Liga, desliga
Em meados do século XX, as empresas do grupo americano-canadense Brazilian Traction, Light and Power, conhecido como Light, respondiam por mais da metade dos quilowatts produzidos no Brasil, dominando a oferta de energia elétrica na região mais urbanizada e industrializada do país.
Atuante no eixo Rio-São Paulo desde o início do século, o grupo Light implantara sistemas elétricos de grande porte para os padrões da época, que somavam 980 megawatts (MW) de capacidade instalada em 1950, equivalentes a 52% do total nacional. As concessionárias da American and Foreign Power Company (Amforp), atuantes em Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, entre outras capitais, e em cidades do interior paulista, formavam o segundo maior parque gerador do país, seguidas de longe por pequenas companhias privadas nacionais. De um modo geral, a situação do Brasil era notoriamente deficiente quanto ao atendimento das necessidades de energia elétrica. O poder público apenas começava a firmar sua presença no setor.
O predomínio da Light foi favorecido em ampla medida pela dimensão de seu mercado e a relativa abundância de potenciais hidráulicos com baixo custo de aproveitamento situados nas proximidades dos dois grandes centros urbanos do país. Foi assim que a empresa construiu as hidrelétricas de Parnaíba, Itupararanga, Rasgão e Cubatão, no estado de São Paulo, Fontes e Ilha dos Pombos, no Rio de Janeiro. A usina de Cubatão foi a principal resposta da empresa para a crise energética de 1925, que ocasionou medidas inéditas de racionamento na capital paulista.
Ao longo da década de 1930, a disponibilidade de energia elétrica da Light foi superior à demanda, servindo de estímulo ao extraordinário crescimento urbano e industrial do Rio (então Distrito Federal) e de São Paulo. Entretanto, a partir de meados da década seguinte, o aumento da oferta de energia dos sistemas paulista e fluminense revelou-se progressivamente incapaz de atender à demanda das duas metrópoles. Isso se tornou evidente nos últimos anos do primeiro governo Getúlio Vargas (1930-1945), marcados por racionamentos de energia em diversas cidades brasileiras. Durante a Segunda Guerra Mundial, o sistema Rio Light alcançou um “ponto de saturação”, segundo o renomado engenheiro Asa White Billings, responsável pela concepção e execução de empreendimentos como as usinas de Cubatão e Ilha dos Pombos e pela ampliação do reservatório de Ribeirão das Lajes e da usina de Fontes Nova.
Em 1945, o Rio de Janeiro viveu o primeiro racionamento de sua história, solicitado pela própria Light. Foram três os motivos alegados pela empresa: os obstáculos para ampliar suas instalações no período da guerra, o aumento da demanda de energia provocado pelo boom industrial e a forte seca que reduzira as afluências ao reservatório de Ribeirão das Lajes, comprometendo a geração da usina de Fontes.
Em março, o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE) estabeleceu um plano de racionamento no Distrito Federal e no estado do Rio, extensivo aos consumidores de empresas supridas pela Light, como a Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE), subsidiária da Amforp. Entre as medidas propostas, destacavam-se a limitação da iluminação pública, a proibição de iluminação de fachadas, vitrines e anúncios e a redução de consumo de energia elétrica com base na média verificada nos meses de verão, sob a pena de interrupção de fornecimento. O racionamento de 1945 foi basicamente restrito à iluminação pública e aos consumidores comerciais.
Terminada a guerra, a Light ampliou a capacidade instalada de seu sistema fluminense, instalando mais um grupo gerador na nova usina de Fontes Novas, em Ribeirão das Lajes, e a quinta unidade da hidrelétrica de Ilha dos Pombos, no rio Paraíba do Sul. Em paralelo, as usinas de Cubatão e Fontes foram interligadas de forma a possibilitar o intercâmbio energético entre os sistemas da Light, não obstante a diversidade de frequência entre o sistema paulista (60 Hz) e o fluminense (50 Hz). As usinas foram ligadas por uma linha de transmissão que entrou em serviço em 1947, após adaptação de duas unidades de Cubatão para a geração em 50 Hz. Já em 1950, a linha passou a operar com a subestação conversora de frequência de Aparecida do Norte (SP). Tratava-se, porém, de uma solução paliativa para o sistema de geração de energia do grupo Light, uma vez que a capacidade de conversão da subestação era limitada a 50 MW.
Outra medida paliativa foi a aquisição da usina térmica flutuante Seapower, construída pelo governo americano durante a Segunda Guerra Mundial para atender às bases aliadas na Europa. A usina flutuante, com 25 MW de capacidade, chegou ao Rio em fins de 1950, ganhou o nome de Piraquê e logo foi ligada ao sistema elétrico da Light.
Em janeiro de 1949, a holding Brazilian Traction, Light and Power obteve um empréstimo do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial) no montante de 90 milhões de dólares para obras de expansão do parque gerador de suas empresas no Rio e em São Paulo. Foi o primeiro empréstimo do Banco Mundial para uma “corporação não oficial”. A operação contou com o aval do Tesouro Nacional, aprovado pelo Congresso Nacional, não obstante a oposição de personalidades e parlamentares de diversos partidos políticos.
O rol de empreendimentos do programa de expansão da Light compreendia as obras de transposição das águas do rio Paraíba do Sul (desvio Paraíba-Piraí) para utilização no Complexo de Ribeirão das Lajes e a construção das usinas subterrâneas de Nilo Peçanha (RJ) e Cubatão (SP). Entretanto, antes da aplicação efetiva dos recursos do empréstimo, a Light voltou a solicitar medidas de racionamento no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Em outubro de 1949, Kenneth McCrimmon, um dos principais dirigentes do grupo, já se mostrava preocupado com a situação do fornecimento de energia no Rio de Janeiro. O reservatório de Lajes estava com apenas 22% de sua capacidade de armazenamento e as vazões no rio Paraíba do Sul eram menores que a média registrada em vinte anos, prejudicando a operação da usina de Ilha dos Pombos. “Esperamos tempos muito duros antes que possamos montar novas instalações” declarou McCrimmon. No final do ano, por medida de economia de energia, o horário de verão foi instituído em todo o território nacional por decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra.
O plano de racionamento no Rio de Janeiro entrou em vigor em fevereiro de 1950 de modo a evitar, segundo o CNAEE, “o esgotamento das fontes de energia existentes, cujas consequências teriam efeitos imprevisíveis”. Foi instituída a Comissão de Racionamento, dirigida pelo coronel Alcir de Paula Freitas Coelho, encarregada de acompanhar e fiscalizar a execução não só das medidas de restrição impostas ao consumidor, como também daquelas que a Light deveria executar para minorar a crise e abreviar os trabalhos do desvio Paraíba-Piraí.
O Conselho determinou a redução de 5% do consumo para as indústrias, com base na média verificada entre outubro de 1948 e outubro de 1949, e limitou o consumo mensal das residências e estabelecimentos comerciais à média apurada no mesmo período. As medidas restritivas tornaram mais longas as noites dos cariocas. Nas ruas, as luzes foram acesas mais tarde e apagadas mais cedo, e os letreiros luminosos só funcionavam em horários determinados.
O racionamento foi suavizado com as chuvas dos últimos meses de 1951 e suspenso em fevereiro do ano seguinte. A entrada em funcionamento das usinas de bombeamento de Santa Cecília, no rio Paraíba do Sul, e de Vigário, no rio Piraí, estabilizou a situação do reservatório de Lajes por alguns meses. Mas o alívio foi apenas momentâneo. Em junho de 1952, o CNAEE impôs novas medidas de restrição de consumo na zona de operação da Light no Rio de Janeiro, que incluíram interrupções no fornecimento de energia elétrica, apesar dos protestos de industriais e comerciantes.
Em São Paulo, o racionamento teve início em março de 1950, em decorrência não da falta de chuvas, mas da excessiva demanda nas horas de carga máxima. Foram impostas restrições a todos os consumidores da São Paulo Light, com exceção dos hospitais, casas de saúde, serviços de saneamento, indústrias alimentícias, laboratórios de pesquisas biológicas e de medicamentos. A iluminação pública na capital paulista também foi racionada, assim como os suprimentos da energia para outras concessionárias. Atendendo resolução do CNAEE, a Light iniciou a construção da termelétrica de Piratininga no bairro de Santo Amaro para reforçar o abastecimento da capital paulista. Em dezembro, o CNAEE abrandou as medidas de racionamento, considerando o “elevado espírito de cooperação revelado pela generalidade dos consumidores” da São Paulo Light e a melhoria das reservas hidráulicas da concessionária. Suspenso em dezembro de 1951, o racionamento voltaria a afligir os paulistanos em julho do ano seguinte.
A crise energética no Rio e em São Paulo perdurou até 1955, atingindo níveis dramáticos em função das condições hidrológicas extremamente desfavoráveis nas principais bacias da região Sudeste e da insuficiência dos investimentos na ampliação da capacidade instalada dos sistemas da Light.
No Rio de Janeiro, os cortes no fornecimento de energia chegaram a ser de 5 a 7 horas diárias. Em São Paulo, os consumidores foram divididos em grupos com um rodizio de interrupções diárias de três horas de fornecimento no inicio de 1953, logo aumentado para quatro horas. Cortes sem aviso prévio e quedas frequentes de tensão ocasionaram prejuízos para a indústria. O engenheiro e professor Catullo Branco conta que “quando a potência exigida pelo consumo excedia a potência das máquinas geradoras, ocorria a interrupção total com a supressão de serviços de elevadores, resfriamento de fornos e endurecimento de material em fundição”, entre outros transtornos.
A escassez de energia comprometeu o ritmo de crescimento da economia e, sobretudo, da atividade industrial. Para suprir a deficiência, empresários paulistas instalaram centenas de geradores a diesel em suas fábricas. Em 1955, o estado somava aproximadamente meio milhão de quilowatts em pequenos grupos termelétricos pertencentes a estabelecimentos industriais e comerciais que haviam investido na autoprodução como resposta à crise de suprimento de energia.
Os cortes de fornecimento de energia também provocaram a redução de jornada de trabalho e de salários de operários. Foi nesse contexto que irrompeu em São Paulo o maior movimento grevista ocorrido no segundo governo Getúlio Vargas (1951-1954). Iniciada por trabalhadores têxteis em março de 1953, a greve rapidamente se alastrou a outros setores, mobilizando 300 mil trabalhadores. Em entrevista ao semanário O Cruzeiro, o presidente do Sindicato dos Tecelões, Nelson Rustici, declarou: “os operários tiveram seus salários reduzidos de quase a metade por causa do racionamento de energia elétrica A média de um tecelão é de 54 cruzeiros diários para oito horas de trabalho. Hoje, ele trabalha cinco horas apenas, o que representa vinte cruzeiros a menos por dia. Ora, quem é que pode viver com salários mensais de mil cruzeiros?”.
Na capital da República, a crise afetou diretamente o abastecimento de água. O desligamento de circuitos e as oscilações na corrente prejudicaram o trabalho das estações elevatórias. A falta d’água e de energia elétrica foi tratada com ironia na marchinha carnavalesca Vagalume, famosa pelos versos “Rio de Janeiro/ cidade que nos seduz/ de dia falta água/ de noite falta luz”. Também foi mote de uma crônica melancólica do escritor e jornalista Marques Rebelo que começava assim: “Abro a janela para a noite, nela me debruço fumando, brilham estrelas no céu, abre o Cristo seus braços iluminados e lá em baixo a cidade dorme o seu atormentado sono de cidade sem água, sem luz, sem transporte, sem assistência, sem ordem e com os preços pela hora da morte”.
Tanto no Rio como em São Paulo, as medidas restritivas de consumo de energia foram mantidas em 1954 e 1955, apesar dos acréscimos significativos de potência instalada da usina Nilo Peçanha (330 MW) e da termelétrica de Piratininga (160 MW). A crise atingiu seu ápice em fins de 1955, quando o nível do reservatório Billings desceu a 13% de sua capacidade, quase atingindo o fundo lodoso.
Em 1956, a situação foi contornada com a recuperação dos níveis dos reservatórios e a inauguração da usina subterrânea de Cubatão. No início da década de 1960, o suprimento de energia ao Rio e a São Paulo passou a contar com o considerável reforço da produção de usinas geradoras construídas por companhias públicas federais e estaduais, o que possibilitou um atendimento minimamente satisfatório ao mercado consumidor. ///
Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº4/ 2021.
Livros e monografias
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CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Notas sobre racionamento de energia elétrica no Brasil (1940-1980). Rio de Janeiro, 1996.
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil=Panorama of electric power sector in Brazil. 2ª. ed. Rio de Janeiro, 2006.
ENERGIA elétrica: pioneirismo e desenvolvimento na região Rio-São Paulo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1965.
MARANHÃO, Ricardo. Operações políticas e financeiras da Light no Brasil. Anais do XVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. Rio de Janeiro, julho 1991.
MARANHÃO, Ricardo. Estado e capital privado na eletrificação de São Paulo. IN: SZMRECSÁNYI, Támas & MARANHÃO, Ricardo. História de empresas e desenvolvimento econômico. São Paulo: Hucitec, 1996.
TENDLER, Judith. Electric power in Brazil: entrepreneurship in the public sector. Cambridge: Harvard University Press,1968.
Tese
CORRÊA, Maria Letícia. O setor de energia elétrica e a constituição do Estado no Brasil: o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (1939-1954). Tese (Doutoramento em História Social). Departamento de História – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003.
Periódicos
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AMEAÇADOS de redução de salários em virtude do racionamento de energia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro. 03 jul. 1953
Aprovado o empréstimo da Light no Senado. Correio da Manhã, 09 nov. 1948.
Aviso ao público. Racionamento de energia elétrica. Correio da Manhã, Rio de Janeiro 12 abr. 1945.
A falta de energia no Rio de Janeiro. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 set. 1949.
Greve em São Paulo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, ano XXV, nº 26, 11 abr. 1953.
Medidas drásticas contra consumidores que excederam quotas de consumo. Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 nov. 1951.
REBELO, Marques. Janela para a noite. Flan, Rio de Janeiro, ano I nº 32, 15-21 nov. 1953. http://memoria.bn.br/pdf/100331/per100331_1953_00032.pdf
Regime de cortes. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jul. 1953.
Sugestões para resolver o problema da energia elétrica em São Paulo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 07 ago. 1953.
Suspenso o racionamento de energia elétrica em São Paulo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 dez. 1951.