Camadas de memória

01/09/2021

É comum entre pesquisadores o temor de cair na armadilha da parcialidade dos arquivos pessoais. Um acervo de manuscritos, documentos impressos, fotografias, áudios e vídeos sempre parece ter sido selecionado para garantir ao seu dono a hegemonia da visão de um tempo. Diante de memórias privadas, historiadores, biógrafos e jornalistas sentem logo a necessidade de encontrar o contraponto em outras fontes, abandonar a montanha de papéis e validar revelações.

A experiência de escrever livros diminuiu certa ansiedade que eu tinha nas consultas a arquivos privados. Mais recentemente, tive a oportunidade de analisar lotes de documentos do Acervo Roberto Marinho para uma biografia que publiquei pela Nova Fronteira.

Possivelmente um dos mais longevos e amplos do país no gênero, o conjunto de documentos do jornalista e empresário Roberto Marinho (1904-2003) contém a memória de um grupo de amigos e mesmo adversários que estiveram no centro do poder em boa parte do século XX. O Arquivo Roberto Marinho é formado por documentos guardados pelo empresário em seus escritórios na TV e no jornal O Globo e na sua residência no Cosme Velho, no Rio. Atualmente, o acervo é mantido dentro da estrutura do jornalismo da emissora.

Roberto Marinho tinha o costume de guardar papéis desfavoráveis à construção de uma história linear e sem tropeços. Uma das peças do acervo é um envelope fechado que mandou entregar ao adversário e governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Ao receber a encomenda, o político da UDN mandou de volta a carta sem abri-la. O lacre permaneceu até a morte do empresário.

A propósito, a preocupação em confrontar papéis marca a busca pela produção de história – neste texto, proponho um debate como quem está numa conversa de amigos. Afinal, o sociólogo austríaco Michael Pollak observou há 30 anos que o francês Maurice Halbwachs, outro clássico do pensamento, destacou, ainda nos anos 1920, que a memória não é um fenômeno individual, mas social. Cada pessoa, ressaltou Halbwachs, pode participar de vários grupos e pensamentos, viver tempos diferentes das pessoas próximas. “A consciência individual é apenas o lugar de passagem dessas correntes (de pensamentos), o ponto de encontro dos tempos coletivos.”

O Arquivo Roberto Marinho pode não ser um exemplo puro da premissa de que um acervo pessoal é, antes de tudo, também coletivo. Jornalista e empresário da indústria da comunicação, tinha por dever do ofício enxergar a história de vida do outro como a matéria-prima do produto da informação e mesmo de minisséries e novelas ficcionais. Pelo seu ofício, o arquivamento de papéis com registros de posições e gestos dos adversários estava longe de constituir um paradoxo de uma relação de conflitos, onde a luta da memória é a primeira batalha da guerra.

Talvez de forma mais acentuada que na média dos indivíduos de outros setores sociais, Marinho tinha a consciência histórica de registros de vida. Esse era o combustível que movimentava seu império ao longo da turbulência cíclica da história política e econômica do país. Ele mantinha uma série de pastas com assuntos que passavam longe de sua vida privada e de seus negócios.

Um arquivo pessoal é sempre uma vida em continuidade, com seus dilemas, suas fragilidades, sua coragem, seus medos e, principalmente, suas relações humanas, destacam os clássicos. O acervo de um indivíduo, quando bem construído e preservado, talvez tenha um grau ainda maior de memória de um grupo, muito além de um diário.

Com todas as ponderações e contextos possíveis, procuro enxergar algo insólito na decisão de alguém de guardar papéis que põem em xeque suas ações e posições. Uma das partes mais pitorescas do acervo de Roberto Marinho é a coleção de bilhetes e cartas que ele recebeu, nos anos 1930, de leitores com críticas ácidas à sua decisão de romper com o líder tenentista Luiz Carlos Prestes. Ao sintonizar o noticiário de seu jornal à cruzada contra os comunistas, moradores do subúrbio e dos municípios fluminenses escreveram para O Globo, jornal carro-chefe de seus negócios, para atacá-lo. Ele guardou muitas dessas mensagens, incluindo impressos feitos pela Aliança Nacional Libertadora, uma frente de setores diversos, incluindo os comunistas, que anunciou Prestes como presidente de honra. “Não compre nem assine n’O Globo, pasquim da Light e das grandes empresas estrangeiras”. Outro anúncio improvisado de uma certa “Liança” (sem o A inicial) Nacional ressaltou: “Não compre ‘O Globo’, para que esse pasquim a serviço das classes opressoras do povo livre deixe de circular”.

Michael Pollak prega que o conflito está evidente mesmo nas memórias de organizações constituídas, tais como as famílias políticas e ideológicas. Lembro que, certa vez, procurei numa biblioteca de Curitiba informações sobre o ex-governador do Paraná Moysés Lupion. O único trabalho existente era uma biografia escrita pelo advogado Raul Vaz, que foi próximo do político. Ao folhear a obra tive uma surpresa. O autor construiu o texto para desmontar acusações de opositores. Para isso, precisou citar as denúncias. Ali estava uma vida contada por alguém da relação de confiança do biografado e, por tabela, pelos seus mais ferrenhos adversários.

A memória da ditadura militar brasileira é pródiga em baús e malas guardados por agentes da repressão com registros de crimes cometidos com a participação deles próprios. As Forças Armadas, aliás, preservaram relatórios e fichas que mostraram inclusive crimes de guerra cometidos por seus contingentes na repressão a guerrilhas urbanas e rurais. É verdade que até hoje grupos que representam famílias de mortos lutam pela abertura dos arquivos oficiais e a cúpula militar mantém o discurso de que tudo foi queimado. Mas é verdade também que não faltaram momentos, na democracia, em que a existência desses papéis deixou de ser apenas um indício. Em 1993, as antigas pastas da Aeronáutica, da Marinha e do Exército revelaram detalhes das mortes de guerrilheiros, depois de repetidos discursos de que tais documentos não existiam.

É nas pastas de cartas do arquivo de Marinho que se revela a complexa rede de relações de um dos homens mais influentes da história do Brasil. Ele costumava guardar até cópias das cartas que enviava, mas, geralmente, as mensagens guardadas são respostas a correspondências enviadas pelo dono do arquivo. A preservação de missivas críticas e incômodas de amigos pode ser explicada pelo apego à escrita de quem se tem amizade e apreço.

O acúmulo de papéis num arquivo cria camadas de tempo que, muitas vezes, dificultam ao próprio dono entender parte de seu passado. Roberto Marinho viveu até os 98 anos. Começou a atuar no jornal da família aos 21, quando o pai, Irineu, morreu. Se o ciclo de uma geração é de 25 anos, é possível dizer que o empresário viveu e testemunhou quatro delas. Ao longo das pesquisas para a biografia, testemunhei situações de surpresa de pessoas que conviveram com ele já nos anos 1950. O empresário do período do Estado Novo, por exemplo, não lhes parecia tão íntimo. O que se dirá do jovem irascível que espancou no centro do Rio um desafeto de seu pai? Naquele momento, ele era uma figura bem diferente do senhor que, mais tarde, falava rouco e com serenidade. O estranhamento ocorria mesmo em relação a posições ideológicas e políticas. Nos anos 1930, o homem que se destacou por ser um liberal econômico defendia o calote da dívida externa.

Ao analisar os documentos guardados pelo empresário, procurei fazer um mapa de suas amizades e contatos. O confronto dos registros de cartas com jornais da época e livros de histórias consolidadas podia ser o caminho para situar Marinho na estrutura da sociedade e da política do Rio no período de Getúlio Vargas ou de Juscelino Kubitschek. Nos muitos extratos de papéis do seu arquivo pessoal, as relações do empresário com nomes influentes do jornalismo e da política mostram mudanças profundas. É assim nos papéis que registram histórias de Samuel Wainer, Assis Chateaubriand, Osvaldo Aranha e Walther Moreira Salles.

Michael Pollak ressaltou que “a memória é constituída por pessoas, personagens”. Ainda observou que para, além de indivíduos e acontecimentos, é preciso arrolar os “lugares da memória”. Aqui confesso o prazer que tenho de ir a locais vividos pelos personagens das histórias que descrevo. Às vezes, uma carta sem importância, um cartão de visita ou uma foto trivial identificam espaços da cidade que tiveram importância na vida do biografado.

Um chalé na Urca dos anos 1930 citado numa carta amarelada ainda faz parte da paisagem do bairro carioca. Os azulejos portugueses do Outeiro da Glória, templo de muitas celebrações religiosas da família Marinho, também estão preservados, com suas pinturas que remetem a disputas violentas entre caçadores da Idade Média. Ali, entre um sermão e outro do padre, Roberto Marinho acertou negócios com aliados, pensou estratégias políticas e saídas de situações difíceis. Endereço de trabalho do empresário por décadas, o Largo da Carioca continua um lugar de movimento intenso no centro do Rio, agora não mais dos passageiros desembarcando dos bondes, mas saindo e entrando na estação do metrô.

Mais que a consciência da necessidade do contraponto na história, a leitura profunda de um arquivo pessoal é, sobretudo, o acesso a novas possibilidades de leitura. A prática de combinar fontes e confrontar informações privadas com dados levantados em jornais e livros não é uma via de única mão, que contextualiza apenas a memória de um indivíduo. Talvez possa situar o próprio mundo em volta, onde as nuances costumam ser encobertas pelo tempo.

Alguém poderá dizer que a simples seleção de documentos mantidos num acervo já é suficiente para se caracterizar a coleção como um olhar pessoal do tempo. Mas desde quando um álbum com imagens de inúmeros parentes, amigos ou pessoas que deixaram de ser próximas está sob o controle de nossa memória? Uma foto que volta a nos surpreender mostra, de certa forma, que não temos tanta ingerência assim em relação ao que guardamos. Mais certo seria se referir ao acervo de um indivíduo como memória de suas relações.

No caso do arquivo do fundador da Globo, personalidades, aliadas ou adversárias, mereceram pastas próprias. Roberto Marinho é de um tempo, especialmente os anos 1940 e 1950, em que as elites políticas e empresariais da então capital federal tinham por prática reunir o máximo de informações sobre quem exercia poder e influência. Se hoje os homens de negócios não dispensam escritórios de advocacia, naquela época era uma prática comum buscar o serviço de detetives. Essa era uma forma de se prevenir e se defender de ataques, bisbilhotar adversários e fazer política. Não era raro que arquivos pessoais ganhassem pastas exclusivas com dados sobre inimigos, com papéis e mesmo escutas, um instrumento de uso ainda incipiente.

O debate sobre arquivo pessoal passa sem dúvida pela biografia, gênero que depende essencialmente de acervos privados. Impossível pensar num projeto de perfilar uma figura pública sem a garantia de acesso a informações privilegiadas, íntimas e familiares. O adversário dificilmente terá detalhes da vida de seu oponente necessários à construção de uma narrativa. Só o indivíduo costuma ter a disposição de reunir ao longo de anos, décadas, recortes de jornais sobre sua trajetória. Quem atua na área de biografias acredita que o gênero literário está imbricado a um arquivo pessoal.

Quando você mergulha em um acervo é bem provável encontrar o dono numa espécie de diálogo com o tempo. A ambiguidade, característica que confere humanidade a figuras da história, costuma aparecer de forma cristalina nesse tipo de conjunto de documentos.

Numa página que seria o início de suas memórias, Roberto Marinho ensaiou um julgamento de sua vida. “Como gostaria de ser visto e julgado! Um homem sério, patriota, dedicado à causa pública, interessado pelos humildes, sofrendo com eles as suas desditas, as suas aflições? Ou um homem que se lançou na arena das competições da ‘sociedade de consumo’, (...) um ambicioso cheio de métodos, para obter fortuna na profissão, que abraçou o poder, desfrutou dos prazeres de que só uma pequena parcela da humanidade desfruta?”. Na boca de um adversário, essas palavras podiam soar sem importância. Por estarem no arquivo do próprio empresário, decidi inclui-las na abertura da biografia que escrevi.

Historiadores como François Dosse mostram em seus estudos que a biografia se constitui em instrumento de dúvida e de reflexão sobre a ética. O pensador francês avalia que, após um período em que a biografia serviu para contar a história do coletivo, os novos tempos, em que o gênero virou febre no mercado editorial, são marcados pela pluralidade de identidades e visões. Essa multiplicidade se contrapõe aos arquivos pessoais?

Na busca de compreender o passado, o caminho proposto pela memória de um indivíduo ou grupo surge quase como um antídoto para os perigos do presentismo, da desqualificação do passado. É preciso também levar em conta que confrontos de visões e arquivos não garantem automaticamente a crítica a grupos de poder e hierarquias. Ter consciência do perigo de se aniquilar a percepção de conflitos e tensões, como sugeriu Halbwachs, exige um exercício permanente.

Em outra perspectiva, trocar a ansiedade do contraponto pela leveza do encontro possível com o universo e o tempo do biografado, suas fragilidades, verdades, inverdades, ambiguidades e contradições pode facilitar o percurso de um pesquisador. É o que os arquivos de vidas sugerem. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Referências Bibliográficas:

DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Edusp: São Paulo, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

NOSSA, Leonencio. Roberto Marinho, o poder está no ar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10. Rio de Janeiro, 1992.