Legados Iluminados

01/09/2021

No Brasil, a partir da década de 1980, houve um notório crescimento quantitativo dos centros de memória. Este fato está diretamente ligado à conjuntura política e social daquele momento, em meio ao processo de redemocratização do país e sob a emergência de ações visando à preservação da cultura e da identidade das organizações.

O Centro da Memória da Eletricidade no Brasil – ou apenas Memória da Eletricidade – surge nesse contexto. Instituída em 1986 por iniciativa da Eletrobras e de outras empresas do setor, trata-se de uma entidade cultural sem fins econômicos cujo objetivo precípuo é resguardar e disseminar a história da energia elétrica no Brasil.

Ao completar 35 anos de atuação na preservação histórica do setor elétrico, a Memória da Eletricidade reúne atualmente um acervo substancial, composto por diferentes gêneros e suportes documentais. Mais da metade desse material é constituída de arquivos pessoais, produzidos e acumulados por engenheiros e personalidades do setor ao longo de suas trajetórias.

A documentação pessoal abarca um século de história, acompanhando o processo de constituição e desenvolvimento de grandes empresas e empreendimentos hidrelétricos, termoelétricos e nucleares, assim como os impactos políticos e sociais advindos desse intenso progresso tecnológico. São ao todo 43 conjuntos documentais de natureza pessoal, doados, quase em sua totalidade, ainda nos primeiros 15 anos de atuação do centro de memória. Entre eles, registros familiares e comemorações, lembranças da vida cotidiana e das relações sociais, premiações e documentos de atividades profissionais. Em maior ou menor grau, representam não só uma parcela da história do setor elétrico, mas também histórias de vida, indo além do contexto profissional.

A proposta de criação da instituição começou a ganhar forma por intermédio do então presidente da Eletrobras, o engenheiro Mario Penna Bhering, personalidade de grande prestígio no setor de energia elétrica. O objetivo naquele momento era a criação de uma espécie de centro de referência nacional de pesquisa e documentação do setor, que além da consultoria técnica sobre preservação de acervos desenvolveria atividades culturais e organizaria exposições permanentes e itinerantes.

Enquanto espaço de referência, a Memória da Eletricidade não foi constituída para guarda de acervos documentais – ou seja, a aquisição de acervos (pessoais ou não) não ocorreu de forma planejada, por que não era um objetivo institucional formalizado. Não existia, no ato de concepção do centro de memória, o interesse no recolhimento desses materiais, muito menos uma política ou diretrizes que norteassem o tratamento documental desses arquivos, que foram doados paulatinamente ao longo do tempo.

Esse fator é primordial para entender o processo de composição do acervo de arquivos pessoais da instituição, que se deu de formas diversas e sem uma ação de controle ou direcionamento. Segundo entrevistas realizadas com antigos profissionais e análises dos relatórios anuais, foi somente no ano de 1988 que os técnicos da Memória da Eletricidade iniciaram estudos metodológicos visando às necessidades de organização e conservação de documentos. A preocupação voltava-se tanto para os materiais que estavam sendo doados quanto para os documentos produzidos pelos técnicos da entidade. Datam do mesmo período os primeiros registros de entrada de documentos no centro de memória, como o acervo pessoal do engenheiro Léo Amaral Penna, composto por uma vasta biblioteca particular e documentos produzidos no contexto de atuação profissional do titular, e o riquíssimo conjunto iconográfico do engenheiro Cesar Rabello, retratando o processo de construção da usina de Piabanha, no município de Três Rios (atualmente Areal, RJ), no início do século XX.

Por consequência das primeiras doações, ainda em 1989 a Memória da Eletricidade estabeleceu algumas medidas importantes para preservação do material de natureza pessoal, entre elas a definição do que seriam esses acervos, identificados pela instituição como “conjuntos de documentos produzidos por pessoas físicas e que passam a integrar o patrimônio documental de natureza arquivística do centro de memória”. Pela primeira vez desde sua criação, a instituição apontava como um de seus objetivos a guarda e o tratamento técnico desses documentos, para que fosse facilitado o acesso às informações neles contidas. Outra ação crucial dos técnicos da instituição naquele período foi a realização de uma pesquisa sobre personalidades importantes para a reconstituição da história do setor de energia elétrica brasileiro, com a finalidade de viabilizar uma campanha de doação sistemática de arquivos pessoais.

A aquisição de acervos pessoais foi intensa na década de 1990, não sendo possível afirmar com certeza se por consequência da referida campanha ou se por intermédio dos projetos de história oral da instituição, que ganhavam cada vez mais vulto. O que se sabe é que durante aquela década foi doado à Memória da Eletricidade mais de 60% do atual acervo de procedência pessoal. Essa estatística é conhecida por conta de um trabalho de reconstrução da trajetória de aquisição de todo o material custodiado pela instituição em 2017. A pesquisa durou cerca de seis meses e visou, sobretudo, encontrar qualquer tipo de informação que indicasse possíveis datas de aquisição, seja na documentação administrativa do centro de memória, no próprio acervo histórico ou nos relatórios institucionais. O processo de reconstrução dessa história, com todos os seus entraves e hiatos, serviu para evidenciar a necessidade da produção de uma política para a aquisição e o tratamento de acervos pessoais na instituição.

No contexto das instituições de memória e preservação do patrimônio documental, a elaboração de diretrizes para a aquisição de acervos pessoais é fundamental para a consolidação de uma política de gestão documental. Além de fornecer subsídios para a tomada de decisão em relação às atividades desenvolvidas, a definição de alguns critérios para a aquisição de documentos em uma instituição de memória é o ponto de partida para a composição de seu acervo e a correta aplicação do trabalho interno de tratamento documental, que vai desde a aquisição até o acesso a essa documentação.

Atualmente, a Memória da Eletricidade possui diretrizes estabelecidas para aquisição de acervos pessoais. Esse material visa regularizar o processo de aquisição de acervos arquivísticos em consonância com a linha de acervo da instituição, que tem como temática o processo geral de implantação e desenvolvimento da eletricidade no país e a trajetória de personalidades que marcaram o setor de energia elétrica, assim como outros assuntos específicos e relevantes, cuja análise contribui para a compreensão do papel desempenhado pela energia elétrica na formação do Brasil contemporâneo.

O desenvolvimento desse trabalho foi um avanço significativo, que reformulou a prática e possibilitou um conhecimento mais amplo do próprio acervo de arquivos pessoais da instituição. Ana Maria Camargo e Silvana Goulart, em sua pesquisa sobre centros de memória, apontaram a dificuldade que esses espaços enfrentam para formular algum tipo de política, em especial uma política de aquisição. Se essa dificuldade é uma realidade em centros de memória que, via de regra, têm como temática a história de uma empresa específica, a problemática se amplia no caso da Memória da Eletricidade, que tem como direcionamento a história de um conjunto amplo de empresas do setor de energia elétrica, em âmbito nacional.

Outro critério relevante na composição de uma política de aquisição de arquivos pessoais e, consequentemente, no processo de constituição desse tipo de acervo, refere-se à possibilidade de descarte. Diferentemente dos arquivos institucionais, que possuem instrumentos para esse tipo de prática, nos arquivos pessoais o descarte pode se tornar um procedimento de extrema arbitrariedade. Mais ainda, se uma política de aquisição deve regular a incorporação de acervos na entidade de acordo com critérios e procedimentos pré-definidos, a possibilidade de descarte torna-se mínima, e a formulação de diretrizes para isso até mesmo desnecessária. Como bem afirma Catherine Hobbs, coordenadora da seção especial sobre arquivos pessoais da Associação Canadense de Arquivistas, os arquivos pessoais requerem um método de avaliação diferente daquele usado com documentos administrativos ou governamentais, que deveria estar relacionado ao modo como são conceituados os documentos e ao modo como estes são abordados durante o processo de aquisição.

Composto por documentos textuais das mais variadas tipologias, documentos iconográficos, bibliográficos, audiovisuais, além de diferentes objetos, os arquivos pessoais precisam ser organizados de forma a se manter o vínculo existente entre todos esses registros. Na Memória da Eletricidade privilegia-se o arranjo a partir de uma lógica funcional, isto é, um esquema de organização em que se explicita a relação hierárquica dos documentos e os seus vínculos orgânicos. Todo esse trabalho de arranjo e descrição pode ser visto no Guia de Arquivos Pessoais da Memória da Eletricidade, publicação digital produzida pelo centro de memória, fruto de um longo processo de diagnóstico, identificação, pesquisa, arranjo e descrição.

Nos arquivos pessoais da Memória da Eletricidade, as experiências registradas vão além do âmbito profissional e corporativo. O do engenheiro Lucas Lopes reflete bem essa questão. Além dos registros da vida pública produzidos enquanto ministro, em especial sua atuação no Ministério da Fazenda do governo Juscelino Kubitschek, esse arquivo pessoal reúne uma série de documentos relacionados à vida familiar do titular, como um clipping sobre sua trajetória produzido pelo pai de Lucas Lopes e documentos de sua esposa, Esther Pádua. O conjunto ainda possui uma série de fotografias do engenheiro durante os estudos para a construção da capital, em que no verso encontram-se elogios que não se sabe ao certo se estão direcionados a ele ou à paisagem que o cerca.

Já o maior arquivo pessoal da instituição, do engenheiro John Cotrim, reúne na sua grande maioria documentos administrativos e técnicos, alguns considerados altamente sigilosos à época. A documentação foi doada à instituição em três momentos, pelo próprio titular, por um familiar e a última parte por intermédio de um grande amigo do engenheiro. O maior volume documental se relaciona ao processo de planejamento e construção de um dos maiores empreendimentos hidrelétricos do país: a usina de Itaipu, incluindo uma gama significativa de documentos referentes às negociações diplomáticas entre Brasil e Paraguai.

Outro acervo que merece destaque é o arquivo pessoal do engenheiro Mauro Thibau. Sua vida foi contada no livro Mauro Thibau: a trajetória de um ministro, lançado em 1997 pela Memória da Eletricidade e principal fonte de pesquisa para a composição biográfica do titular, que exerceu inúmeras atividades no setor elétrico e como político. O arquivo do engenheiro, doado em 1992 à Memória da Eletricidade, engloba 336 conjuntos documentais do gênero textual e 350 fotografias. A maior parte da documentação faz referência ao período do titular à frente do Ministério de Minas e Energia, entre abril de 1964 e março de 1967, merecendo destaque a correspondência entre Mauro Thibau e importantes nomes do setor de energia elétrica, como Octávio Marcondes Ferraz e Benedito Dutra, e do cenário político nacional, como Castello Branco, Israel Pinheiro, Magalhães Pinto e Eugênio Gudin. Também são frequentes os documentos sobre questões relacionadas à energia elétrica, com visitas a empreendimentos e empresas do ramo, atestando o permanente interesse do engenheiro pela evolução do setor.

Um registro emblemático do arquivo pessoal do engenheiro Mauro Thibau é a fotografia em que o mesmo aparece com os índios ianomâmis. A imagem que mostra um homem branco junto aos indígenas poderia ser traduzida como um registro de estudo geográfico para aproveitamento hidrelétrico da região, mas na verdade representa o engenheiro investigando uma denúncia realizada pelos próprios índios, referente à suspeita de extração de minérios por estrangeiros.

Diante da variedade e especificidade dos acervos, é preciso ter em conta a subjetividade da produção e da acumulação de documentos. O contexto de produção do registro pessoal e o que há por trás da intenção acumuladora nem sempre estão explícitos ou são facilmente perceptíveis. Aliás, o que não está documentado pode ser igualmente importante para o entendimento do contexto de produção de um arquivo pessoal. E, dependendo da forma como esse acervo é recebido pela instituição e do tempo de identificação e tratamento do material, os vínculos do documento com o conjunto no qual se insere podem se perder por completo.

Trazendo à tona mais uma experiência da Memória da Eletricidade, no decurso do processo de organização em muitos casos não foi possível recuperar a intenção produtora ou acumuladora por trás do documento, ou até mesmo o motivo que levou à doação em si. A equipe técnica do centro de memória encontrou uma série de documentos iconográficos que ficaram por anos sem identificação. Chamados de “arquivos esquecidos”, por motivos diversos e, em alguns casos, desconhecidos, foram apartados de seus conjuntos documentais de origem e mantidos fora do olhar dos profissionais da instituição ao longo dos anos. É o caso dos álbuns de família doados por um antigo funcionário da Eletrobras, que supostamente os herdou de seus pais e avós. São dezenas de fotografias retratando diferentes pessoas da família, em diferentes épocas, lugares e momentos. Como são poucas as informações disponíveis sobre o doador, até hoje não se sabe o motivo que levou à doação, quem são as pessoas das imagens, sua possível relevância para a história do setor de energia ou para o processo de eletrificação nacional.

Também foram encontrados conjuntos iconográficos doados junto com arquivos pessoais, já identificados e organizados pela instituição, mas que foram deixados de fora do processo de organização por motivos diversos. Atualmente incorporadas ao seu acervo de origem, são parcelas documentais consideradas, na época da doação, fora da linha de acervo e pesquisa da instituição – como algumas fotografias do engenheiro John Cotrim, apartadas do arquivo por retratarem o titular em um baile de carnaval.

Hoje, a Memória da Eletricidade segue a premissa de que o registro pessoal pode, e deve, perpassar o engenheiro e o profissional de referência do setor elétrico, entendendo a importância de se preservar a história do indivíduo também nas suas relações familiares e sociais, indícios que complementam e orientam a personalidade humana e a trajetória de vida da figura pública. Os arquivos pessoais representam uma visão individual das experiências cotidianas. Mesmo nos registros formais, a relação por trás da produção e acumulação do acervo tem sempre um caráter particular, que não segue uma regra ou direcionamento. E a beleza está justamente nessa unicidade, que deve ser trabalhada de acordo com sua complexidade e multiplicidade de sentidos. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Referências Bibliográficas:

CAMARGO, Ana Maria; GOULART, Silvana. Centros de Memória. Uma proposta de definição. São Paulo: Sesc São Paulo, 2015.

MEMÓRIA DA ELETRICIDADE. Guia de Arquivos Pessoais da Memória da Eletricidade [on-line]. link: https://www.memoriadaeletricidade.com.br/publicacoes/19992/guia-de-arquivos-pessoais

HOBBS, Catherine. O caráter dos arquivos pessoais: reflexões sobre o valor dos documentos de indivíduos. In: HEYMANN, Luciana, NEDEL, Letícia (orgs.) Pensar os Arquivos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.