Exiguidade e Abundância de "Memórias"

01/09/2021


Lançada em junho de 2021, a edição número 24 da revista História Oral, órgão da Associação Brasileira de História Oral (ABHO), traz entre seus artigos “História negra, história oral e genealogia”, tradução de um texto do escritor Alex Haley publicado originalmente em 1973, na revista da associação norte-americana de história oral. Haley é autor do romance Roots: The Saga of an American Family (1976), no qual se baseou a série de televisão Roots (Raízes), que foi ao ar em 1977, tendo sido refilmada em 2016.

Lembro vivamente de ter chorado da primeira vez que li o texto “História negra, história oral e genealogia”, há muitos anos. Ele explica como o escritor afro-americano chegou a suas raízes, na Gâmbia. Quando garoto, Haley vivia em uma pequena cidade, Henning, Tennessee, com os pais, na casa da avó materna. Nos verões, vinham visitas da família, em geral mulheres, que conversavam à noite após o jantar, na varanda. Algumas vezes falavam de indivíduos que o garoto não conhecia, e de locais. Outras vezes, falavam sobre episódios que aconteceram com os membros da família. A pessoa mais antiga da qual falavam era chamada “o africano” – e Alex Haley diz que foi a primeira vez que ouviu as palavras “África” e “africano”.

Quando falavam do africano, contavam como ele foi trazido para a América do Norte, de navio, para um local que pronunciavam “Naplis”, e comprado por um homem chamado John Walker, que tinha uma plantation. Contavam como o africano tentou escapar várias vezes e, a cada vez, lhe era dado um castigo pior. Na quarta vez em que foi capturado, teve de escolher entre ser castrado ou perder um pé. O africano escolheu o pé e Haley cresceu ouvindo como o pé foi cortado por um machado. Surpreendentemente, seu antepassado sobreviveu.

O ato violento acabou desempenhando um papel muito importante para a família e para o próprio autor. Na época, meados do século XVIII, havia leilões de escravos, ao final dos quais eram vendidos os incapacitados, cujo preço chegava, no máximo, a 100 dólares. O proprietário do africano considerou que ele ainda podia fazer um trabalho limitado, sendo mais vantajoso mantê-lo na fazenda do que vendê-lo. Isso permitiu uma continuidade familiar – algo que dificilmente fazia parte do universo da escravidão em colônias do sul, como era o caso da Virgínia.

O africano juntou-se a outra escravizada, a cozinheira da fazenda, e com ela teve uma filha, Kizzy. Quando Kizzy tinha de 4 para 5 anos, o africano a levava pela mão e mostrava-lhe elementos naturais como rio, árvore e céu. Os nomes que falava eram de sua língua nativa, que a menina começou a repetir: viola – ko; rio – Kamby Bolongo.

O pai de Kizzy recusava-se a ser chamado de Toby, que era o nome dado por seu dono. Para os outros africanos, ele dizia que seu nome era “Kin-tay”. Ele aprendeu a falar inglês e contou para Kizzy algumas coisas sobre ele. Por exemplo: que foi capturado quando saiu de sua aldeia para buscar lenha.

A filha ficou na plantation até os 16 anos de idade, quando foi vendida para outro dono, com quem teve filhos. O primeiro deles, George, ouviu de sua mãe a história do avô e, por sua vez, a contou para os sete filhos. Tom, um dos netos dos sete filhos, foi aprendiz de ferreiro e também teve sete filhos, sendo uma delas Cinthia, a avó de Haley.

Já adulto, ao ver a Pedra de Roseta no British Museum, em Londres, Haley lembrou dos fonemas que eram transmitidos em sua história familiar e começou a pensar se poderia descobrir de onde vinham aqueles sons. O percurso que fez a partir daí é bem detalhado no texto e vale a pena acompanhá-lo por lá. Chegou ao linguista Jan Vansina, que traduziu para ele alguns sons da língua mandinka. Ko era possivelmente um instrumento muito antigo feito de cabaça e pele de cabra e “Kamby Bolongo” devia ser o rio Gâmbia, pois bolongo era rio e Kamby, Gâmbia. Haley observa que jamais ouvira falar desse rio. Em uma semana, estava na Gâmbia, acompanhado de um estudante de economia que era de lá e estava estudando nos Estados Unidos. O pai desse estudante reuniu oito homens aos quais Haley contou tudo o que lembrava das noites na casa da avó. Eles acharam um absurdo ele não saber o que era Kamby Bolongo!

Chamou a atenção daqueles homens o nome do “africano”: Kin-tay. As aldeias mais antigas recebem o nome das famílias que as fundaram há séculos, e existiam duas aldeias com o nome de Kinte-Kundah, que eles mostraram no mapa. Contaram que havia, nessas aldeias antigas, anciãos chamados griots, que são arquivos vivos da memória local. O griot é um homem de 60 a 70 anos, que tem sob sua incumbência homens com idades separadas por décadas (60, 50, 40, 30, 20) e um garoto de cerca de 10 anos. Este é exposto à história da aldeia durante 40 ou 50 anos até se tornar, ele mesmo, um griot. Cada linha de griots é responsável por histórias diferentes: pela história de um clã, pela história do grupo de aldeias e assim por diante. Os griots podem falar por dias, e Haley observa, em seu texto, que nós que vivemos em uma cultura da escrita não nos damos conta do que a memória humana é capaz.

Voltando aos Estados Unidos, ele passou a devorar tudo sobre África, que até então só “conhecia” como se fosse a terra de Tarzan. Seis semanas depois, recebeu uma carta dizendo que era para retornar à Gâmbia tão logo fosse possível. Os mesmos oito homens informaram que encontraram um griot do clã Kinte. Para chegar à aldeia do ancião, Haley organizou uma expedição que contava com três intérpretes e quatro músicos, pois fora informado de que o griot fala com música ao fundo.

A aldeia era pequena, com cerca de 70 pessoas, e formada por casas circulares de barro. Ao chegar, logo soube quem era o griot, por causa da aura em torno dele. Era uma ocasião formal: sentado numa cadeira, o ancião trazia seu corpo para frente sempre que falava e as palavras saíam de sua boca como se fossem objetos. Ele narrava detalhes sobre acontecimentos de 200, 300 anos atrás: quem se casou com quem, quem teve quais filhos, com quem os filhos casaram, quais filhos tiveram e assim por diante. Contou que o clã começou em um país chamado Velho Mali. Tradicionalmente, os homens eram ferreiros e as mulheres faziam utensílios de barro e eram tecelãs. Um ramo da família migrou para um país chamado Mauritânia e, desse país, um filho do clã, chamado Kunta Kinte, chegou ao país chamado Gâmbia. Em uma das aldeias, casou-se com duas moças mandinka, e teve três filhos. Os dois mais velhos fundaram uma aldeia que existe até hoje. O mais novo ficou na aldeia e, aos 30 anos, casou-se com uma moça mandinka, que teve quatro filhos: Kunta, Lamin, Suwadu e Madi.

Até esse momento, o griot tinha falado durante aproximadamente cinco horas, tendo sido interrompido umas 50 vezes, para que fosse feita a tradução pelos intérpretes. E o próximo trecho traduzido veio como os demais: “mais ou menos no tempo em que os soldados do rei chegaram” (Haley teve de pesquisar muito para descobrir a que tempo nosso isso correspondia), “o mais velho desses filhos, Kunta, saiu da aldeia para pegar lenha e nunca mais foi visto”.

Alex Haley conta que, nesse momento, ficou lívido, endureceu, teve todas as sensações corporais possíveis e mostrou suas anotações para o intérprete, que falou com o griot e toda a aldeia ficou agitada. As 70 pessoas formaram um anel em torno dele. Em certo momento, uma mulher saiu do círculo, batendo forte com os pés e olhando seriamente para Haley, e estendeu a ele seu filho pequeno, um bebê. Ele pegou o filho no colo. E em seguida todas as mulheres que tinham filhos pequenos fizeram o mesmo. Cerca de 12 crianças passaram por seu colo. Dois anos depois, conversando com um acadêmico de Harvard, soube que se tratava de uma das cerimônias mais antigas de alguns povos africanos, que quer dizer algo como: “nós somos você e você é nós”. Foi a essa altura do texto que me emocionei a ponto de chorar. Levaram-no para a mesquita e rezaram: graças a Alá, um que se perdeu há muito de nós voltou.

Depois desse evento, que, podemos imaginar, foi extremamente especial, Alex Haley pesquisou muito e descobriu que o africano sobre o qual ouvia histórias nos verões da casa de sua avó chegou em Annapolis, capital de Maryland, em 29 de setembro de 1767. Os percalços da pesquisa e as evidências encontradas estão minuciosamente explicados no texto. Hoje existe uma fundação chamada Kunta Kinte Alex Haley Foundation, dedicada à exploração e à preservação da história e da cultura afro-americanas, que incentiva a busca de raízes de pessoas de todos os grupos étnicos. Ela continua atuante mesmo após a morte do escritor por ataque cardíaco, aos 71 anos, em 1992.

Gostaria de apontar para potencialidades e limites da preservação do passado tomando como exemplos, de um lado, a experiência de Alex Haley em busca de suas origens familiares e, de outro, o projeto da Fundação Shoah, criada em 1994 com o objetivo de abrigar um grandioso acervo de entrevistas com sobreviventes e testemunhas do holocausto e, a partir de 2006, de outros genocídios, como o armênio (1915-1923) e os de Ruanda (1994), Camboja (1975-1979) e Guatemala (1981-1983), além do Massacre de Nanjing (1937). De acordo com o site do “Instituto para História Visual e Educação” (The Institute for Visual History and Education), como se denomina a fundação, foram gravadas 115 mil horas de entrevistas em vídeo, e todo o conteúdo foi indexado minuto a minuto. Se dispuséssemos de oito horas diárias ininterruptas e de sete dias por semana para assistir às entrevistas, precisaríamos de praticamente 40 anos para consultar todo o acervo.

A dimensão é tão grandiosa que o próprio site apresenta números diferentes dependendo da página que consultamos. Ora encontramos a informação de que as entrevistas foram gravadas em 65 países e 43 línguas, ora que foram realizadas em 62 países e 41 línguas. O processo de catalogação e indexação de todas as entrevistas incluiu o desenvolvimento de um vocabulário controlado (thesaurus) com 64 mil termos, entre os quais há nomes, localidades (em suas diferentes línguas) e aqueles que designam experiências (por exemplo, “sentido do tempo no campo de concentração”). Paralelamente, foram produzidos vídeos e material educacional. A ideia, sem dúvida, é de memória como dever, dever de não esquecer, com uma clara dimensão moral frente aos sobreviventes. Além disso, fica evidente o desejo de abarcar a totalidade das experiências.

O que podemos extrair do contraste entre esses dois exemplos? Ou seja, daquilo que poderíamos chamar de exiguidade e abundância de “memória”? Da persistência da família de Haley e do próprio Alex Haley chegou-se a um raro caso de reconstituição de uma história inserida na diáspora africana. Esse exemplo se vale da tradição oral, do fato de muitas sociedades africanas e dos antepassados de Haley cultivarem tais formas de passar informações de geração em geração. No caso da Fundação Shoah, em especial das entrevistas com sobreviventes e testemunhas do holocausto (coleção que conta com um total de 54.140 entrevistas em vídeo), trata-se de um número colossal de entrevistas, colhidas em todas as partes do mundo, movidas pelo dever de não esquecer, de deixá-las guardadas para as gerações futuras e as famílias dos sobreviventes. Mesmo com a catalogação e a indexação, paradoxalmente, as informações constantes nesse acervo também correm o risco de se perder, devido à sua quantidade incomensurável, razão pela qual a Fundação Shoah se dedica a outras formas de acesso, como programas educacionais.

Os dois casos nos mostram que a “memória” não existe em “estado natural”, à disposição de quem quiser – do pesquisador ou da pesquisadora, ou ainda da sociedade em geral. Para que tenhamos acesso ao que aconteceu, as memórias precisam ser preservadas, o que significa dizer que elas necessitam das ações humanas: de um lado, de Haley e seus antepassados e, de outro, de Steven Spielberg, mentor da Fundação Shoah, e dos milhares de profissionais que atuam no projeto. Muitas vezes essas ações humanas constituem instituições de memória – como a Fundação Kunta Kinte Alex Haley e a Fundação Shoah. Tais como museus, elas dão “autenticidade” àquilo que preservam. O que é lembrado depende do que conseguiu ser preservado (resultado das ações ao longo do tempo) e depende das ações do presente, como lembra o historiador Jacques Le Goff quando discute a categoria do documento-monumento.

As potencialidades das fontes orais são inúmeras. Mas os limites também devem estar evidentes para quem trabalha em instituições de memória. É preciso ter claro que aquilo que restou é resultado de ações humanas que quiseram preservar e esquecer. E aí está a verdadeira riqueza do trabalho com o passado: saber interpretar as fontes, aquilo que nos restou, é não apenas se perguntar sobre o que as fontes dizem sobre o passado, mas também o que elas dizem sobre a história da memória daquilo que aconteceu; sobre como aquilo que aconteceu é representado pelas diferentes sociedades ao longo da história. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº3/ 2021.

Referências Bibliográficas:

HALEY, Alex. “História negra, história oral e genealogia.” Tradução de Alice Faria. História Oral, v. 24, n. 1, p. 195-217, jan./jun. 2021. Disponível em https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/1201/106106106264. Acesso em: 8 ago. 2021.

Kunta Kinte-Alex Haley Foundation. Inserir link: www.kintehaley.org LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. Enciclopédia Einaudi, vol. 1: Memória – História. s/l (Portugal), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

USC Shoah Foundation. Inserir link: https://sfi.usc.edu/

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África I: Metodologia e Pré-História da África. Brasília: Unesco, 2010. Inserir link: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf