Luzes da Experiência

01/09/2021

A crise hídrica que o Brasil está enfrentando atualmente pode ser comparada à crise do racionamento de 2001?

A crise energética de 2001 foi provocada sobretudo por uma hidrologia crítica, mas também pelo atraso de obras. O contexto atual guarda semelhança com aquele, porém há fatores que os diferenciam.

O ponto comum é a hidrologia. A situação dos reservatórios é hoje ainda mais crítica. Vivemos o pior momento de um histórico de 91 anos, como vem sendo largamente divulgado pela mídia. Os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste estão agora, no final de agosto, com 22% de sua capacidade, enquanto em 2001 estávamos com 23%. Naquele ano, o Nordeste também enfrentava grave escassez hídrica. Na bacia hidrográfica do São Francisco, os reservatórios de Três Marias e sobretudo o de Sobradinho não estavam bem. Hoje, entretanto, estamos com praticamente 50% de armazenamento em média na Bacia do São Francisco, e em 2001 a média era de 20%. Na região Sul, o armazenamento estava muito bem em 2001, agora está mal: a hidrologia daquela região sofreu com o atraso do período chuvoso.

Outra grande diferença está na matriz energética atual, com recursos mais diversificados e maior espacialização. Até novembro ou dezembro, é generosa a safra de ventos no Nordeste, suficiente em alguns períodos para alimentar toda a região. As usinas da Bacia do São Francisco, juntamente com os parques solares e eólicos, passaram a ser exportadoras para o Sudeste e o Centro-Oeste, o inverso do que ocorreu em 2001, quando era a região Nordeste que mais precisava importar energia de outras regiões.

Nos últimos vinte anos o parque térmico também cresceu e ficou muito mais potente. Uma das principais razões do racionamento de 2001 foi que dependíamos 85% do parque hidráulico, enquanto atualmente nossa dependência é da ordem de 65%. Hoje, conforme já disse, temos geração de energia solar e eólica que atende 11% da carga total, e a geração térmica passou a responder por 20% do consumo do país.

As usinas do Norte também fazem uma grande diferença na conjuntura atual, pois ao menos durante seis meses dão significativa contribuição para o atendimento ao mercado do Sudeste, mesmo sendo a fio d’água, ou seja, sem reservatórios, exceto Tucuruí. Além disso, é bem maior a capacidade de interligação entre Sul e Sudeste, Norte e Nordeste, Norte e Sul, Norte e Sudeste. Essa possibilidade de intercâmbios entre as diferentes bacias ajuda muito.

A rede básica mais que dobrou. Hoje, temos mais de 170 mil quilômetros de linhas de alta tensão. Esse talvez seja o elemento diferenciador mais importante, junto com o crescimento do parque térmico. Por último, temos a ampliação da capacidade de importação de energia da Argentina e do Uruguai. Em síntese, os recursos para enfrentar a hidrologia crítica de 2001 eram bem menores do que os recursos atuais, tanto em geração quanto em transmissão.

Especialistas admitem a possibilidade de “apagões” e até mesmo de racionamento em razão da crise hídrica. A propósito, seria interessante esclarecer a diferença entre apagão e racionamento.

Apagões ocorrem, fundamentalmente, de duas maneiras. Podem ser fruto de uma falha de equipamento: usina, linha de transmissão, subestação, transformador, como foi o caso, por exemplo, do incêndio do transformador no Amapá em novembro de 2020. Estes eventos são ocasionais, podem ocorrer em um ou mais elementos da infraestrutura da rede, como linha de alta tensão, subestação ou uma linha urbana. O efeito pode ser tópico, bem localizado, restrito a um bairro ou a apenas uma rua. Mas pode ganhar dimensão maior se a falha acontecer na subestação que alimenta uma grande área. Já vimos apagões de grandes proporções que atingiram cidades, estado ou uma grande região do país. Outro tipo de apagão é o defensivo, quando se aciona um esquema de proteção ou se determina um corte parcial de carga para evitar uma propagação maior. É o chamado Esquema Regional de Alívio de Carga – ERAC, a proteção é calibrada para que parte do sistema seja desligada automaticamente e a sobrecarga não se estenda. Não há defeito no equipamento. No caso de uma queda de frequência ou sobretensão, a proteção atua e reduz uma parte da carga do sistema para preservar o resto. É um apagão preventivo, para evitar danos maiores.

Já o racionamento ocorre quando propositalmente se busca reduzir o consumo, a carga, para preservar a capacidade de atendimento do parque de geração quando há escassez de água. Um sistema sem água suficiente para atender à carga pode ser comparado a um carro com pouco combustível. Nesse caso, você programa a redução de carga por certo tempo, em certa percentagem, ou seja, define uma profundidade de redução e até impõe um corte caso o programa de redução não esteja sendo atendido, como chegou a ocorrer em 2001.

Tanto no GCOI quanto no ONS, o senhor lidou com situações bastante desafiadoras.

No tempo do GCOI [Grupo Coordenador para Operação Interligada], eu vivenciei os dramas de racionamento no Nordeste em 1987 e no Sul em 1986. Depois, como diretor de Operação da Eletrobras, me tornei, por força de lei, coordenador de GCOI, e enfrentamos apagões. Era complicado, mas o ambiente era de colaboração: todas as empresas intercambiavam informações e experiências de maneira cooperativa. As empresas se antecipavam, assumindo a responsabilidade de alguma eventual falha, o que facilitava em muito a análise das causas das perturbações e os ensinamentos a serem recolhidos.

Já o ONS [Operador Nacional do Sistema Elétrico], criado em 1998, não foi muito bem recebido pelas empresas, sobretudo pelas grandes empresas federais e as grandes empresas estaduais, porque o GCOI era um condomínio de empresas, e elas mantinham certa autonomia. As grandes empresas têm um orgulho justificado de si. Furnas, Cesp, Chesf, Eletrosul, Eletronorte, Cemig, Copel e CEEE, por exemplo, controlavam suas respectivas áreas, cada uma com espaço próprio de atuação, centros de controle e grandes equipes. E a coordenação da Eletrobras através do GCOI era, por assim dizer, mais consentida. O ONS veio por força de lei, de normas, de procedimentos com força regulatória, e as empresas tiveram que colocar à disposição seus centros de controle e transferir parte de suas responsabilidades de gestão operacional. Por isso houve um sentimento de perda por parte das empresas, um sentimento natural, de brio ferido, compreensível, tanto assim que eu mesmo, se ainda estivesse na Chesf, onde trabalhei por 30 anos, também me ressentiria.

Esse sentimento dificultou os primeiros passos do ONS. Houve certa resistência das empresas quando o ONS assumiu a responsabilidade pela condução do processo, sob a vigilância da Aneel. Fazendo uma analogia, poderia dizer que, por vezes, a “orquestra” composta por estas empresas não queria seguir a coordenação mais formal de um “novo maestro”, o ONS, talvez por julgá-la demasiado impositiva. Isso gerava dificuldade para conseguir informações imprescindíveis para adequada análise das ocorrências e perturbações operacionais. Quando ocorreu o blecaute de março de 1999, não foi nada fácil conseguir elementos para análise. Houve, ao mesmo tempo, vazamento de informações para a imprensa, buscando colocar a responsabilidade no ONS. Isso chegou a criar no âmbito do Ministério das Minas e Energia certa desconfiança sobre a competência do Operador, e até mesmo sobre o acerto da decisão de sua criação, não obstante o forte apoio inicial que obtivemos do ministro Rodolpho Tourinho Neto. Foi preciso muita firmeza e união da equipe para gradativamente conduzir as coisas ao devido lugar, para que a verdade viesse à tona. A grande maioria da equipe vinha da Eletrobras. Foram corajosos, porque não eram obrigados a ir para o ONS a ferro e fogo, e tinham dois anos de prazo para retornar a Eletrobras, se quisessem. A equipe confiou na diretoria do ONS, que era, não só muito competente como também extremamente solidária, e vale relembrar seus nomes: Carlos Ribeiro, da Cesp, Heitor Gontijo de Paula, da Cemig, Roberto Gomes, da Chesf, Hermes Chipp, da Eletrobras– que me ajudou muito a selecionar a equipe que aguentou o tranco.

Em janeiro de 2002, quando estávamos próximos de sair do racionamento, tivemos outro apagão muito forte, e em 2009 um apagão de dimensão supranacional, chegando a afetar o Paraguai. A maioria desses apagões envolvia grandes interligações ou Itaipu, pela importância de sua contribuição no Sistema Interligado Nacional (SIN). Os apagões puseram à prova a capacidade do Operador Nacional e serviram para nos aperfeiçoar. Todos eles deixaram ensinamentos: a necessidade de reavaliar o sistema de proteção e analisar as falhas sistemáticas de equipamentos e de comunicação e investir na substituição e modernização de equipamentos. Todo apagão era um momento de estresse, de angústia, de prejuízo para a sociedade, mas também servia para aprimorarmos a confiabilidade e a resiliência do Sistema Interligado Nacional.

O racionamento de 2001 foi o maior desafio de sua vida profissional?

Certamente! Um enorme desafio que me afetou em todas as dimensões. Tivemos que aperfeiçoar procedimentos e nossos modelos de planejamento e de acompanhamento do sistema, introduzindo, por exemplo, as chamadas Curvas de Aversão ao Risco. Havia dúvida sobre a capacidade efetiva de geração de reservatórios com valores muito baixos. O receio de assoreamento dos reservatórios, levando lama para as turbinas e danificando os geradores, a preocupação com limites de transmissão muito elevados, a segurança das redes e linhas, a estabilidade do sistema, a negociação com os órgãos que tinham necessidade de recursos hídricos, enfim, inúmeros desafios técnicos. Também era um desafio o relacionamento com a sociedade: como se comunicar? O setor elétrico tinha uma linguagem muito hermética, se entendia muito bem entre si, mas não conseguia se comunicar com a sociedade. Era como se estivéssemos num ambiente fechado, num aquário pouco transparente: a sociedade mal podia nos ver e muito menos nos entender.

Foi um aprendizado a fórceps: a necessidade de sobreviver durante o racionamento nos levou a buscar a imprensa, universidades e entidades da sociedade civil. A própria equipe do ONS buscou treinamentos para se comunicar bem com a mídia. Ao mesmo tempo preparou e ministrou aulas, cursos sobre energia e as peculiaridades do Sistema Interligado Nacional (SIN) para a imprensa.

Como exemplo deste esforço para melhorar nossa comunicação, adotamos outros termos – por exemplo, as linhas de transmissão começaram a ser chamadas de “usina virtual”, para melhor ressaltar a importância das interligações entre regiões. Era preciso explicar que a atuação coordenada de usinas e reservatórios do sistema aumentava em 20% a capacidade de geração total, superando assim a soma aritmética da capacidade de cada usina. Por que o ONS tinha o poder de definir a geração de cada empresa, de cada usina? Para garantir a otimização da cascata de usinas existentes em cada bacia, e de todo o conjunto formado pelas interligações. Passamos a informar os níveis dos reservatórios como se fossem “tábuas de marés”, de modo que todos pudessem a acompanhar a situação. Mostramos que os reservatórios eram as nossas caixas d’água, e que a região Sudeste é a caixa d’água do Brasil, porque concentra os maiores reservatórios. Buscava-se uma linguagem para o público compreender a situação em que o sistema se encontrava e de sua evolução, isto era um trabalho de formiguinha, de paciência.

Os jornalistas, como é natural, queriam notícias com maior clareza e objetividade possível, e nós ficávamos tentando explicar, por exemplo, a diferente sazonalidade das bacias hidrográficas por região, a grande importância de Itapu, e o papel das interligações para redução de custos operacionais e ampliar a capacidade de oferta do conjunto do SIN.

Esse trabalho de comunicação demonstrou a grande importância da transparência para o nosso relacioamento com a sociedade e o consequente apoio à nossa atuação. Na prática, atuamos como um órgão de governo. Era comum que um ministro ou uma autoridade nem sempre visse a necessidade de ampla divulgação de todos os temas técnicos sobre a situação do Sistema. Por razões políticas, as autoridades governamentais da época não queriam que usássemos a palavra crise, a palavra racionamento. Falava-se em contingenciamento, por exemplo, para não dizer racionamento. Vocábulos equivalentes, mas politicamente mais palatáveis para o governo. Durante a gestão de crise, Pedro Parente foi o maior responsável por estabelecer uma rotina de comunicação semanal com a imprensa – no começo foi praticamente diária, e admitindo a crise. Ele foi o criador da comissão de gestão de crise, dando voz e vez a todos os membros. Comunicação clara e precisa, e uma vez tomada a decisão, era para ser cumprida. Isso me ensinou a valorizar a comunicação e a transparência como armas fundamentais, de uma empresa com a finalidade e a importância social do ONS – o que não é fácil, dada a sensibilidade política para os assuntos referentes a racionamento ou a qualquer assunto que signifique uma notícia ruim para a sociedade.

Como engenheiro da Chesf nos anos 1960 e 1970, conheci regiões antes e depois da chegada de nossas linhas com a energia de Paulo Afonso, e nos demos conta da importância da energia elétrica para as pessoas. Mas depois eu também vi as consequências econômicas do racionamento, com repercussões sociais imensas e terríveis. Sabia, portanto, das responsabilidades do Operador Nacional. Quando éramos obrigados a propor a redução da vazão do São Francisco para preservação da água, estávamos comprometendo o abastecimento no baixo São Francisco: cidades ribeirinhas de Alagoas e de Sergipe ficavam sem água. A pesca era afetada em diversas bacias, assim como atividades econômicas, de turismo. Tudo isso era afetado pelas decisões do ONS. Um Operador Nacional que não é transparente está preparando a sua morte, a sua perda de credibilidade. E isso seria uma irresponsabilidade. Conseguimos gradativamente ampliar nossa transparência, e hoje o ONS é uma entidade madura, respeitada e com grande credibilidade perante a sociedade.

Como analisa a gestão da crise atual?

Na crise que estamos vivendo agora, foi criada a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG), e Pedro Parente e outros colegas, inclusive eu, fomos procurados para trocar experiências. Acho isso muito positivo, estão fazendo um bom trabalho e podem ser ainda mais transparentes. Não sei se teremos racionamento, acho que este ano escapamos, mas há uma probabilidade elevada de apagões, porque estamos estressando o sistema. Pelas últimas notas do ONS, a situação é muito grave e precisa de uma coordenação firme e forte, envolvendo todos os órgãos do governo para garantir a sincronia das atividades. Ao afetar o suprimento de energia elétrica, a crise impacta a agroindústria, a saúde, o saneamento, o transporte hidroviário, toda a vida socioeconômica do país. Todos os órgãos que tenham responsabilidade precisam estar envolvidos, de forma coordenada e de maneira firme.

Na crise de 2001, foi feita uma campanha de uso racional de energia, similar aos programas do Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica). Era um chamamento à economia de energia para reduzir a carga do sistema, durou um mês e meio, mas não deu muito certo: inclusive neste período o consumo em São Paulo continuou crescendo. Depois veio a regra do racionamento que impôs corte de x por cento por classe de consumidor (industrial, residencial, público, etc.), quem não conseguisse atingir sua cota de redução, ou seja, de corte, era multado e depois se houvesse reincidência podia até ter a energia cortada, por período de dias. Hoje, há uma forma mais moderna de se conseguir a redução do consumo, sem ser por imposição de cotas, é através de um processo denominado “resposta da demanda”. É um mecanismo pelo qual um segmento de mercado contribui com a redução do consumo. O consumidor pode vender ao Operador a redução de parte de sua demanda, do seu contrato de energia. Então, é mais um mercado que se cria. Através de ofertas de preços e valores, a demanda diz se quer diminuir ou aumentar, se quer ou não vender. Cabe ao administrador do sistema decidir se quer comprar um pedaço da demanda. Na Europa e nos Estados Unidos, esse mecanismo é utilizado e é muito bem-vindo que seja aplicado no Brasil também. O MME numa portaria recente inseriu a possibilidade de o consumidor industrial vender parte da sua demanda. De todo o modo, é patente que o governo precisa reduzir o consumo para evitar que isso ocorra via racionamento de maior ou menor profundidade. Em 2001, se tivéssemos começado um programa de redução da carga a partir de fevereiro ou março, como solicitou o ONS na época, o racionamento que se iniciou em junho poderia ter sido menor. É melhor agir com presteza e tomar a tempo as providências de redução de carga, pelo método que for. Assim poderemos manter o controle da situação e evitar um remédio mais amargo no futuro.

Especialistas afirmam que a nova crise hídrica está associada ao desmatamento na Amazônia e à mudança climática provocada pelo aquecimento global.

Não sou especialista no tema, mas acredito que a crise hídrica tem relação com as mudanças climáticas. O comportamento das nossas bacias tinha uma variação razoável, mas a bacia do São Francisco passou onze anos seguidos apresentando hidrologia crítica. A bacia do Rio Grande também está assim há dois, três anos, e não consegue se recuperar. Da mesma forma, toda a Bacia do Paraná, que deságua em Itaipu, está apresentando hidrologia crítica. Por isso, a usina de Itaipu está atualmente com um terço da sua capacidade de geração. Não é um fato isolado, mas um conjunto de ações humanas de causas como o descaso com as nossas matas ciliares nessas bacias, ou a devastação da Amazônia, mas também a intensificação do agronegócio, a extensão e a maneira como os solos e as bacias são tratados e o efeito estufa em nível nacional e global.

Será que ainda é válido o histórico de 90 anos que serve de base para os nossos estudos estatísticos e análises probabilísticas? Ou é preciso revisar tudo e conduzir uma reavaliação em nossos instrumentos de planejamento e operação? Nos últimos dez anos, estamos vendo que é preciso parar para pensar, rever nossos fundamentos. A natureza está avisando, e já não está mais dialogando de maneira educada – a natureza está gritando. Todo verão na Europa e nos Estados Unidos, com os incêndios, e as enchentes no outono, são exemplos disso.

Nesse início de explicitação da dimensão da crise energética provocada pela crise hidrológica, o Operador Nacional do Sistema está mostrando os frutos da bagagem acumulada. Nota-se que a CREG vem recebendo um conjunto rico de sugestões, solicitando providências à Aneel e ao Ministério, pressionando por reprogramação das manutenções, como o caso da Petrobras, pressionando por mais navios de gás, pela ampliação das interligações e aceleração das obras de interligação, pela antecipação de obras de geração, negociações prévias de condições de importação, compra de gás da Argentina, ampliação do parque térmico.

O que podemos esperar do desenrolar da gestão da crise elétrica no país?

Avalio que atravessaremos o final de 2021 sem racionamento, porém com o risco de apagões localizados, sobre tudo nos meses de outubro e novembro, pois estaremos operando no fio da navalha, no que se refere ao balanço de ponta com praticamente nenhuma reserva, conforme indica os relatórios do ONS.

O meu grande receio é na verdade o que vai acontecer em 2022, considerando que iniciaremos o novo período úmido com os reservatórios com níveis extremamente baixos, e necessitaríamos, para um período de dezembro/abril uma afluência extraordinária, muito acima de média para afastar o risco de racionamento.

Diante deste cenário é preciso que a CREG mantenha sua atenção relativamente às regras de uso dos reservatórios. É preciso mostrar as consequências de determinadas opções quanto ao uso do reservatório para geração de energia elétrica e para os outros importantes fins. Como, por exemplo, buscar manter o nível de Furnas para viabilizar a atividade de turismo ou utilizá-lo como reservatório-pulmão para a segurança do suprimento hidro-energético do Sudeste? Operar o reservatório de Sobradinho prioritariamente para atender às necessidades da Transposição e das cidades do baixo São Francisco, ou considerar também a segurança no atendimento hidro-energético da região Nordeste e o auxílio à região Sudeste?

Para administrar adequadamente este conflito é preciso ampliar, acelerar a geração eólica e solar no Nordeste, e cada vez mais definir regras de usos dos nossos reservatórios, quer em regime normal quer em situação de crise, o que permitiria a construção prévia de uma solução harmônica para esse problema que vem se tornado crônico. Em síntese, repensar clara, racional e previamente o problema dos usos dos nossos reservatórios.

O ONS tem mais de 20 anos de experiência acumulada no planejamento da operação e na operação do Sistema Interligado Nacional. Qual a sua visão de futuro do Operador?

O Operador Nacional do Sistema Elétrico, que comemorou este ano seu 23º aniversário, vem enfrentando com muita competência a crise atual. Estamos num período de transição energética gerando grandes e novos desafios. O Operador coordena uma matriz energética que se diversificou e tende a se tornar cada vez mais complexa, com o surgindo de novas formas de geração e de demanda, como por exemplo, a mobilidade elétrica ganhando importância, juntamente com sistemas de distribuição inteligentes, a geração distribuída e a possibilidade do uso de resposta à demanda possível de ser exercida por todo tipo de consumidor, além de maior autonomia na administração de suas fontes de geração e seus usos. No médio prazo teremos empresas de distribuição com novos papeis, e, inclusive, um Operador que terá reduzido seu papel como responsável pela programação centralizada da geração e manterá sua função como responsável pela segurança, resiliência e confiabilidade do Sistema.

Nessa oportunidade, vale a pena ressaltar o quanto é importante preservar o Operador como entidade técnica autônoma, a salvo de interferência ou interesses de ordem política. Fato que me faz lembrar do GCOI, que foi o pai e a mãe do ONS, e me ensinou o valor da meritocracia. A cooperação entre as empresas se tornou uma necessidade premente com o avanço das interligações entre as regiões, e pela entrada em operação da Usina de Itaipu. Foi isso que motivou a criação GCOI através da lei de Itaipu que também determinou a Eletrobrás como coordenadora e sendo Dr. José Marcondes Brito de Carvalho, que era Diretor de Operação da Eletrobrás, seu coordenador por 17 anos, por isso ele é justamente considerado o Pai da Operação do Sistema Interligado Nacional (SIN), fundamental para o Setor Elétrico Brasileiro (SEB), e um exemplo e referência de vida para mim.

Aí está a raiz do Operador, do maior Sistema Interligado do mundo, que é dotado de uma equipe técnica de extraordinário valor.

Finalmente, não gostaria de terminar esta entrevista sem prestar homenagem às equipes de operação das empresas do Sistema Interligado Nacional (SIN) e do ONS, Chesf, Furnas, Eletrosul, CEMIG, CESP, COPEL, Eletronorte, etc. São técnicos abnegados, que se dedicaram e vem se dedicando a um trabalho muito específico. É muito importante preservar esse ambiente profissional aonde a dedicação, o compromisso e a meritocracia devem ser valores permanentes na formação dos quadros do Operador e das Empresas.

Dispor e assegurar energia elétrica para a sociedade é assegurar qualidade de vida e dignidade cidadã. Energia é vida. Esse é o sentimento, o valor que deve prevalecer para todos que têm a responsabilidade de manter o Sistema Interligado Nacional (SIN), prestando serviço contínuo e de qualidade à sociedade brasileira. ///

Entrevista realizada em 27 de agosto de 2021.

Esta entrevista foi originalmente publicada na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Fotografia Mario Santos – Acervo Memória da Eletricidade