São Paulo às escuras

01/09/2021

O uso da eletricidade no Brasil tornou-se relativamente importante a partir do início do século XX, com a multiplicação de empreendimentos de geração de energia elétrica, sobretudo na região Sudeste. Essa forma de energia passou a ser insumo essencial para as atividades urbano-industriais, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, as duas maiores cidades do país, atendidas pelas empresas do grupo Brazilian Traction, Light and Power Company, conhecido como Light, na época o símbolo maior do capital estrangeiro no Brasil.

Em 1920, a iluminação e os bondes elétricos já integravam o cenário urbano do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais, cabendo destacar também a presença significativade motores elétricos nos estabelecimentos fabris. O censo de 1920 revelou que a eletricidade respondia por 47% da força motriz da indústria, percentual dez vezes superior ao registrado em 1907. Mostrou também que São Paulo, com 600 mil habitantes, havia ultrapassado o Rio de Janeiro como maior centro industrial do país. O número de consumidores da São Paulo Light já passava de 55 mil, entre residências, estabelecimentos comerciais e industriais. Chegaria a mais de 140 mil no final daquela década. Pode-se imaginar,assim, o impacto econômico e social de uma eventual crise de oferta de energia na capital paulista.

Parnaíba, ponto de partida

Primeira empresa do grupo Light no Brasil, a São Paulo Tramway, Light and Power Company foi constituída em abril de 1899 em Toronto, no Canadá, por investidores canadenses e norte-americanos. A companhia encontrou interesses concorrentes em São Paulo, mas rapidamente obteve da administração municipal o virtual monopólio dos serviços de bondes, de iluminação pública, de produção e distribuição de energia.

Em maio de 1900, a São Paulo Light inaugurou a primeira linha de bondes elétricos da capital paulista, com energia gerada por uma modesta usina a vapor. Sem demora, a Light construiu a usina de Parnaíba, situada no rio Tietê, a 33 km da capital paulista. A obra mobilizou mais de 750 trabalhadores, sendo concluída em apenas 15 meses. Primeira hidrelétrica da companhia e a maior brasileira até então, a usina foi inaugurada em setembro de 1901 com capacidade de 2 megawatts (MW), logo duplicada, funcionando com custos operacionais extremamente baixos.

Parnaíba (mais tarde denominada Edgard de Souza) foi progressivamente ampliada para atender à demanda da tração dos bondes e dos serviços de iluminação da capital, além das necessidades de grandes consumidores, como os moinhos de trigo de Francisco Matarazzo, e de ampla gama de usuários menores, como oficinas de máquinas, processadores de alimentos, usinas de açúcar e de beneficio de café. Em razão do volume de água exigido pelas turbinas da hidrelétrica, a Light precisou regularizar a vazão do rio Tietê. A solução encontrada foi a implantação de um reservatório de compensação nas imediações de São Paulo. Assim foi construído o reservatório de Guarapiranga, atualmente utilizado para abastecimento de água da capital. Em 1912, Parnaíba atingiu a potência máxima de 16 MW.

Como complementação à energia hidrelétrica, Light instalou uma termelétrica a vapor junto à subestação de Paula Souza, inaugurada em 1912, coincidentemente um ano de estiagem e baixas vazões no rio Tietê. O engenheiro Edgard de Souza, superintendente da empresa, conta que a termelétrica de 4 MW funcionou continuamente no ano seguinte, fornecendo energia nas horas da ponta da carga.

Esgotadas as possibilidades de ampliação de Parnaíba, os dirigentes da Light decidiram construir uma segunda hidrelétrica em São Paulo para o aproveitamento do potencial energético do Salto do Itupararanga, no rio Sorocaba. Essa opção levou em conta não apenas a excelente situação topográfica do local como também a vantagem de o rio Sorocaba independer do regime de precipitações chuvosas do Tietê. Para viabilizar o empreendimento, foi constituída a São Paulo Electric Company, em Toronto, representada no Brasil pelo advogado Alexander Mackenzie, um dos principais dirigentes do grupo Light no país.Foi por intermédio da São Paulo Electric que a Light ultrapassou os limites da capital paulista, começando a estender seu raio de ação pelo interior do estado.

A construção da usina de Itupararanga foi iniciada em 1911 e concluída em 1914, com a entrada em operação de três unidades geradoras, somando 37,5 MW de capacidade instalada. O plano geral da obra, que mobilizou 2 mil operários, compreendeu a construção de reservatório, canais, túneis e casa de força para aproveitamento de uma queda total de 230 metros. A São Paulo Light estava no fim de seus recursos, com o reservatório de Guarapiranga em nível muito baixo, quando começou a receber a energia de Itupararanga. A usina receberia mais duas unidades de 10 MW, tendo em vista o fornecimento de energia para usos diversos, inclusive a eletrificação das linhas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

A crise hídrica e o racionamento

Segundo o historiador canadense Duncan McDowall, a capacidade geradora da Light esteve sempre um passo à frente da demanda durante os primeiros vinte anos da empresa em São Paulo. Em 1925, contudo, a capital e municípios vizinhos sofreram uma grave crise de energia em decorrência de uma prolongada estiagem que reduziu as vazões dos rios Tietê e Sorocaba e a geração das usinas da Light. Foi a primeira grande crise de energia elétrica ocorrida no país, marcada por medidas inéditas de racionamento.

A estiagem na região de São Paulo em 1924 obrigou a Light a lançar mão da água armazenada em Guarapiranga e Itupararanga, mesmo diante do pequeno aumento de consumo de energia naquele ano, em razão de greves que paralisaram fábricas e da revolta tenentista de julho,que deixou um rastro de destruição na capital paulista. De todo modo, na virada do ano os dois reservatórios estavam praticamente esgotados, ocasionando uma redução de 50% na geração de energia, segundo Duncan McDowall. A Light ampliou a geração térmica e contratou energia de outras companhias, mas essas medidas de emergência foram insuficientes para sanar a situação.

Em 13 de fevereiro, atendendo a requerimento da Light, o prefeito Firmiano Pinto decretou medidas de restrição de consumo particular e industrial na capital, com corte de fornecimento para quem desobedecesse. Também resolveu diminuir o número de bondes nos horários de menor movimento, reduzir a iluminação pública, proibir a iluminação de vitrines e fachadas de casas comerciais e limitar as horas de funcionamento de cinemas, teatros, cafés, restaurantes e clubes. Em março, a prefeitura adotou medidas ainda mais rigorosas, como a suspensão do tráfego de bondes de carga, a supressão da iluminação particular durante o dia e o fechamento das casas noturnas às 22 horas.

O impacto da crise na vida cotidiana dos paulistanos foi registrado numa crônica do escritor, jornalista e dramaturgo Afonso Schmidt, citada pelo historiador Ricardo Maranhão em prefácio ao livro de Edgard de Souza sobre a história da São Paulo Light. “O transeunte olhava as praças, as avenidas, as ruas estreitas e sentia que faltava alguma coisa. Os prédios ainda estavam iluminados. Homens e mulheres se acotovelavam nos pontos de bondes e de ônibus; mostravam pressa de regressar aos bairros. A escuridão vinha vindo, vinha vindo, e ninguém queria ser alcançado pelas suas mãos de sombra. A noite era silenciosa e fria. Tinha botas de sete léguas e caminhava pisando nos telhados. As sereias ficaram aflitas e botaram a boca no mundo. Os sinos viraram cambalhotas nas torres das igrejas. Em Parnaíba, um moço de boné puxou uma alavanca de ferro com pega-mão de borracha, e metade das lâmpadas elétricas da cidade se apagou, ficando como taças foscas, esvaziadas de luz. E a escuridão começou a devorar a Capital; engoliu o Martinelli, a ‘Light’, o Matarazzo, o Saldanha Marinho, todas as pontas de São Paulo que entram pelo céu. Mastigou as praças e as ruas. A gente começou a ver uma janela aqui, outra não se sabe onde; um homem correndo pelo viaduto, outro encostado no portal de um banco”.

Como a crise energética atingiu diversos municípios próximos à capital, o governo estadual interveio temporariamente na indústria de energia elétrica, centralizando as decisões e coordenando o racionamento. O Decreto no 3.835, de 28 de março de 1925, assinado pelo presidente de São Paulo, Carlos de Campos, ex-funcionário e velho amigo da Light, determinou que os serviços de geração e distribuição de energia elétrica, luz e força motriz, não só nas áreas de concessão das empresas do grupo Light (a São Paulo Light e a São Paulo Electric), mas também nas da Companhia Docas de Santos, da Campineira de Tração, Luz e Força e da Empresa Luz e Força de Jundiaí, ficariam diretamente subordinados à Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Segundo o decreto, o governo tinha o intuito de “efetuar uma equitativa distribuição da energia disponível, acautelar os interesses gerais do trabalho e evitar possíveis perturbações da segurança coletiva”. Em anúncios de jornal dirigidos especialmente aos industriais, a Secretaria de Agricultura comunicou a impossibilidade de atendimento de qualquer pedido de acréscimo nas instalações existentes bem como de novas ligações de força.

Em abril, São Paulo estava à beira do colapso energético: o reservatório de Guarapiranga estava com apenas 10% de sua capacidade e o de Itupararanga com 4%, tendo a vazão do rio Sorocaba baixado 62%. As usinas da Light conseguiam gerar somente 43 MW para uma demanda de quase 60 MW.

Dada a gravidade da situação, aLight instalou mais um grupo gerador na usina térmica de Paula Souza e construiu em caráter emergencial uma linha de transmissão de 66 km até Santos para recebimento de energia da hidrelétrica de Itatinga, da Companhia Docas de Santos.Em junho, Itupararanga recebeu mais uma unidade geradora, atingindo a capacidade 56 MW, mas a vazão do rio Sorocaba não era suficiente nem para alimentar as antigas turbinas da usina.

A providência mais importante da Light foi a antecipação da construção da hidrelétrica de Rasgão, no rio Tietê, município de Pirapora de Bom Jesus. As obras da usina, supervisionadas pelo renomado engenheiro Asa White Billings, foram concluídas num prazo recorde de 11 meses.

Em novembro, o fornecimento de energia à capital foi normalizado com as chuvas abundantes, que tornaram satisfatórias as condições de vazão no rio Tietê, possibilitando o início da operação da usina de Rasgão, com 22 MW de capacidade.

Ainda durante a crise, a São Paulo Light iniciou a construção da usina de Cubatão (depois Henry Borden), que seria sua primeira hidrelétrica com capacidade superior a 100 MW. Tratava-se de uma monumental obra de engenharia, com um sofisticado sistema de barragens e reservatórios para o aproveitamento das águas da bacia do rio Tietê e do grande desnível oferecido pela vertente oceânica da Serra do Mar.

Dando emprego a cerca de 4 mil trabalhadores e utilizando máquinas modernas e de grandes dimensões, o chamado Projeto da Serra foi iniciado em abril de 1925. Com a inauguração da usina, em outubro do ano seguinte, e sua progressiva motorização, a oferta ultrapassou a demanda na área da Light em São Paulo por um longo período. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Leia Mais:

A Estiagem ameaçadora. A Gazeta, São Paulo, 6 mar. 1925 - http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=763900&pesq=%22crise%20de%20energia%22&pasta=ano%20192&pagfis=20509

Crise de energia eléctrica. Correio Paulistano, São Paulo, 8 ago. 1925. - http://memoria.bn.br/ DocReader/docreader.aspx?bib=090972_07&pasta=ano%20192&pesq=%22crise%20de%20energia%22&pagfis=18577

CAMPOS, Carlos de. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo em 14 de julho de 1926. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720526&pesq=%22crise%20de%20energia%22&pasta=ano%20192&pagfis=2990

CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro, 2006

Energia Elétrica: pioneirismo e desenvolvimento na região Rio-São Paulo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1965.

MCDOWALL, Duncan. Light. A história da empresa que modernizou o Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.

SCHMIDT, Afonso. São Paulo de meus amores. São Paulo, 1954.

SOUZA, Edgard Egydio de. História da Light. Primeiros 50 anos. Departamento de Patrimônio Histórico/Eletropaulo, 1989.

TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil. Século XX. Rio de Janeiro:Clavero, 1993.