Artes do som e práticas de arquivo

01/12/2021

O som é uma indisciplina do espaço e uma substância que não se deixa capturar de todo. Ao mesmo tempo, gravações de campo e arquivos de acervos pessoais e institucionais são enquadramentos da memória. Vestígios de corpos em contextos e temporalidades específicas sob camadas, suportes e filtros não neutros. Estas duas instâncias juntas – indisciplina e registro (ou captura) – apresentam um problema estimulante à criação sonora e aos processos artísticos contemporâneos que conjugam imagens auriculares, práticas de arquivo e pesquisa de campo.

Sons produzidos a partir de fontes diversas (sonoridades humanas e não humanas), de maneiras previstas ou espontâneas, conferem ao seu espaço de acontecimento leituras imagéticas e perspectivas que escapam à hegemonia do olhar. Se imaginar é um respiro que se instaura como dinâmica vital às atividades humanas, como sonoridades, articulações conceituais e imaginação poderiam subverter e propor desvios às práticas de arquivo?

Uma estratégia possível é a proposição de uma topologia da escuta, a partir de um terreno sonoro e conceitual que dialogue e, eventualmente, se contraponha à prevalência das visualidades. Que contribua com outras camadas e léxicos na construção de um pensamento por imagens. Imagem, assim compreendida como a possiblidade de produzir ou perceber contornos, fixos ou movediços, sonoros e não somente, em enquadramentos e extracampos. E a ideia de arquivo como um objeto complexo (um volume) de vozes polifônicas, que abarca dados, escapes, rastros e memórias em seu suporte histórico de registro. Que acumula inúmeras temporalidades, entrelaçadas e sobrepostas, como em um sítio arqueológico.

Arquivos de campo (volumes captados) e arquivos encontrados (volumes de acervos) não estabelecem hierarquias a princípio. Volumes são entendidos como energia potencial, latências de vozes e silêncios, quer sejam fonogramas de materiais históricos ou gravações realizadas no tempo presente, sob técnicas diversas de captação e em suportes físicos ou virtuais.

Ao território da arte cabe friccionar a noção usual de arquivo – de algo pertencente a uma temporalidade estanque e disposto em uma perspectiva fixa, de enquadramento único, uma gaveta fechada. Uma criação artística pode olhar com liberdade (e sob os cuidados da ética) para materiais diversos em uma construção estético-política, e estabelecer aproximações e desvios, reiterar ou desestabilizar conceitos, encontrar modulações e outros arranjos próprios dos processos de composição.

Assim, podemos pensar poéticas de arquivo como um exercício de escuta, como abertura para dissidências e novos posicionamentos nas relações entre corpo, topologias de um lugar geográfico, histórico ou documental e operações artísticas; entre as tecnologias orgânicas e os dispositivos tecnológicos. Pensar a convivência entre volumes sonoros não neutros e temporalidades específicas (arquivos) como um campo de atuação da arte contemporânea.

Espaçamentos e tecnologias da escuta

Todo espaço desenvolve traços de uma personalidade sonora. Na maior parte das vezes, uma cena inconsciente dos sons que o compõem. A cada recorte de imagem possível para os olhos há uma concentração de elementos a serem percebidos pelos ouvidos. Assim, o tipo de sonoridade de um lugar – uma situação – parece estar intimamente atrelado ao pulso de vida que ali acontece, ou que supomos que aconteça. Uma atmosfera é, por definição, uma camada composta por elementos que não se dissipam.

Modular imagens a partir da escuta é uma operação que atravessa os modos de perceber para trazer à margem um campo de enunciados mais amplo. A este respeito, Jean-Luc Nancy nos diz que “estar à escuta é sempre estar na borda do sentido, ou em um sentido de borda e de extremidade, como se o som não fosse de fato nada mais que essa borda, essa beira ou essa margem”.

Estabelecer distâncias e sustentar proximidades é também uma maneira de estruturar visualmente uma partitura. Selecionar e posicionar símbolos em lugares específicos no espaço do papel é construir um espaço gráfico que irá materializar um espaço sonoro em seguida. Imaginemos uma partitura em processo composicional, durante o exercício das escolhas para combinar durações, intensidades, timbres e frequências — estes elementos-base de um arcabouço musical. Sobre o papel, sons são imagens gráficas, coordenadas espaciais e índices à escuta.

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O termo Hi-Fi, ou alta fidelidade, é comumente associado ao aparato tecnológico da produção sonora. Mas também podemos pensar na ideia de uma “alta fidelidade” resultante do contato entre o sistema auditivo humano e espaços acústicos determinados, com suas sonoridades idiomáticas. O ato da escuta como tecnologia de grande precisão e complexidade, que abarca uma porção considerável de mistérios e pessoalidades em cada corpo ouvinte.

Nos contextos que propiciam de maneira veemente o que poderemos chamar de uma escuta em alta fidelidade, os sons performam uma textura de precisões e distinções, ora dissonantes, ora complementares. As sonoridades diversas que participam da composição dessa atmosfera preservam distâncias em suas frequências de ressonância. Isso faz com que cada coisa aconteça em faixas de ressonância e espectros de reverberação específicos à percepção. Por consequência, cada som é mais nitidamente notado em seu escopo, ou corpo de vibração singular.

Um copo cai no chão da cozinha enquanto o apito da chaleira avisa que a água está fervendo (um contraponto entre som percussivo de média frequência versus som contínuo e hiperagudo). Evento corriqueiro que combina materialidades, instâncias temporais, significados afetivos e indisciplinas do espaço.

Uma sala de concertos ou uma floresta, de maneiras distintas, ecoam suas narrativas sonoras constituídas por sutilezas extremas. Nesses contextos, a convivência de elementos plurais e indexadores do espaço existe e funciona pelas contradições, somas, desvios e perspectivas da escuta em cada ambiente e nos eventos sonoros acionados pelos deslocamentos de ar em tempo síncrono. Quanto mais dilatada a imersão e quanto mais receptiva às camadas de sonoridades, mais amplo o espectro de diferenças, timbres, ritmos e movimentos espaciais que os ouvidos podem visualizar. Significa dizer que a tecnologia dos ouvidos é projetada para a construção de imagens bastante complexas.

Diferentes faixas e frequências sonoras em coexistência proporcionam maior nitidez a um determinado espaço sônico e aos volumes nele inscritos. Sons modulam com o espaço uma arquitetura ao apresentarem ao campo auditivo uma ampla coleção de estímulos – dos patamares mais graves aos mais agudos – e uma gama interminável de dicções, intensidades, pesos. Tudo opera em movimento, uma coisa em conversa com outra, o fragmento anterior com o seguinte e nas relações estabelecidas segundo a segundo. Em um espaço acústico, nos aproximamos da ideia de edição e montagem em tempo real.

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Junto aos timbres – aquilo que é característico de cada fonte sonora e faz com que saibamos identificar a diferença entre um sino e uma tuba – as frequências (alturas sonoras, ou notas) oferecem aos ouvidos um exercício de localização. Criam relações de sustentação e interrupção para ritmos e contrastes, em permanências e escapes, em durações variáveis, no que se constitui na linguagem dos sons. Ao mesmo tempo as frequências, elas mesmas, esboçam imagens para além dos olhos.

No contexto das artes visuais, no campo escultórico, volume é um objeto. Mas também um parâmetro topológico, na medida em que estabelece com o espaço relações irrevogáveis, alterando a percepção do lugar e implicando a observação em perspectivas não necessariamente pictóricas. Ao posicionarmos a escuta como relevo de uma experiência estamos falando, também, de escultura. Um volume do tempo é um arquivo que carrega consigo um pensamento escultórico pelas possibilidades de modular espaço, imaginação e temporalidades, pelas interlocuções poéticas e críticas que proporciona a uma criação artística e pela construção de imagens acústicas não condicionadas a um viés representativo. Volumes do tempo performam materialidades em constante movimento de aparição e desaparecimento: “Nos arquivos da arte contemporânea, os documentos não representam provas, mas imagens que elaboram a disjunção entre retenção e perda, a ausência e a expectativa, o passado e o presente”, escreve Luiz Cláudio da Costa.

Espaçamentos e movimentos rítmicos permitem legibilidade aos sons, convidam e favorecem a percepção de camadas simultâneas, texturas e outras profundidades do espaço – a experiência dos ouvidos se instaura como um deslizar entre timbres, pontos, tropeços e volumes do espaço. Neste sentido, posicionar a escuta como um elemento idiomático em seu lugar de acontecimento é pensa-la como uma prática escultórica, de modulações livres e de arquivamento de uma memória futura de um instante presente. Porque os elementos ali dispostos informam a experiência ao constituírem imagens e geopolíticas, ainda que não visuais, e sempre a partir do corpo que escuta.

Aglutinações e perspectivas conceituais

Nas configurações espaciais caracterizadas pela ausência de nitidez – com espaçamentos menos marcados, sem contornos precisos de emissão acústica e de recepção – os sons impõem à tecnologia dos ouvidos uma impressão direta de aglomeração ou fusão indistinta. Como, por exemplo, em um centro urbano na “hora do rush”. No entanto, nos dois cenários que tomamos em termos comparativos – uma sala de concertos com construção acústica matemática e o coração de uma metrópole – escutar se configura como ato dialógico, refinado e singular.

Termo constitutivo do campo da música, cluster pode ser descrito como um conjunto de elementos que ecoam de maneira simultânea e equânime em suas intensidades. Um volume. Pesado ou leve, translúcido ou opaco, fixo ou efêmero, que se prolonga no tempo ou que pontua o espaço. O efeito resultante deste gesto concreto não obedece a hierarquias de um sistema de valores sonoros hegemônicos, tonais ou mesmo harmônicos. Um cluster pode ser criado pela combinação de timbres quaisquer, incluindo instrumentos tradicionais, vozes e frequências de toda natureza. Pensar que sua poética está em campo aberto possibilita deslocamentos conceituais, ao fixarmos a ideia de cluster como um elemento composicional no território das imagens complexas.

Uma nuvem é um conjunto visível de partículas diminutas, com diferentes formatos e espessuras. Se uma aglutinação sonora se apresenta como trama ou imagem mais condensada à escuta, encontrar pequenas distinções sonoras em meio a um cluster de intensidades ou timbres difusos é também uma operação altamente tecnológica, além de cotidiana. Nesta “coreopolítica_”_ (termo de André Lepecki) dos sons em seu lugar de acontecimento não há neutralidade possível nem ao espaço nem aos corpos que nele vibram. Eventos sonoros deslocam ar, criam linguagens e articulam políticas.

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RIOOIR é um projeto concebido em 1976 pelo artista brasileiro Cildo Meireles. Um disco em vinil contendo sons de gargalhadas humanas de um lado e sons de águas do outro. Estas duas dimensões dialogam como imagens sonoras opostas e complementares: de um lado as pontuações rítmicas e enfáticas do riso, do outro as sutilezas e a fluidez da água de rios e de atividades humanas. Entre um lado e o outro, no manejo das mãos que viram o disco, abre-se uma fresta para ampliarmos a leitura desta proposta.

Um corpo que escuta está em uma relação ativa com os sons e diante de variáveis e imagens que a ele se apresentam. Em uma relação mais crítica ou mais aderente, ora mais informada ora mais empírica. Assim, importa menos classificar platôs de recepção e mais situar a escuta como prática para aberturas diversas, em um campo de construções imagéticas e sensíveis. Por isso, um corpo que escuta é também uma ilha de edição e um acervo, composto de pequenos e sucessivos volumes sonoros que organizam relações dialógicas com repertórios anteriormente incrustrados em suas histórias, em seus vocabulários e autoficções. Um corpo que coleta sons no espaço e modula arquivos, ou volumes do tempo, em imagens e possibilidades narrativas, para dentro e para além de si.

Deslocando o pensamento musical de Pierre Boulez (1925-2016) para o campo das artes visuais: “O que mais me interessa é poder ordenar, modificar, esticar e encolher (as estruturas ou células sonoras). Desta forma, obtém-se uma organização do tempo coletivo que torna-se individual, para tornar-se coletivo novamente. A variação entre o individual e o coletivo, no interior de um grupo, enriquece enormemente as diversas dimensões musicais”.

Nesta proximidade e contaminação entre campos, é instigante pensar composição como uma prática biodinâmica de corpos-acervo. Que operam memórias e constituem, muitas vezes em tempo síncrono, seus próprios arquivos e volumes do tempo. Escutar como compor. Questionar arranjos sociais e históricos, desestabilizar esquemas hegemônicos para construir emancipações e confluências.

Práticas de arquivo e criações artísticas

No “Manifesto Antropófago” (1928), Oswald de Andrade nos provoca a pensar a dimensão não óbvia da escuta quando diz que “só podemos atender ao mundo orecular”: espectro tênue de opacidades e pequenas frestas, nos movimentos entre ouvidos (auricular) e instâncias do acaso e do tempo (oracular). Se todo contraponto a hegemonias parece opor-se a práticas de captura, os arquivos sonoros como volumes do tempo podem modular permanências e escapes – de corpos vivos, lugares e suas vozes – em operações críticas, conceituais e “do ponto de vista das fronteiras movediças”, nas palavras de Mari Carmen Ramírez.

Na medida em que escuta, matéria e acaso se organizam em um mesmo eixo de força, captação sonora – ou qualquer outra maneira de pensar e produzir imagens – adquire o caráter das urgências. Neste debate, é necessário desconfiar das gavetas imóveis, das perspectivas hegemônicas, dos fatos que cobrem rios com asfaltos. Da lama tóxica que aniquila vozes. Do extrativismo que retira de maneira irrecuperável pedaços inteiros do corpo memorial da terra: carvão, ferro, madeiras, commodities.

Arquivo, por isso, como respiração e abertura para fabulações. Um objeto (volume) de vozes polifônicas que abarca dados, rastros e memórias em seu suporte histórico de registro. Que documenta e fixa temporalidades, contextos, timbres e imagens (sonoras e não somente). Mas também um exercício de liberdades, porque a memória parece ser um escape das imagens mais do que uma captura do tempo.

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Um convite encerra esta escrita, ao mesmo tempo em que abre um outro destino aos ouvidos. Composta em 2020 a partir de gravações de campo e arquivos de acervo, a Peça Radiofônica, op.1, n.2 propõe uma textura de temporalidades históricas e dicções atuais, em operações conceituais e poéticas. Todo som tem algo de inapreensível – águas em movimento constante, sendo sempre outras, como disse Heráclito – e uma origem é, por certo, uma inscrição. Mas pode um corpo deslocar e ser deslocado de seus começos? Quantas e quais são as vozes do Brasil, como compõem dizeres junto a vozes da Latinoamérica e a vozes não humanas? De que modos desestabilizam perspectivas hegemônicas? ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº4/ 2021.

Referências Bibliográficas:

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RAMÍREZ, Mari Carmen. Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina. Arte & Ensaios – Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA-UFRJ, ano XIV, número 15, p. 184-195, 2017.