Arquivos pessoais em tempos digitais

01/09/2021

No ano de 2008, publiquei o artigo "Arquivos pessoais e documentos digitais: uma reflexão em torno de contradições", na revista Arquivo & Administração da Associação dos Arquivistas Brasileiros (AAB). A discussão foi calcada nas inovações tecnológicas como desafios para a área e indicou que apenas medidas de gestão de acervos, com destaque para as políticas institucionais de aquisição, poderiam minimizar possíveis descompassos no processo de institucionalização de acervos de pessoas. Decorridos 13 anos, achamos oportuno revisitar o tema, já que ainda se apresenta como desafio.

Mas o primeiro desafio é a própria natureza do arquivo. O desafio de atuar no campo dos arquivos de pessoas e de famílias (que em questões epistemológicas e de metodologia pouco se aproximam ao pensamento da área dos arquivos de organizações) se coloca como um dos mais instigantes na Arquivologia.

Três pontos pertencentes ao núcleo duro da área – a constituição do arquivo, a manutenção do arquivo no ambiente do produtor e a preservação dos documentos por instituições arquivísticas ou vocacionadas para a memória coletiva – são cruciais para a compreensão macro do problema, mas os dois primeiros são os principais divisores de águas.

Para esclarecer o nosso pensamento, é importante explicitar que as análises partem da premissa de que o arquivo é uma representação de seu produtor em seus papéis sociais e de sua individualidade, especialmente quando utilizamos uma definição clássica para o termo arquivo ou fundo, como a utilizada por Pearce-Moses: “o conjunto de documentos de uma organização, família, ou indivíduo que foram produzidos e acumulados como resultados de um processo orgânico que reflete as funções do produtor” (PEARCE-MOSES, s.d., tradução nossa) e a associamos ao pensamento de Yeo: “No mundo moderno, muitos documentos de arquivo não correspondem exatamente ao protótipo predominante. Os documentos audiovisuais são um exemplo óbvio. Fitas de áudio e de vídeo de encontros e conferências, gravações de áudio de conversas telefônicas e imagens em filme feitas por câmeras de segurança são reconhecidos como documentos de arquivo, mas na prática profissional esses documentos têm geralmente um papel marginal. Sua distância do protótipo de um documento de arquivo se reflete nos livros de gestão, que costumam apresentar declarações introdutórias enfatizando que os documentos de arquivo podem ser em “qualquer mídia”, mas ignoram amplamente os documentos audiovisuais em capítulos posteriores, onde os sistemas expostos quase sempre assumem que os documentos arquivísticos são textuais. (YEO, 2008b, p. 123, tradução nossa.)”.

Concluímos que os arquivos de pessoas e de famílias guardam singularidades que devem ser enfrentadas pela Arquivologia em seu escopo teórico e metodológico. E, neste texto, vamos dividir algumas inquietações.

Essa concepção do protótipo do documento de arquivo na literatura e no pensamento da área deixa os arquivos de pessoas e de famílias à margem da teoria e da metodologia. O protótipo do pensamento que impera, e que é identificável nas publicações científicas, é aquele que reconhece os arquivos das organizações, e as formulações teóricas e metodologias se inspiram nesta realidade. Yeo (2008b) descreve com precisão cirúrgica e de forma crítica o contexto em que, ao final do dia, os arquivos de instituições são “mais arquivos” do que os arquivos de pessoas: “Um outro efeito do protótipo é que os arquivos organizacionais são mais percebidos como “melhores” membros da categoria do que os arquivos criados em uma estrutura institucional. Muitas definições de documentos de arquivo explicitamente declaram que os documentos podem ser criados ou mantidos por indivíduos assim como por organizações. A terminologia profissional, entretanto, sugere ao contrário, nós comumente falamos arquivos organizacionais, enquanto para os arquivos de pessoas, utilizamos a expressão papeis de pessoas. Muitas exposições sobre o ciclo de vida e talvez sobre o modelo continuum se baseiam na suposição que documentos são criados e mantidos em um contexto institucional. Outros fatores reforçam a ênfase organizacional: o poderoso poder de voz dos arquivos governamentais nas questões profissionais; o crescimento da importância da gestão de documentos; o foco organizacional nas soluções para documentos eletrônicos; o desejo de alguns arquivistas em deixar os arquivos de pessoas para os bibliotecários e curadores de manuscritos; e a preponderância de textos (de Muller, Feith e Fruin até os nossos dias) que assumem um pano de fundo organizacional em suas discussões sobre a metodologia da profissão”. (YEO, 2008b, p. 124, tradução nossa). Importante ressaltar que no Brasil, utilizamos a expressão arquivos pessoais de forma mais corriqueira, mas também por influência da professora Ana Maria de Almeida Camargo, alguns pesquisadores, dentre os quais me incluo, estão adotando a expressão arquivos de pessoas para identificar esses conjuntos documentais.

Nossas pesquisas, ao contrário, não partem desse lugar de apagamento de questões mais pertinentes aos arquivos produzidos extra muros de organizações ou instituições. Cada grupo social ou profissional irá perseverar na construção de um protótipo que tenha um amálgama com suas ideias, responda às suas necessidades de informação e apresente robustez da representação das atividades pertinentes ao grupo.

O ambiente do produtor e a produção dos documentos

Arquivos são arquivos se conseguem representar o seu produtor de forma acurada, se os documentos que restaram de diferentes processos de manutenção, destinação e de aquisição conseguem reconstruir o contexto arquivístico – e aqui utilizamos a ideia alargada de contexto arquivístico proposta por Thomassen (2001), em seu texto a First Introduction on Archival Science, pelo qual os ambientes social, cultural e histórico interferem nos arquivos, assim como os usos dos arquivos e seus usuários fazem parte desse contexto que extrapola os processos de produção, manutenção e destinação.

Por óbvio, um arquivo produzido no ambiente organizacional apresentará marcas da história administrativa, da missão, funções, objetivos, estrutura e da rede de relacionamentos e negócios de seu produtor, assim como o arquivo produzido por um indivíduo apresentará marcas de sua história de vida, funções sociais, trajetória familiar e profissional e de sua vida cultural e social. Embora a criação desses arquivos guarde uma semelhança em sua construção teórica, eles irão divergir nos processos de elaboração dos documentos em relação à sua gênese, manutenção, gestão e destinação.

Explicamos melhor.

No mundo organizacional, a elaboração de documentos é subordinada à legislação, aos regimes de transações específicas dos objetivos da organização, aos fluxos de comunicação entre os atores das transações, às instâncias de autoridade, aos procedimentos administrativos, compliance, entre outros elementos. Há todo um controle interno e externo que molda a criação, tramitação, acesso, gestão e destinação dos documentos. Podemos afirmar que, na perspectiva da gestão de documentos, o que prevalece são as necessidades do produtor de atestar suas atividades, prestar de contas para o segmento de negócio no qual se insere e responder aos eventuais questionamentos jurídicos. Existem organizações preocupadas em preservar documentos que representem sua trajetória na história de seu segmento, mas, como disse, esse não é o pensamento que prevalece.

Também no interior de um lar, os documentos são mantidos para atender às necessidades informacionais do produtor. Contudo, os únicos documentos produzidos em conformidade com legislação ou normativas são aqueles que tratam da vinculação do indivíduo com as instituições e com o Estado. E, de regra, são criados em ambiente externo ao ambiente da casa. Comprovamos esse fato ao analisarmos os tipos documentais comuns que são encontrados nos arquivos: certidão de nascimento, de óbito, de casamento, fatura de fornecimento de luz, declaração de imposto de renda, caderneta de vacinação, contrato de trabalho, entre tantos. A dimensão da relação do indivíduo com o Estado ou com outras instituições, e cada atividade, ação e demanda, pressupõe a produção de documentos, devido à necessidade implícita de comprovar em um momento posterior ao ato, que o mesmo foi realizado.

No arquivo de pessoa, no entanto, há uma dimensão que dá conta da intimidade e das necessidades emocionais de sua humanidade que estão representadas em tipos documentais como diário íntimo, cartas de amor, convites para participação em eventos; enfim, um conjunto infindável de tipos documentais que representam muitas vezes facetas não expostas à sociedade e que são essenciais para a compreensão desse sujeito: o produtor do arquivo.

Yeo, em 2008, reafirma a sua proposta de definição para documento de arquivo publicada em 2007. Para ele, os documentos de arquivos são representações persistentes e isso os diferencia de documentos que não foram salvos em uma memória de computador. Para o autor, a persistência se dá porque o documento de arquivo pode perdurar para além do evento/ato imediato que lhe dá origem (YEO, 2008, p. 138) O pensamento do autor neste texto e no anterior demonstra que não é verdadeira a premissa de que o documento de arquivo é o fato em si ou mesmo ou que o documento representa um fato de forma plena, já que não se é capaz de traduzir todos os detalhes e todas as nuances de um ato ou evento. Assim como não são capazes os próprios participantes dos eventos de captar na íntegra tudo o que ocorre.

É consenso que o documento de arquivo precisa demonstrar que o fato ou evento que lhe dá origem ocorreu e dentro das normas em que se insere o seu contexto de produção, sem sombra de dúvidas. A regra se mantém: o documento de arquivo precisa ser autêntico. A seguir, vamos falar do segundo aspecto relevante que ancora a nossa reflexão.

O processo de manutenção no ambiente do produtor

No contexto de manutenção dos documentos de arquivo no ambiente do produtor, quando falamos do um ambiente organizacional, partimos do pressuposto de que existe um programa de gestão de documentos ou um sistema de gestão de documentos. Se existe esse tipo de iniciativa, os documentos têm sua geração, classificação, vinculação, tramitação, reprodução, acesso, arquivamento, conservação e destinação determinados por diretrizes claras, com base na teoria e boas práticas da Arquivologia.

Os instrumentos de gestão principais (Plano de Classificação e Tabela de Temporalidade) são utilizados regularmente e, ao final de todo o processo, serão preservados para fins de prova, de informação e para a memória institucional apenas os documentos absolutamente necessários para a representação da vida administrativa do produtor e de seus objetivos e funções devidamente contextualizados.

No contexto dos arquivos organizacionais, o universo de reflexão inclui organizações de natureza jurídica pública ou privada. As instituições públicas são objeto de interesse do Estado e dos governos. No campo dos arquivos, são objeto de interesse especial as instituições arquivísticas, que tradicionalmente na área devem recolher os documentos públicos considerados de valor permanente e assegurar que gerações futuras tenham acesso aos mesmos. As instituições públicas reúnem documentos que comprovam ações de interesse coletivo e dispêndios do orçamento dos governos, e representam as gestões públicas em seu caráter político e administrativo. Preservam representações de atos e eventos do passado, que poderão ser conhecidos no futuro.

As organizações de natureza jurídica privada somente são objeto de interesse das instituições arquivísticas públicas se desenvolvem atividades de interesse público ou se há alguma relação, mesmo que transversal, com o poder público ou ocupam um lugar de destaque na história de uma localidade ou mesmo no país. “O documento de arquivo e os arquivos são produzidos em microambientes que refletem a relação do produtor com a sociedade e que interagem com seus microambientes e com a sociedade de formas mais amplas. São produto da sociedade e também a representação de seus segmentos. Refletem as diferentes relações dos indivíduos em um coletivo e, igualmente, da sociedade organizada com a sociedade como um todo. Consistem na memória individual e na coletiva, e, ao serem reconhecidos como legado, entende-se que foram reconhecidos como parte da memória coletiva. Essas memórias e as relações que preservam estão inseridas em um contexto histórico, social e cultural, assim como todas as ações que determinam a sua preservação, acesso e transmissão”. (OLIVEIRA, 2017, p. 81).

Os documentos dos indivíduos e das famílias também são de interesse das instituições arquivísticas quando possuem um papel de alta relevância para algum segmento social. Assim, as instituições adquirem acervos produzidos em sistemas privados de organização sem qualquer interferência técnico-científica, mas que, tal qual no caso dos arquivos de organizações, a função primeira seja atender às necessidades de informação e de comprovação do produtor. Importante mencionar que a área possui lideranças voltadas para a permanência de arquivos das minorias e de organismos não governamentais, tanto no que se refere à organização desses arquivos e ao seu acesso quanto à produção de conhecimento sobre o tema.

No caso de arquivos de pessoas e de famílias, esta função é levada ao extremo, na medida em que o único usuário desses acervos é o próprio indivíduo ou um grupo familiar e não um staff corporativo. Questões relevantes quando se pensa uma arquitetura de informação para atendimento ao usuário não possuem espaço no mundo da intimidade. É claro que aqui não consideramos os casos de famílias muito abastadas, que possuem, por necessidade de transmissão de legado e patrimônio, um arquivo familiar. Em algumas famílias, principalmente na Europa, é possível encontrar um profissional da área de informação responsável pelo arquivo da família. E muitas vezes, em visitas a essas grandes propriedades, os visitantes podem usufruir de alguns instantes com esses profissionais, que buscam traçar a história das pessoas do núcleo familiar fazendo uso da documentação de valor histórico.

Fato é que o ingresso de documentos produzidos e mantidos em ambiente privado e íntimo em instituições arquivísticas é um grande desafio para a equipe de profissionais. A existência de uma política institucional de aquisição de acervos alinhada às linhas de acervos é um facilitador do processo.

Uma vez na instituição, a identificação da organização original, aquela dada pelo produtor, é a chave para compreender a relação entre os documentos e os papéis desse produtor considerando sua cronologia. Mas esses documentos, mais do que os de organizações, são mais vitimizados em termos de intervenções realizadas por pessoas externas à concepção individualista desse senhor ou senhora do arquivo. Muitas vezes, chegam às instituições já desprovidos de qualquer indício do que foi a estrutura original do arquivo em sua funcionalidade plena, cabendo ao arquivista, em nome dos princípios basilares, buscar reconstruir essa estrutura e seu contexto.

Como tudo se encaixa no contexto digital?

As questões apontadas anteriormente não avançam porque hoje existem documentos de pessoas e famílias que ingressaram em instituições para preservação e acesso produzidos em ambiente digital. A criação de documentos digitais não resolveu esses desafios.

Ao contrário, estamos diante de novos desafios.

Segundo Flinn (2013): “Primeiro os indivíduos precisam gerenciar os materiais digitais que eles criam ou que mantêm. E pensando em termos do que isso significa em longo prazo – trata-se de identificar os objetos e documentos mais valiosos do indivíduo para pensar a preservação de longo prazo e agir de forma a garantir que esses objetos e documentos estão armazenados de forma segura (em vários lugares) e gerenciar de forma que possam ser acessados sempre. E rapidamente, indivíduos em sua prática pessoal terão que desenvolver uma melhor noção da prática de arquivamento pessoal”. (FLINN, 2013, p. 71, tradução nossa).

O próprio processo de aquisição já se apresenta como problema. Se há uma certeza sobre os documentos arquivísticos produzidos em ambiente eletrônico é a de que a sua preservação depende de planejamento e logística com sofisticação e recursos financeiros que nem sempre as instituições possuem. Além disso, como se faz necessária essa arquitetura de comunicação e informação com vistas à preservação digital, não há como realizar isso sem envolver os produtores dos arquivos enquanto os arquivos estão sob sua custódia.

E aqui se destaca aquele que me parece o maior desafio para a área e para as instituições, e que desde 2008 já apontava: a identificação desses arquivos, seu mapeamento e a seguir um trabalho contínuo de assessoria junto ao produtor são as formas possíveis de se assegurar que, no momento da aquisição, não ocorram perdas nem documentais e nem contextuais.

São muitas questões para supervisionar: substituição de softwares e hardware, múltiplas cópias de um documento ou de um conjunto de documentos, o arquivamento sob a ótica intelectual e física (esse problema já existia anteriormente, mas o risco de eliminação no exercício de processamento é muito maior), backup, preservação e transmissão de metadados, e mais. Espera-se que a instituição tenha uma equipe igualmente capacitada e quantitativamente robusta para abarcar esse trabalho ao longo de anos.hardware, m

Tradicionalmente, esse trabalho de identificação de documentos produzidos na vida privada e íntima ocorre após a morte do produtor. Há a expectativa de um distanciamento histórico e/ou que um segmento da sociedade reconheça de forma imperiosa que aquele conjunto documental é relevante para a memória coletiva e que, portanto, deve ser custeada a sua preservação por instituições públicas para que gerações futuras tenham acesso aquele arquivo. Mas, quando falamos do contexto digital, cumprir a tradição pode ser um risco.

Ainda no plano da aquisição, torna-se mais difícil identificar o que seria o documento de arquivo autêntico e de interesse para a sociedade. O produtor deve ser orientado também a ter esse olhar para que se evite a eliminação de documentos importantes para o contexto do arquivo. Eliminar agora é muito mais fácil: “delete”. Antes, muitos optavam pela acumulação ao invés de eliminar. No contexto digital, o custo de manter arquivos é alto, afinal ocupam espaço de disco, a máquina fica mais lenta, tem que se pagar mais espaço em nuvem etc. Fatores que pesam no orçamento doméstico.

Quanto à manutenção espera-se que as instituições arquivísticas que recebem esses acervos tenham a capacidade instalada para cumprir sistematicamente com as ações de preservação digital.

O tema é instigante e não se esgota. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Leia Mais:

FLINN, Andrew. Sharing memories, competing narratives. Online archival heritage and the articulation of individual, community and national identities. In: OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso de; SILVA, Maria Celina Soares de Mello e. Diferentes olhares sobre os arquivos online: digitalização, memória e acesso. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 2013, p. 61- 82.

OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso de. Ação cultural, protagonismo social e o lugar dos arquivos. In: GOMES, Henriette Ferreira; NOVO, Hildenise F. Informação e protagonismo social. Salvador: UDUFBA, 2017, p. 77-92.

THOMASSEN, Theo. A first introduction to archival science. Archival science, v. 1, n. 4, p. 373-385, 2001. YEO, Geoffrey. Concepts of record (1): evidence, information, and persistent representations. The American Archivist, v. 70, n. 2, p. 315-343, 2007.

YEO, Geoffrey. Concepts of record (2): prototypes and boundary objects. The American Archivist, v. 71, n. 1, p. 118-143, 2008a.

YEO, Geoffrey. Records and representations. Paper given at the Conference on the Philosophy of the Archive, Edinburgh, Scotland, 10th April 2008b.