo. Nós tivemos que baixar para menos de 1.900 m3. Com isso, seguramos água no rio Paraná, reduzimos a geração e conseguimos alocar a energia termelétrica gerada. Foram várias dessas manobras, algumas aparentemente conflitantes. Em algumas usinas que tinham geração mínima, por exemplo, precisamos gerar mais do que era necessário, porque onde tem uma cascata não se pode segurar água apenas na cabeceira e deixar esvaziar todos os reservatórios abaixo. É uma operação complexa, que requer análise e engenharia bastante sofisticadas, com modelos e conhecimento de chuvas e vazão para manter a governabilidade dessa cascata. Como diretriz, é preciso fazer a recuperação dos reservatórios: todos, mas principalmente os da bacia do Paraná, nossa grande caixa d’água, que precisa estar o mais cheia possível. A redução das vazões e a continuidade do uso de termelétricas nos permitirão retornar a patamares mais elevados nesses reservatórios. Hoje, há um questionamento grande na sociedade quanto aos usos múltiplos da água, em usinas como Furnas, Mascarenhas de Moraes e nas usinas do São Francisco. Os reservatórios foram construídos para a geração de energia elétrica, mas hoje seus usos são múltiplos, desde consumo humano à dessedentação animal, turismo, lazer, piscicultura, transporte. O nível mais alto dos reservatórios propicia a plena utilização econômica dessas águas.
Como era projetar os próximos passos?
Fizemos todas as projeções com um cenário sempre conservador. O ONS é uma instituição conservadora. Eu brinco que sou um eterno otimista — para mim, tudo vai sempre dar certo —, mas no ONS precisamos ser conservadores, estar preparados para o pior cenário, torcendo para que aconteça algo melhor do que o projetado. Neste ano, havia recursos que não estavam sendo alocados por aquelas razões que mencionei: não tinha contrato, combustível, isso e aquilo. À medida que os meses foram passando, aquele que era o pior cenário melhorou um pouco, pois as incertezas diminuíram, e aquele que era o melhor cenário foi piorando, também porque as incertezas diminuíram. Algumas coisas que queríamos não conseguimos, algumas coisas que não esperávamos, alcançamos. Chegamos ao mês de outubro com a boa notícia de que as chuvas começaram no Sul com boa intensidade, havia alguma chuva no Sudeste, no Norte havia todos os sinais de que a estação chuvosa chegaria no período certo. Era um cenário um pouco mais tranquilizador, e não só por causa dessas chuvas, afinal elas não adiantariam se não tivéssemos feito todas aquelas ações durante o ano. O resultado é fruto de todas as providências tomadas por nós, ONS, Aneel, Ministério das Minas e Energia, agentes e empresas que se mobilizaram significativamente. A estrutura que construímos ao longo deste ano se traduziu em realidade, vimos os limites para que o sistema possa ser operado de forma segura, sem riscos ao abastecimento. Um regime excepcional, como o que estamos vivendo, foi uma sinalização daquilo que podemos fazer em circunstâncias de exceção. Passamos de uma situação de demanda menor do que a nossa geração mínima compulsória para uma situação em que tivemos que trazer mais recursos energéticos ou não atenderíamos a demanda. Isso porque o meu colega Rui Altieri disse que eu teria quatro anos tranquilos (risos).
É possível comparar a crise que estamos enfrentando com a que ocasionou o racionamento em 2001, com corte obrigatório de 20% da carga?
Os anos de 2001 e 2021 possuem algumas semelhanças, mas há muitas diferenças. A grande semelhança é a questão da escassez hídrica. Em 2001, o governo, como sabemos, foi “surpreendido” pela situação. Quando o comitê de crise foi criado, sob a liderança do Pedro Parente, já foi para estabelecer o racionamento. Essa é uma diferença fundamental, pois em 2020 nós sinalizamos ao governo, e este sinalizou para a sociedade, que a crise hídrica estava começando. “Setembro mais seco dos últimos anos”, “outubro mais seco”, “trimestre mais seco”... nós viemos alertando e trabalhando todas as ações antecipadas que eu mencionei. Outra diferença é a da infraestrutura. Em 2001 não havia um sistema interligado, as sub-regiões eram sistemas isolados, não era possível trazer energia de uma região para outra. Hoje o sistema é todo interligado, temos quase 170 mil km de linhas de transmissão só na rede básica, 80% a mais do que tínhamos na época. Essa interligação permitiu inserir outras fontes de energia, que na época ainda eram estudadas nas universidades. A energia eólica e a solar implantadas no Nordeste colaboraram muito no atendimento energético de 2020-21. Nosso parque termelétrico cresceu, a geração hidráulica cresceu também. Veja as grandes usinas do Norte que temos hoje, Belo Monte, Jirau e Santo Antônio — elas não possuem reservatórios, mas quando a água chega despejam uma enormidade de energia. Portanto, as semelhanças se referem a uma situação hídrica que ocorreu, mas as diferenças são muito mais significativas, do ponto de vista da infraestrutura muito superior, mais robusta e abrangente do que a de 2001. E, principalmente, pelas ações e pela transparência que adotamos no sentido de evitar a interrupção do atendimento de energia elétrica à sociedade. Não podemos esquecer o nosso passado, o aprendizado das lições de 2001 está impregnado nesta geração de profissionais do setor elétrico, que há 20 anos venceram uma crise e agora venceram outra.
Como essas lições impactaram o setor ao longo dos anos?
Aquela geração emergencial criada em 2001, com várias usinas, as térmicas a óleo, a diesel, tudo isso permaneceu, e foi ampliado o parque termelétrico mais eficiente, a gás natural. Devemos ter mais e teremos, mas essa mudança de perfil foi significativa: em 2001, 85% da geração era hidrelétrica, hoje representa 65%. Cresceram as térmicas, as eólicas e um pouco de energia solar e biomassa. Porque naquela crise ficou claro que é negativa a dependência excessiva de geração hidráulica, apesar de todos os seus benefícios, sua beleza e sua importância, por ser limpa e renovável. Outra lição foi o planejamento da rede básica. Ele não brota por acaso ou por iniciativa privada espontânea, requer planejamento, identificação de pontos de geração e pontos de consumo, dos eixos que devem ser criados. Deve ser uma rede robusta: para transportar uma quantidade muito grande de energia, é preciso pagar um pouco a mais para garantir uma redundância, de modo que uma falha não acarrete a derrubada de todo o sistema. De linha de corrente contínua só tínhamos Itaipu, hoje temos grandes eixos de transmissão do Norte para o Sudeste em HVDC. A operação do sistema se modernizou muito do ponto de vista interno, das competências, dos sistemas, inclusive para trabalhar com uma energia que não é despachável, como a eólica e a solar. A cereja do bolo foi o seguinte: na crise de 2001, tudo leva a crer que as áreas técnicas sabiam da situação e, por alguma razão, que não nos cabe identificar ou julgar, essas informações não chegavam às altas esferas do governo; em 2020, nos primeiros sinais de que poderíamos ter algum comprometimento, mesmo eu tendo chegado ao ONS havia pouco tempo, nós passamos a mensagem clara ao CMSE e ao ministro Bento Albuquerque: há sinais de que teremos problemas pela frente, não podemos contar com a sorte e ficar rezando para São Pedro fazer chover intensamente. Esse foi um mérito do governo: o ministro abraçou a causa efetivamente, vendo todas as possibilidades de enfrentamento da situação. E o interessante é que uma das críticas que recebemos é a de falta de transparência.
Qual seria a matriz perfeita para o Brasil?
Quanto mais diversificada a matriz, melhor para o país. O velho ensinamento nos diz para não colocar todos os ovos na mesma cesta. Não devemos ter uma fonte predominante. Nosso país tem uma vantagem competitiva maravilhosa, porque temos recursos hídricos abundantes, temos gás para as termelétricas, temos urânio e tecnologia para o processamento das nucleares, temos biomassa, somos um agrobusiness muito poderoso, temos sol e vento em praticamente todo o território nacional, algumas das melhores regiões do mundo para as renováveis estão aqui. Temos potencial hidráulico em grandes hidrelétricas e em pequenas centrais elétricas, e acho que precisamos rever a decisão estratégica de não construir mais reservatórios. Eles existem desde antes da eletricidade, para regular os fluxos dos rios e enfrentar grandes períodos de estiagem. Têm impacto ambiental? Claro que sim, toda ação humana tem impacto ambiental. Mas existem mecanismos para contornar esses impactos. Enfim, a fórmula é a diversificação. A flexibilidade é um atributo muito importante também para o operador do sistema. Ter a possibilidade de gerar diversas fontes e de poder trazer energia de diversos lugares para os centros onde a carga é demandada. Se hoje temos pouco menos de 165 mil km de linhas de transmissão, em 2025 devemos estar com 185 mil. Continuamos crescendo, eliminando gargalos e aumentando essa flexibilidade. Tem espaço para todo mundo: hidráulica, térmica, térmica flexível, inflexível, muito espaço para eólica; um universo que ainda nem exploramos, que é a eólica offshore; a geração distribuída, que é um movimento inexorável à medida que os painéis solares se tornam cada vez mais competitivos em preço e passam a ser alternativas para residências, negócios e edifícios. A multiplicidade é a chave para uma matriz elétrica diversificada, equilibrada, robusta e segura. Para o ONS, dá muito trabalho.
As autoridades também apostaram em ações relacionadas aos grandes consumidores, para evitar o risco de falta de energia nos horários de pico do consumo. Poderia comentar essas ações?
Quando esgotamos a capacidade de gerar energia adicional, vem a necessidade de redução da demanda. Não podemos continuar utilizando um recurso que está tão escasso, tão caro, como se estivesse abundante ou a preço baixo – isso vale para qualquer recurso e serviço. Em dezembro de 2020, foi lançada pelo governo federal uma campanha de consumo consciente de água e de energia. Em 2021 foi lançado um programa de redução voluntária de demanda por parte dos grandes consumidores, das indústrias eletrointensivas, e a partir de setembro ofereceu-se um prêmio para a redução voluntária de consumo por consumidores de baixa tensão em geral. A redução da demanda das grandes empresas mostrou sinais bastante bons em setembro, num pico acumulado de 440 megawatts. Em relação ao consumo de baixa tensão, depende muito da data de faturamento, vai ser analisado pelas distribuidoras. No global, a carga reduziu bastante nos primeiros quinze dias de outubro: 2 mil megawatts em média, em comparação com o que estava planejado. A nossa hipótese mais provável é que tenha havido uma influência térmica, que o período de temperaturas mais amenas tenha levado o consumidor a reduzir o consumo. Um dos vilões do consumo de energia elétrica é o ar condicionado. Mas é preciso mais análises. Por exemplo, no Nordeste houve dois dias seguidos com recordes históricos de redução de consumo. Não foi possível identificar se foi efeito do clima ou das ações dos consumidores. Sabemos que as campanhas de redução de consumo não são triviais em nosso país.
Muito do que estamos conversando está relacionado com o comportamento da economia. Como o senhor considera esse dado em suas análises?
A economia é tanto entrada quanto saída na nossa problemática. Entrada porque, se há crescimento de PIB, a demanda aumenta; se há queda de PIB, a demanda não aumenta. Quando alimentamos nossos modelos de previsão de aumento de carga, nos baseamos em estudos econômicos oficiais. A Empresa de Planejamento Energético, EPE, nos traz a coisa já previamente analisada: as expectativas de crescimento e quais setores vão crescer. O outro lado também importa: a disponibilidade de energia elétrica influencia a economia. Por exemplo, em 2001, o racionamento de energia afetou a economia de forma desastrosa, e a recuperação levou de 2 a 5 anos. Não temos nenhum cenário que sinalize racionamento, mas é importante que o nosso planejamento agregue capacidade de geração de energia adicional de modo que se a economia crescer, que é o que todo brasileiro quer, exista energia para dar suporte a isso. Quanto ao preço, a energia termelétrica é mais cara e está ficando mais cara porque existe uma crise energética global, provocada pela escassez de recursos energéticos na China e em outros países, fazendo com que o preço do gás dispare. O insumo é importado e o preço é calibrado em bases internacionais. É o preço que temos que pagar. Quando o produto no mercado começa a ficar mais caro, a gente procura substitutos, não é? Toda família faz isso. Mas para a energia não existe substituto, precisamos reduzir o consumo e usar de maneira mais consciente. Sempre que me perguntam sobre o preço da energia, eu digo: a energia mais cara é aquela que falta. As termelétricas, muitas vezes, são colocadas como vilãs, mas elas são importantíssimas para continuarmos nossas vidas normais, como neste exato momento.
Como o senhor vê o cenário de 2022?
Estamos terminando a travessia de 2020-21 sem nenhuma sinalização de intercorrência grave, racionamento é impossível nesse momento, picos e pontas também têm riscos atenuados. Fomos exitosos. Para o próximo ano a incerteza é a estação chuvosa, que vai até março. Dependendo disso, teremos uma travessia mais ou menos tranquila, dependendo da capacidade de encher os reservatórios. Muito provavelmente, haverá acionamento de térmicas em sua capacidade máxima, revisão do fluxo de transmissão de energia do Nordeste para o Sudeste, redução das vazões de reservatórios críticos para reter mais água e abrir espaço para entrada de energia termelétrica. Ou seja, deve ser mantido tudo aquilo que agregamos de energia adicional e de redução de demandas, além de fazer com que os empresários, principalmente os eletrointensivos, ajudem. A chuva que caiu em 2021 não muda nada dessa perspectiva. Mesmo que caia mais chuva, é importante trabalharmos em longo prazo para termos reservatórios mais cheios e de forma sustentável.
Há quem considere que o modelo do setor precisa ser atualizado para possibilitar respostas às mudanças climáticas e ao uso múltiplo das águas. O senhor concordacom essa avaliação?
Essa necessidade é inexorável, é a própria evolução, é preciso melhorar sempre. O mundo está se sofisticando, seja em termos de tecnologia dos sistemas elétricos seja pela evolução fabulosa das ferramentas computacionais. Imagine tudo isso aplicado à análise de dados, à inteligência artificial, a uma série de recursos diariamente adicionados à operação! As demandas da sociedade são diferentes, algumas inovações tecnológicas que ainda não chegaram aqui vão trazer impactos para os quais não estamos preparados. É o caso dos meios de transporte elétrico, que são cargas que se movem, baterias com rodas, circulando de um lado para o outro, consomem energia em um lugar num dia e em outro lugar no outro. A sofisticação de uma residência aumenta a cada dia, tanto na eficiência energética quanto na utilização de recursos computacionais para acionamento de equipamentos como geladeiras, fogões, televisores, internet. A demanda global de energia é crescente. À medida que ela cresce e se diversifica, você precisa entender como se manifesta em cada sociedade. No Brasil, dependendo da região, da época e da intensidade, isso ocorre de maneiras diferentes, e o sistema precisa operar dependendo do contexto. Nosso planejamento e operação são adequados para o mundo de hoje, mas precisamos sair na frente para conseguirmos planejar e operar o sistema de amanhã. Estamos abertos às melhores tecnologias do mundo e também fornecemos tecnologia, temos uma competência extraordinária.
A agenda de descarbonização é central nesse cenário de transição energética?
O termo “transição energética” vem da Europa. Lá, é realmente uma transição: eles estão transformando sua base a combustíveis fósseis em uma base renovável, eólica, solar etc. No Brasil, nossa base sempre foi renovável, e ainda é: mais de 80% de nossa geração é hídrica, eólica e solar. É óbvio que, quanto mais nosso sistema se expande em bases renováveis, melhor é a nossa situação na direção da descarbonização. No Brasil, o componente de emissão de CO2 e gases de efeito estufa provenientes do setor elétrico é muito pequeno: 16% do total emitido em 2020. Se temos ambições de descarbonização, o setor elétrico deu, dá e dará sua contribuição, mas os grandes vilões da emissão de carbono no Brasil são dois setores: transporte e agricultura. É diferente da China, por exemplo, que durante muito tempo teve toda a sua energia proveniente de carvão. Na Europa, a base era carvão, óleos pesados, óleo diesel e gás. Tinha um pouquinho de urânio, de nucleares, mas reduziram. No Brasil, não: continuamos nossa história de um país que tem nas energias renováveis a base de seu parque elétrico.
Como será a atuação do ONS em um cenário de geração menos centralizado?
O ONS precisará se adaptar. Já aprendemos muito sobre sistemas mais distribuídos, a trabalhar com fontes de energias intermitentes não despacháveis. Os exemplos clássicos são a energia eólica e a solar. O ONS tem hoje um know-how muito maior do que países europeus que trabalham com essas fontes há mais tempo do que nós. Esse mesmo aprendizado será necessário em relação à energia distribuída em nível domiciliar, injetada na rede de distribuição e não no sistema básico de transmissão. Precisaremos de um arcabouço regulatório favorável para que haja essa geração distribuída sem matar a distribuidora. Se você acaba com a distribuidora, o sistema elétrico brasileiro, ou de qualquer outro lugar do mundo, não sobrevive. Este ano foi muito focado na crise hídrica, espero que no ano que vem tenhamos mais tempo para planejar essa operação de um sistema tão diferente. Está ainda pouco claro como vai ser, temos algumas diretrizes fundamentais, mas precisamos mergulhar mais a fundo. O carro elétrico, a geração distribuída, a geração descentralizada de grande porte, as fazendas solares, as fazendas eólicas, como isso mexe com a estabilidade do sistema? Quais são as flexibilidades, os recursos que um operador precisa para fazer frente a tudo isso? São muitas as questões. Os parques eólicos podem variar sua geração abruptamente. É impressionante: uma geração de 1.000 MW, de uma hora para outra, sem avisar, cai para 200! Imagine vários e vários telhados de captação de energia solar em residências, shoppings, comércios, e então vem uma nuvem e aquela geração toda some. O consumidor quer continuar com seu equipamento ligado. Eu diria que se trata de um admirável mundo novo, que tem que ser estudado desde a introdução. Vamos ter que ler e escrever esse livro desde o prefácio. ///
Este depoimento foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº4/ 2021.