Expectativas, silêncios e diálogos

01/09/2021

Arquivos pessoais são fonte privilegiada para a escrita de uma história de vida. A afirmação é verdadeira, mas pode ser enganosa. Embora reúna os registros de uma trajetória individual, nem todo arquivo pessoal – talvez apenas uma minoria – fornece arsenal suficiente para traçar a vida de seu produtor.

A ideia moderna de indivíduo está na origem de práticas sociais relacionadas ao que Michel Foucault designou como “cuidado de si”. Esse cuidado, de acordo com o filósofo francês, corresponde a um conjunto de práticas por meio das quais o indivíduo se constitui como “sujeito de desejo”. Elas se tornaram socialmente relevantes na medida em que as sociedades ocidentais postularam um ordenamento político-social que tem o indivíduo como unidade de sentido, dotado de liberdade e singularidade. Mais do que isso, o individualismo, entendido como uma das formas de ordenamento do mundo, conferiu importância à trajetória individual. Segundo a historiadora Angela de Castro Gomes, a vida individual passou a ser vista como “matéria digna de ser narrada como uma história que pode sobreviver na memória de si e dos outros”.

Entre as práticas associadas ao “cultivo de si” estão distintas modalidades de escrita autorreferencial. A autobiografia é sua forma mais acabada, mas diários, memórias e correspondências são também considerados produtos culturais por meio dos quais o indivíduo constitui uma identidade para si, em menor ou maior interação com o outro. Por sua natureza, cartas constituem um tipo de texto eminentemente relacional, enquanto diários e memórias, ainda que se destinem a um “leitor” futuro, não se caracterizam por uma dimensão eminentemente dialógica. As redes sociais e os blogs parecem se localizar a meio caminho entre a comunicação que pressupõe destinatários específicos (“amigos” ou “seguidores”) e uma escrita oferecida a leitores indiscriminados.

Ao lado dessas práticas de escrita encontra-se a constituição de arquivos pessoais, caracterizados como conjuntos documentais acumulados por um indivíduo ao logo da sua vida. O historiador francês Philippe Artières sugere que, no mundo ocidental, a constituição de um arquivo pessoal é norma, o desvio sendo o indivíduo “sem-papéis”. Segundo ele, a guarda de documentos se dá em função da relação do indivíduo com o Estado, mas também como forma de estabelecer uma identidade, para si e perante os outros. Arquivos pessoais, dessa perspectiva, são testemunhos do cumprimento de obrigações, do estabelecimento de relações, pessoais e profissionais, do desempenho de atividades mais ou menos formais. Artières sugere, ainda, que o indivíduo não arquiva sua vida de qualquer maneira: “fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens”. Se o arquivo pessoal guarda documentos que comprovam uma existência, ele também resulta de dinâmicas sociais e negociações individuais que acaba por registrar a contrapelo.

Esse tipo de arquivo reúne documentos de diferentes naturezas, acumulados com propósitos que variam no tempo e de acordo com as circunstâncias. Alguns acompanharão o indivíduo ao longo de toda a sua trajetória; outros serão guardados e depois descartados, por vezes deixando rastros no acervo. São documentos de identificação, registros da trajetória escolar e profissional, de atividades de lazer, correspondência, documentos fiscais e médicos, fotografias, vídeos, o ingresso para uma peça de teatro ou um tíquete de metrô. Essa tipologia, que ao longo do século XX correspondeu exclusivamente a documentos analógicos, hoje é representada, sobretudo, por documentos em formato digital (correio eletrônico, textos em formato word ou pdf, imagens e vídeos digitais). Isso para não falar nas contas em redes sociais, certamente uma fonte preciosa para o estudo das formas de representação do indivíduo e de suas interações. Algumas pesquisas apontam para o menor controle que titulares exercem nesse ambiente, para o fato de a guarda de documentos digitais ser mais caótica, ao menos no que diz respeito a versões de arquivos e correio eletrônico. Certamente, porém, o(a) titular continuará fazendo seleções e arranjos nos seus dispositivos eletrônicos, continuará negociando com a realidade para definir o que será retido e o que será deletado.

Em resumo, os tipos de registro, os motivos para retê-los e as condições de guarda variam de um indivíduo a outro, ou mesmo ao longo da vida de uma pessoa, conferindo aos arquivos pessoais uma historicidade que é fundamental restituir. Nesse sentido, o arquivo “monumento”, aquele que se encontra depositado em instituições arquivísticas, centros de documentação ou bibliotecas, e ao qual é conferido o estatuto de fonte histórica, encobre o “fragmento”, os múltiplos gestos que o constituíram ao longo do tempo. Gestos que refletem a relação – por vezes cambiante – do indivíduo com seus documentos e pode indicar perspectivas de gestão do próprio passado. Além disso, arquivos pessoais também podem registrar gestos de terceiros que porventura tenham atuado na guarda, organização ou mesmo no descarte de documentos, muitas vezes após a morte do(a) titular.

Por isso, além da trajetória dessa pessoa, que estará mais ou menos espelhada no arquivo dependendo de seu perfil, do zelo da acumulação e das condições em que os materiais foram guardados, o arquivo encarna sua própria trajetória. As lacunas, mas também as concentrações documentais com relação a determinados eventos ou períodos, devem ser inquiridas, tanto pelos profissionais responsáveis por sua organização como pelos pesquisadores que dele se apropriam. Arquivos pessoais, como, aliás, todos os arquivos, resultam de processos históricos e são plenamente inteligíveis apenas quando bem contextualizados. Nas últimas duas décadas, vários estudos investiram nessa perspectiva com grande rendimento para o campo da história social dos arquivos e para os estudos de memória.

As vidas ausentes dos arquivos

Mas se é verdade que arquivos pessoais são fonte para investigar a história de vida do(a) titular, e objeto cuja história pode trazer muitos insights sobre as dinâmicas de constituição das fontes de pesquisa, também é verdade que o universo dos arquivos pessoais depositados em instituições de guarda permite investigar uma parcela diminuta e bastante homogênea de personagens, aspecto que vem sendo questionado na esteira dos debates sobre representatividade em diferentes campos da vida social.

Vários trabalhos têm identificado a ausência de fontes produzidas por mulheres ou que registram a presença feminina em instituições de guarda, em comparação aos arquivos produzidos por homens e às fontes que permitem o estudo sobre suas trajetórias. O tema foi objeto de um dossiê publicado pela revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, em 2018, com o título “Arquivos, mulheres e memórias”, e tratado no volume da revista Acervo, do Arquivo Nacional, dedicado ao tema “As várias faces dos feminismos: história, memória, acervos”, de 2020.

Um levantamento no arquivo histórico da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz apontou a presença de apenas oito arquivos ou coleções de mulheres em um universo de 88 arquivos pessoais. Não se trata de uma situação que atinge apenas instituições ligadas ao campo das ciências biomédicas, embora a atividade científica tenha se instituído historicamente como espaço predominantemente masculino e no qual o protagonismo esteve por muito tempo praticamente restrito aos homens. Por essa razão, aliás, a Fiocruz tem investido em projetos como o “Mulheres na Fiocruz: trajetórias”, de produção de entrevistas com mulheres de atuação destacada na vida institucional, oportunidade em que se busca conhecer e captar seus acervos pessoais, e o tema tem estimulado pesquisas sobre o lugar das mulheres nos arquivos da Fiocruz.

Instituições voltadas para a memória política e intelectual do país convivem com disparidade semelhante. Dos 279 arquivos pessoais depositados no Arquivo Nacional, 247 são de homens e apenas 32 de mulheres, ou seja, cerca de 90% têm titulares do sexo masculino. A situação não é muito diferente na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, na qual, de 160 acervos, 139 têm homens como titulares ou colecionadores e apenas 21 têm mulheres nessa posição – e, destes, em nove as mulheres apenas nomeiam o acervo, mas não são as responsáveis por sua produção ou pela coleção do conteúdo.

São dados significativos, que mostram que instituições de memória refletem as desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira ao adotarem uma postura passiva em relação às doações que recebem. As instituições funcionam como espaços privilegiados de avaliação, mas também de atribuição de “valor” aos arquivos, uma vez que são voltadas para a preservação de memórias reconhecidas como “históricas”. Como tradicionalmente as trajetórias masculinas são acolhidas nesses espaços, as mulheres não projetam a doação de seus arquivos ou coleções com a mesma frequência que os homens. Arquivos de mulheres são muitas vezes dispersos quando se encerra a trajetória profissional ou permanecem restritos ao ambiente doméstico. Reverter esse quadro é tarefa urgente. Cabe às instituições postura ativa se quiserem abrigar acervos mais representativos e plurais. É importante sublinhar que as aquisições fomentam pesquisas que dão visibilidade aos personagens cujos documentos são disponibilizados à consulta. Por isso, é fundamental que arquivos de mulheres estejam disponíveis, permitindo contar suas histórias (e as de seus arquivos).

A disparidade de gênero é, porém, apenas uma das dimensões a serem observadas. Se fizermos o levantamento de arquivos de pessoas negras depositados em instituições de guarda, certamente o silêncio será ainda mais perturbador, porém nada surpreendente. Coautor da obra Enciclopédia Negra: biografias afro-brasileiras, que reúne mais de 500 verbetes sobre pessoas negras que viveram no Brasil em várias épocas, trazidas para cá ou aqui nascidas, conhecidas e anônimas, o historiador Flávio Gomes comentou, acerca da pesquisa para a elaboração dos verbetes: “É como se fosse uma educação da leitura e do olhar: procurar mulheres, localizar mulheres negras, um silêncio dentro do silêncio” (O Estado de São Paulo, abril de 2021).

A alteração desse cenário não se dará do dia para a noite, mas a identificação do problema por meio de levantamentos e debates, o esforço para diversificar a captação de arquivos, a edição de obras que proponham o contato com trajetórias historicamente invisibilizadas e propostas como a da Rede de Arquivos de Mulheres – iniciativa do IEB e do CPDOC/FGV – são, sem dúvida, ações fundamentais. Esse esforço, é bom lembrar, ocorre não apenas no Brasil. Ao contrário, chegamos com atraso a um movimento que vem sendo empreendido em várias partes do mundo, visando à preservação e divulgação de acervos que representem a sociedade de maneira mais equânime, que valorizem formas de existência diversas e historicamente silenciadas – dos arquivos dedicados à história de povos originários aos acervos de comunidades LGBTQIA+.

Outras vidas no arquivo

Para finalizar, proponho olhar para as histórias de vida que se insinuam por meio de documentos presentes em um arquivo pessoal. O caso clássico a ilustrar essa possibilidade é o da correspondência, por meio da qual se revelam as trajetórias dos(as) missivistas e, sobretudo, os padrões de sociabilidade que cultivam e constroem por meio das cartas. Esse tipo de documentação, comum em arquivos de intelectuais até meados do século XX, antes da popularização do telefone e do e-mail, foi bastante explorada como forma de acesso à obra desses personagens, tanto com relação ao processo criativo como à circulação e recepção de suas ideias. Inúmeros projetos editoriais foram desenvolvidos com base em correspondência presente em arquivos de personalidades da vida intelectual ou política.

Aqui, porém, me interessa chamar atenção para vidas distantes dos processos de consagração, que têm nos arquivos pessoais uma de suas facetas. Para isso recorro a um conjunto bastante específico de documentos: as cartas enviadas ao ex-presidente Lula durante os 580 dias em que esteve preso na Superintendência da Polícia Federal do Paraná. No dia seguinte à prisão, que ocorreu em 7 de abril de 2018, o Partido dos Trabalhadores lançou uma campanha estimulando as pessoas a enviarem cartas para Lula. A campanha teve grande repercussão e produziu uma avalanche de cartas enviadas para Curitiba e para as sedes do partido e do Instituto Lula, ambos na capital paulista.

Para começar, é interessante observar a “revitalização” da carta como instrumento de comunicação nessa situação particular e as imbricações entre o documento analógico e as novas tecnologias – pois muitos remetentes postaram suas missivas no Facebook e no Instagram como forma de dar visibilidade ao gesto privado de escrita e estimular outras pessoas a escreverem.

Embora impulsionadas por uma campanha pública com objetivo político – demonstrar solidariedade ao líder preso em um contexto de polarização e instabilidade – as cartas apresentam características de uma escrita pessoalizada e, muitas vezes, íntima. Sem dúvida, pesa para esse caráter pessoal a relação que o ex-presidente sempre cultivou junto a suas bases, formadas majoritariamente por camadas populares e médias: uma relação informal, marcada pelo contato direto e pela afetividade.

Além de prestarem solidariedade ao destinatário, as cartas assumem muitas vezes tom testemunhal. Uma característica da correspondência é a narrativa em primeira pessoa, “na qual o indivíduo assume uma posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo onde se movimenta”, como define Teresa Malatian. De maneira geral, os textos são fartos em histórias familiares de luta e resistência, e a maioria foi escrita por mulheres, em um bom exemplo de vidas femininas acessíveis por meio do arquivo pessoal de um homem público.

Uma mínima mostra dessa correspondência, que reúne cerca de 25 mil documentos, está disponível no site Linhas de luta, cuja apresentação descreve os autores das cartas como “parte da população que não deixa arquivos, não transmite sua visão de mundo através da grande mídia, cujas narrativas tendem a não ser aquelas a partir das quais a história é escrita”.

Em muitos casos, as cartas abordam com riqueza de detalhes os efeitos transformadores das políticas públicas do governo Lula na vida do(a) remetente ou de seus próximos, seja por meio do amparo à produção rural, das políticas de acesso à universidade, de programas na área de saúde, entre outros. Uma carta escrita do Rio de Janeiro conta: “No seu governo meu pai saiu das estatísticas de desemprego (onde estava há 10 anos) para virar funcionário público federal. Hoje eu sou fisioterapeuta formada pelo IFRJ, onde entrei graças ao Enem. Meu pai, também graças ao Enem, entrou em uma faculdade federal depois dos 50 anos”.

Em outros casos, os textos assumem tom francamente autobiográfico, como no caso da carta de uma professora universitária de Curitiba que, em sete páginas manuscritas, recupera sua trajetória, da qual destaco um pequeno trecho: “No governo Sarney, era eu que revezava com a minha mãe as idas, cada vez mais custosas, ao mercadinho do bairro, isto para comprar latas de óleo, arroz, feijão, em quantidades limitadíssimas. Que tempos... Menina, cansei de descascar batatas e guardar as cascas para fritar também”.

Além das postagens feitas pelos próprios remetentes em suas redes sociais e das cartas selecionada para o site Linhas de luta, outras foram divulgadas pelo Instituto Lula em sua conta no Instagram. Uma delas foi ditada pelo remetente, morador de Salto do Pirapora (SP): “Tenho 70 anos e nunca frequentei a escola porque desde criança trabalhei na roça. Tenho uma neta que estuda na Universidade Federal de Curitiba e sinto muito orgulho. Sei que isso não seria possível sem seu governo”. Outra foi enviada por uma missivista de Pé da Serra (BA), e diz: “Obrigada por matar a fome de muitas pessoas da minha cidade, obrigada por trazer luz para a roça da minha vó e de tantas outras vós, obrigada por tornar possível o sonho da universidade, obrigada por lembrar que convivemos com a seca e precisamos de reservatórios”.

Não é possível aqui aprofundar a discussão sobre essa correspondência, cuja análise do ponto de vista sociológico ou de uma história “vista de baixo” depende da organização e acesso ao conjunto documental. Aqui interessa assinalar como a digitalização e a reprodução dos documentos em várias plataformas viabilizaram o acesso a uma parcela das “cartas da prisão” que integram o acervo do ex-presidente. Um conjunto de documentos com características singulares e um exemplo potente de vidas que se cruzam em um arquivo pessoal.

Produtos históricos de seu tempo, analógicos ou digitais, lacunares ou abundantes, fonte e objeto de pesquisa, os arquivos pessoais refletem os processos que os constituíram, alheios às expectativas de seus usuários. No cruzamento de várias disciplinas e abertos a múltiplos olhares, seguem convidando ao diálogo e à reflexão. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Referências Bibliográficas:

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