Histórias individuais, fenômenos sociais

01/09/2021

Arquivos pessoais podem ser entendidos como um conjunto de documentos que representam não apenas a trajetória de um indivíduo ou família, mas também um retrato da sociedade em determinado contexto. São fontes valiosas de informação para os mais diversos interesses, mas por muito tempo foram deixados em segundo plano no desenvolvimento da Arquivologia, mais focada nos documentos de caráter público.

A matriz pública da Arquivologia remete à própria história dos arquivos, preocupada inicialmente com os documentos produzidos e acumulados por órgãos administrativos, cuja guarda deveria essencialmente atender à função de prova e servir como fonte de informação. No mesmo sentido, os trabalhos desenvolvidos no âmbito dos arquivos pessoais costumam, em geral, priorizar temas em torno de sua organização e tratamento, assuntos tradicionais na Arquivologia, que, ao longo dos anos, buscou dar maior ênfase à técnica e não necessariamente à teoria. Esse distanciamento teórico demonstra a necessidade de estudos voltados para além de questões reconhecidas como de ordem prática: faz-se necessário conhecer e pensar também os próprios produtores de arquivos.

Com o objetivo de identificar os arquivos pessoais custodiados por instituições públicas e privadas da cidade do Rio de Janeiro, demos início, em 2017, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), à pesquisa “Arquivo pessoal e patrimônio documental: a representatividade como problema”. Nossa intenção inicial era conhecer os produtores, seu espaço social e lugares de fala, de forma a mapear os grupos representados pelos arquivos pessoais. Partindo do pressuposto de que os arquivos representam a história, a cultura e a identidade do país, busca-se incentivar o recolhimento de fundos pessoais para que o patrimônio documental brasileiro seja capaz de representar os diversos processos históricos e segmentos que compõem nossa sociedade.

Na primeira etapa, o Arquivo Nacional foi a instituição escolhida como campo. Órgão central e máximo referente a arquivos no país, ele precisa ser modelo e desenvolvedor de políticas nos mais diferentes estágios de tratamento documental, inclusive na aquisição. O Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN) é uma ferramenta de pesquisa digital que possibilita o acesso ao acervo e aos documentos da instituição. No entanto, durante nosso percurso de trabalho, tivemos dificuldade em localizar determinadas informações, por estarem alguns de seus campos incompletos ou totalmente vazios, sendo também necessário recorrer a pesquisa bibliográfica e visitas in loco (realizadas antes da pandemia de Covid-19).

Arquivos pessoais são geralmente definidos como conjuntos de documentos produzidos, recebidos e/ou mantidos por pessoa física ao longo de sua vida, em razão de suas atividades profissionais e função social. São entendidos como parte da categoria de arquivos privados e possuem documentos determinados por questões sociais e históricas, capazes de traduzir os modos de se viver. Funcionam, assim, como uma espécie de espelho da sociedade, representando seus segmentos, arranjos políticos e modelos de comunicação e de convivência.

Nas palavras de Catherine Hobbs, pesquisadora da Universidade de Trent, no Canadá, “documentos criados por indivíduos não deveriam ser vistos apenas como documentos rotineiros e descartáveis, mas como documentos de valor permanente que, por si só, originam-se da experiência de vida e das circunstâncias”. Nesse sentido, arquivos pessoais despertam diversos tipos de interesses — sociais, científicos, artísticos etc. — e podem servir como fontes de pesquisa para disciplinas como História, Sociologia e Antropologia, por exemplo.

Produzidos na esfera íntima, esses documentos de indivíduos são capazes de dizer algo maior, que é reflexo e produto social, sendo, por sua vez, impossível compreender tais conjuntos sem que haja a interpretação do contexto no qual eles foram produzidos. A documentação que os compõe não nasce isolada: surge de uma conjuntura social, política, filosófica, religiosa ou econômica, produto das relações sociais, econômicas e afetivas do produtor do arquivo que, em seu processo individual de registrar suas ações no contexto social em que vive, contribui para a construção da memória coletiva.

Se hoje reconhecemos a importância desses fundos para a nossa história, ao longo do desenvolvimento da Arquivologia esta não era uma realidade. Percebe-se que os arquivos pessoais não constam como protagonistas da teoria arquivística, que se desenvolveu mais inclinada à esfera pública. “Ainda que haja registros da presença de ‘documentos pessoais’ desde a Antiguidade e a Idade Média – em sua maioria, títulos de propriedade e registros de rendas oriundas de impostos públicos –, os ‘arquivos pessoais’ foram mencionados tardiamente nos manuais dedicados aos arquivos”, escreve Luciana Heymann, professora do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da UniRio.

É notável o crescimento da relevância dos arquivos pessoais, com mais eventos e trabalhos sendo organizados e publicados, mas a maioria das temáticas ainda se relaciona à organização e ao tratamento desses arquivos. Estudos de caso sobre as formas de arranjo, descrição, acondicionamento e acesso estão entre os mais desenvolvidos e divulgados, relegando a segundo plano discussões que tenham como objetivo mapear, identificar e quantificar os arquivos pessoais custodiados em instituições de pesquisa. Ou seja, pouco se sabe sobre os arquivos e seus produtores.

Para teorizar sobre os arquivos pessoais, é preciso construir um esforço de reflexão para além das vertentes consideradas mais práticas e funcionais, características atreladas à própria essência da Arquivologia. A necessidade de se conhecer os fundos pessoais custodiados por instituições arquivísticas deve ser uma preocupação por parte da agenda de pesquisa da área. Não localizamos, na bibliografia disponível, um guia de fundos ou uma obra que apresente de forma quantitativa e descritiva quais são os arquivos pessoais presentes nas instituições de custódia brasileiras.

O Arquivo Nacional (AN) foi fundado em 1838, então chamado de Arquivo Público do Império. Inicialmente, subordinava-se à Secretaria de Estado dos Negócios do Império e tinha por finalidade guardar os documentos públicos. Atualmente, a instituição está vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e “guarda, preserva, dá acesso e divulga documentos públicos, produzidos, em sua maior parte, pelo Poder Executivo Federal, mas também provenientes dos poderes Legislativo e Judiciário; e documentos privados, de pessoas físicas e jurídicas”, como informa sua página institucional.

O AN possui importância incontestável como instituição de preservação do patrimônio documental nacional. Entretanto, é válido questionar até que ponto seu acervo representa a pluralidade da sociedade brasileira tal qual a conhecemos hoje, o que pressupõe arquivos que fujam à regra do perfil dos “grandes homens públicos, brancos e heterossexuais”.

Os arquivos privados no Arquivo Nacional encontram-se sob a custódia de três áreas: a Coordenação de Documentos Escritos (CODES), responsável pelos arquivos privados textuais, a Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos (CODAC), responsável por fotografias, mapas, documentos sonoros ou audiovisuais, e a Coordenação de Preservação do Acervo (COPAC), setor que dá apoio às áreas do Arquivo Nacional e outras instituições públicas em temas relacionados à conservação. Todas as decisões referentes ao recolhimento dos arquivos privados pela instituição passam por essas três coordenações, que estão subordinadas à Coordenação Geral de Processamento e Preservação do Acervo (COPRA).

O Arquivo Nacional reúne 305 fundos e coleções privados. Através do SIAN, é possível ter mais informações a respeito desses acervos, constituídos essencialmente por documentos de pessoas, famílias e entidades coletivas. A maior categoria refere-se a arquivos de pessoas, representando mais de 75% do total. Em seguida, temos os arquivos de entidades coletivas, de família e os conjuntos híbridos.

Arquivos de entidades coletivas incluem empresas, associações e outras organizações. A categoria “família” engloba membros de uma mesma família, quando os produtores estão identificados individualmente, mas por vezes não. Foram considerados híbridos os conjuntos que contêm tanto a categoria pessoa como a entidade coletiva. Por fim, “outros” são fundos ou coleções que não apresentam um produtor definido, com títulos como “partituras musicais” e “sermões”, por exemplo.

Para esta análise, consideraremos apenas os arquivos pessoais — ou seja, os que estão nas categorias “pessoas”, “família” e “híbridos”, totalizando 251 fundos/coleções, referentes a 279 indivíduos.

No que diz respeito à entrada desses acervos na instituição, percebe-se que por muitas décadas foi baixo o recebimento, realidade que se modifica consideravelmente na década de 1990 e experimenta grande crescimento nos anos 2000. A partir de 2009, esse processo de recolhimento foi influenciado pelo edital público realizado pelo projeto “Memórias Reveladas”, que tinha como objetivo sensibilizar a sociedade brasileira para a necessidade de doação de acervos sobre o período ditatorial, possibilitando em nosso país a experiência de um grande recolhimento de arquivos pessoais de militantes e ex-presos políticos.

Esse “recolhimento em massa”, inédito na história brasileira, nos propicia refletir sobre a importância da existência de políticas de aquisição de arquivos pessoais. Um dos principais aspectos de uma política de aquisição é a definição e formalização da linha de acervo adotada pela instituição, ou seja, a identificação do perfil de arquivos pelo qual a instituição tem interesse – preferencialmente aqueles que reflitam e atendam à missão e o contexto institucional. Através da elaboração e formalização de uma política de aquisição, uma instituição explicita seu norte ideológico em relação à composição de seu acervo. Políticas de aquisição são vitrines de valores das instituições arquivísticas, refletindo seu sistema de crenças, suas prioridades e a forma como estas buscam dialogar e interagir com a sociedade.

Vale ressaltar que recentemente o Arquivo Nacional passou por uma série de alterações em sua política de aquisição para arquivos pessoais, mudanças em muito associadas à realidade da instituição, que ao longo dos últimos anos enfrenta problemas de ordem política, financeira e de gestão.

Em relação às informações sobre o gênero dos produtores dos fundos analisados, percebe-se que o acervo é composto por cerca de 90% de arquivos de homens. Apenas 32 fundos pessoais custodiados pelo Arquivo Nacional têm mulheres como produtoras. Esta disparidade denota a menor representatividade feminina em espaços de influência social e histórica como são os Arquivos. A invisibilidade feminina nos arquivos, especialmente nos públicos, foi tema de trabalho da historiadora Michele Perrot, que afirma ser tal ausência resultado da perspectiva histórica dominante, cujo crivo seletivo estabelece certas esferas da vida social como majoritariamente ocupadas e narradas por homens.

Identificamos ainda que os acervos pessoais custodiados pelo Arquivo Nacional pertenceram a indivíduos que viveram ao longo do XIX, em geral, nascidos no estado do Rio de Janeiro, com formação em cursos considerados tradicionais – com predominância de Direito, Engenharia e Medicina. Em termos de ocupação, também se constata uma espécie de “elitização” nas profissões, sendo as três mais encontradas relacionadas ao Estado: militares, políticos e funcionários públicos. Em contraposição, ainda que em número bastante reduzido, foram identificados acervos de militantes de movimentos sociais, mais especificamente dos movimentos negro, feminista e político.

O entendimento da memória como um processo social – onde cada grupo ou comunidade reconstrói suas ações no tempo a partir da utilização de veículos ou artefatos da memória presentes em bibliotecas, arquivos, museus, monumentos, edificações, entre outros – precisa estar no horizonte das pesquisas sobre os arquivos pessoais. Conhecer o produtor, seu lugar social e os grupos atualmente representados pelos arquivos pessoais custodiados por arquivos públicos e privados representa uma importante ferramenta para o desenvolvimento de políticas de aquisição que tornem os acervos mais representativos.

O Arquivo Nacional, enquanto principal instituição no que diz respeito à custódia da história da nação, ainda apresenta pouca representatividade de minorias. Isso é perceptível tanto no que diz respeito à própria constituição de seus acervos já custodiados, como nos instrumentos e políticas reguladores de novas aquisições.

A política de aquisição é a forma como a instituição escolhe cumprir sua missão. Os critérios de uma política de aquisição dizem respeito às prioridades, às preocupações e engajamentos políticos e sociais da instituição. Sua importância se manifesta em torno de questões relacionados à representatividade de segmentos sociais tais como gênero, sexualidade, etnia e classes sociais, uma vez que estes são alguns dos fatores que podem ser propositalmente considerados ou renegados dentro da construção de uma política de aquisição de acervos. Nesse sentido, seria interessante que o Arquivo Nacional agisse de maneira mais enfática para ampliar a diversidade dos arquivos custodiados pela instituição. ///

*A pesquisa “Arquivo pessoal e patrimônio documental: a representatividade como problema” foi coordenada por Patricia Ladeira Penna Macêdo e contou com o apoio da bolsista de iniciação científica Kalila de Oliveira Bassanetti (IC/UniRio) e da bolsista de extensão Rafaella de Souza Serafim (PIBEX/UniRio).

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

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