Imagens à margem

01/09/2021

Você já teve a curiosidade de imaginar como viviam seus familiares no passado? Como se vestiam, quais eram suas opções de lazer, do que se alimentavam, como moravam? O século XX, o século passado, é logo ali, e muitas construções, dinâmicas e hábitos familiares daquele período influenciam o hoje.

Às vezes me pego pensando no meu avô, Manoel Alexandre Passos, um homem nascido em 1906, no Rio de Janeiro. Infelizmente não o conheci, e minha mãe guarda poucas lembranças: ele se foi quando ela ainda era pequena. Sei que meu avô era filho de ex-escravizados, que provavelmente foram “beneficiados” com alguma das leis abolicionistas. Ele levou uma vida simples, como porteiro de um prédio de classe média na zona norte carioca.

No início do século XX a fotografia ainda era um artigo caro, guardado para ocasiões solenes, por isso meu avô quase não possui registros. Com a ajuda de documentos e fotografias custodiados por espaços de preservação e memória, como arquivos e bibliotecas, posso fazer memória, criar conexões e refletir sobre meu avô e a minha construção. Em especial, o álbum fotográfico “O negro brasileiro nas primeiras décadas do século XX: cultura e aspectos sociais”, depositado na Biblioteca Nacional, me ajudou a identificar e a visualizar um pouco da vida de tantos negros brasileiros no início do século passado.

O álbum fotográfico integra o Arquivo Arthur Ramos (Seção de Manuscrito e Iconografia da BN). Desde 2016, esse arquivo faz parte do Programa Memória do Mundo, da Unesco, dada a sua relevância e valor como patrimônio cultural. O conjunto documental é um arquivo pessoal, com documentos produzidos, recebidos e acumulados ao longo da trajetória pessoal e profissional de Arthur Ramos. O arquivo foi vendido à Biblioteca Nacional em 1956, pela viúva Luiza Ramos, após a morte de Arthur, em 1949. O conjunto soma mais de 5 mil itens documentais, correspondências, manuscritos, ensaios, recortes de jornais e fotografias, com temas relacionados a educação, medicina, religião, antropologia, estudos sociais, etnografia, folclore e à população negra.

Arthur Ramos de Araújo Pereira foi um alagoano nascido em 1903, que em 1926 tornou-se médico pela Universidade Federal da Bahia. Iniciou sua trajetória profissional atuando nas áreas de psiquiatria e medicina legal, acompanhando o trabalho de seu mestre, o também médico Nina Rodrigues, que além de estudar medicina legal deu início aos estudos da antropologia criminal. Nina foi o pioneiro nos estudos sobre a população negra e as questões raciais, sendo autor do livro Os africanos no Brasil, escrito entre os anos de 1890 e 1905. Arthur, pela afinidade e empolgação com os trabalhos iniciados por seu mestre, encaminhou a carreira para a antropologia, em especial aquela voltada para a parcela da população brasileira formada por negros e mestiços, e para as religiões de matrizes africanas.

Arthur Ramos empreendeu estudos etnográficos sobre os terreiros da Bahia. Investigou a vida dos negros com viés da psicanálise e psiquiatria para compreender a formação da cultura brasileira. Inovou ao utilizar a psicanálise aplicada à religiosidade dos negros, sobretudo no candomblé e no sincretismo religioso com o catolicismo. Promoveu estudos sobre higiene mental relacionada à escola primária. Em suas frentes de pesquisa e trabalho, as dimensões sociais, culturais, econômicas e comportamentais dos indivíduos eram indispensáveis na formulação de suas ideias.

O contexto social, político e econômico brasileiro no início do século XX foi marcado por vivências próprias sob impactos do cenário mundial. As décadas iniciais remetem ao nascimento e consolidação da República, com raízes e construção no Brasil colonial, na chegada da família Real portuguesa e no período imperial. O período após abolição tinha, portanto, herança exploratória, de pau-brasil, escambos, mineração, cana-de-açúcar, café e, sobretudo, escravocrata.

Foram longos anos, entre os séculos XVI e XIX, de desembarques de navios negreiros vindos de várias partes do continente africano, que culminaram em milhares de negros à margem da sociedade. Os negros aqui escravizados foram a base do trabalho braçal exploratório e a mão de obra para a economia da colônia e do Império. O Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão, foi um processo duradouro que nos atinge até hoje, com o racismo estrutural e velado em nossa sociedade.

As cidades e zonas urbanas brasileiras cresciam sob novas demandas demográficas, com o avanço das indústrias a partir dos investimentos da elite rural, a ampliação do sistema educacional e o progresso no comércio. Novos espaços como bancos, cafés, teatros, museus, bibliotecas e livrarias eram frequentados pelas elites locais. No mesmo período, ocorria a migração das áreas rurais, do interior para as capitais, pelos atrativos econômicos e pela escassez de trabalho no campo. Com o dinamismo e o crescimento populacional no espaço urbano, a questão da falta de moradia somou-se ao crescente número de trabalhadores desempregados. Em São Paulo, o movimento operário crescia e se fortalecia.

Ao passo dos avanços citados, os negros enfrentavam preconceitos ao passar da condição de escravizados para a de trabalhadores livres com baixa remuneração, sujeitos a poucas oportunidades de empregabilidade e de ascensão social. Enquanto isso, crescia no país a imigração europeia e japonesa. Os europeus chegaram principalmente a partir da segunda metade do século XIX e direcionaram-se preferencialmente para a região Sul, movimento ampliado em consequência das duas guerras mundiais. Migrantes europeus encontraram no Brasil um espaço propenso para recomeços, terra para trabalhar e subsistir, enquanto os negros, sem direito à terra, batalhavam por condições mínimas de sobrevivência.

O início do século XX também foi marcado por mudanças urbanísticas, arquitetônicas e sanitárias. A elite latifundiária, industrial e política nutria o desejo de embelezar as cidades tornando-as semelhantes às europeias. O Rio de Janeiro, por exemplo, então capital do país, teve suas ruas ampliadas, praças criadas e regiões desapropriadas, como o Morro do Castelo e inúmeros cortiços. Com as obras, iniciadas em 1903, o prefeito Pereira Passos pretendia modernizar a cidade inspirado na arquitetura francesa, talvez no intuito de camuflar a herança escravocrata de séculos passados. Com o esvaziamento dos espaços populares de moradia na região central, houve a criação e expansão dos subúrbios e das favelas. Quem conseguiu permanecer próximo ao centro da cidade residia no Morro da Providência, no Morro do São Carlos e em outras favelas de forma aglomerada e com estrutura precária.

Sem perspectiva financeira e de moradia, a maioria dos pobres morava nos subúrbios e favelas, sobretudo os negros. Apesar de toda adversidade, eram locais propenso à cultura, ao lazer, ao trabalho e de expressão religiosa. Diante do contexto das guerras e das convulsões sociais, houve um despertar para as questões dos negros, encarada na época apenas de forma estética ou econômica. Acredita-se que esse despertar tenha sido o contexto de criação, confecção e manutenção do álbum “O negro brasileiro nas primeiras décadas do século XX”.

O álbum de fotos foi provavelmente produzido durante as primeiras três décadas do século passado, embora contenha algumas imagens do século XIX. A maioria das imagens está em preto e branco, salvo alguns cartões postais. O álbum possui 105 fotos e 27 cantoneiras vazias, lacunas que talvez se justifiquem pela natureza do conjunto, um item pessoal. As fotografias faltantes podem ter sido retiradas para ilustrar outro álbum, doadas a outra pessoa ou descartadas. São inúmeras as possibilidades dentro de um arquivo pessoal. Tecnicamente, as fotografias foram catalogadas pela equipe do Projeto de Preservação e Conservação do Acervo Fotográfico (Profoto), da Biblioteca Nacional, no ano de 1999.

As imagens foram capturadas em diferentes lugares, por diferentes fotógrafos, entre as regiões Nordeste e Sudeste. Os registros foram feitos nos estados de Alagoas, terra natal de Arthur; Bahia, onde ele cursou medicina; Paraíba; Pernambuco; Minas Gerais; Rio de Janeiro, onde viveu durante um tempo; e em São Paulo. As imagens mostram diversos contextos e fragmentos de indivíduos, que nos permitem apenas fazer suposições sobre os fatos. Homens, mulheres, adultos, idosos e crianças foram fotografados no lazer, em seu ofício, como objeto de estudo, em momentos de resistência e de tortura. Há também imagens de espaços físicos, como lagoa, fazendas, rios e casas.

A fotografia intitulada “Craniometria aplicada aos negros” registra uma atividade de pesquisa relacionada à antropologia. A craniometria tinha por objetivo, ao estudar os crânios, compreender as raças humanas, identificar capacidades intelectuais e possíveis evoluções. A partir destes estudos, os negros foram considerados inferiores e com baixa capacidade intelectual, enquanto pessoas brancas eram consideradas superioras. A fotografia exemplifica o estudo científico da época que corroborava com discursos de inferiorização da população negra.

Nas imagens do álbum relacionadas ao lazer encontramos, por exemplo, a tradicional corrida de saco, o quebra pote e a música, cantadores de toada — gênero musical que ganhou vida no sertão, com a impressão dos versos sobre as alegrias e dificuldades dos vaqueiros no campo. Atividades gratuitas, que provavelmente proporcionavam momentos de alegria e boas risadas para o povo.

Algumas fotografias mostram o carnaval no Rio de Janeiro e na Paraíba, expressão forte da cultura brasileira, que chegou ao país através da festa e tradição portuguesa, ainda no século XVII. No final do século XIX, houve a expansão popular da festa, a partir da criação das associações carnavalescas, de cordões, blocos, afoxés. Já no início do século XX, em 1928, houve a criação da primeira escola de samba, a “Deixa Falar”, no Rio de Janeiro. A identidade negra está impressa no carnaval brasileiro, seja nos instrumentos, nas roupas, nas letras das músicas. Também na figura das baianas, que se vestem em analogia e homenagem às mulheres do candomblé.

Outra referência forte de cultura, arte e resistência da população negra é a capoeira. Praticada pelos escravizados como lazer e luta, no encontro de memórias de seus países e de reação contra o sistema escravocrata, a capoeira foi proibida e reprimida no Brasil até a década de 1930, com conotação negativa e associada à marginalidade. A preservação dessa arte até os dias de hoje ocorreu graças a grupos que permaneciam se encontrando e aperfeiçoando a ginga, mesmo que às escondidas.

No processo da abolição, a população escravizada tornou-se livre porém sem direito à educação. A maioria dos negros não possuía profissão ou um ofício. As fotografias do álbum captam aquele contexto nas imagens de atividades braçais, como o carregamento de um piano, a pesca e o comércio ambulante.

Também foram registradas imagens de negros na entrada de um mocambo em Alagoas. Os mocambos, bem como os quilombos, eram locais de fuga e resistência, de difícil acesso, em meio à mata, comunidades criadas para abrigar escravizados que conseguiam escapar de seus senhores. Os quilombos eram áreas maiores, que conseguiam reunir vários mocambos numa espécie de aldeia. Após o período de escravidão, os mocambos continuaram como residências de negros e sertanejos nas áreas rurais.

É interessante observar como São Paulo foi cenário de importantes movimentos sociais no início do século XX, como o operário, o sindical e um espaço de resistência negra. A Frente Negra Brasileira é considerada o primeiro movimento negro organizado no país. Criada em 1931 e reconhecida como partido político em 1936, a Frente trazia como pautas a igualdade de direitos e a participação dos negros na sociedade, e promovia eventos sociais, educacionais e culturais para essa população. O movimento, no entanto, findou no ano seguinte, com o golpe de Getúlio Vargas que instaurou a ditadura do Estado Novo.

Por fim e com pesar, podemos destacar imagens que registam requintes de crueldade utilizados para castigar os escravizados. Embora o álbum seja do início do século XX, algumas fotos foram registradas a partir de imagens do século XIX. A fotografia do “Izidoro, escravizado de Flavio da Cunha Lima Ribeiro” demonstra o excesso dos castigos, exibindo vários instrumentos de tortura. Acerca dos instrumentos, algumas fotografias registram algemas, libambo, correntes de mão, de pescoço. Alguns instrumentos pertencem ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

O contexto geral das fotografias reflete as atividades e os interesses de pesquisa de Arthur Ramos, em um período em que a população negra era negligenciada pela ciência e pelas políticas públicas brasileiras. No início do século XX a população negra, embora marginalizada, encontrava meios de subsistir e de ser incluída no projeto político e social do país. Arthur Ramos acreditava na ciência e pretendia combater o racismo. Os registros do álbum sob custódia da Biblioteca Nacional fomentam imagens e imaginários sobre os negros, silenciados por muitos anos. Os negros brasileiros no início do século XXI seguem batalhando por igualdade e, sobretudo, pelo fim do racismo do Brasil. Seguimos lutando por dias melhores.

Visualize o álbum completo: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon299056/icon299056.htm ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Referências Bibliográficas:

Brasil. Biblioteca Nacional. [O negro brasileiro nas primeiras décadas do século XX: cultura e aspectos sociais]. [S.l.: s.n.]. 1 álbum (105 fotos, gelatina, xx.) Localização: Iconografia - icon299056. Disponível em: objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon299056/icon299056. pdf . Acesso em: Acesso em: 2021-05-28.

RAMOS, Arthur. Arquivo Arthur Ramos. [S.l.: s.n.], 1740-1955. 7,20 m. (4.655 registros).

RAMOR, Arthur. O negro brasileiro. São Paulo. Ed. Nacional, 1940: [s.n]. v. il. Disponível em: http:// bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/272. Acesso em: 2021-05-28;

TAMANO, Luana Tieko Omena. A mestiçagem no microscópio: entre a detração e a particularização, permaneceu a democracia racial. Uma análise de A mestiçagem no Brasil de Arthur Ramos (19301950). 2011. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. doi:10.11606/D.8.2011.tde-28032012184315. Acesso em: 2021-06-01.