Tem Lalá pra todo gosto

01/06/2021

Programa semanal da Web Rádio MIS RJ, “Frequência MIS” estreou no dia 30 de abril de 2021, com o intuito de mexer no baú da história e reviver um pouco do passado cultural preservado pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, encontrando elos com o presente. A cada programa, um nome da história cultural da cidade e do país tem suas memórias compartilhadas com os ouvintes. O primeiro deles foi Lamartine Babo. Mas por que Lamartine?

Para amenizar o sofrimento pelas vidas perdidas e as restrições impostas pela pandemia, no esforço de possibilitar e ampliar o acesso à cultura através da criação da Rádio MIS, o nome do artista surgiu como uma luz, com aura saudosista: saudades de brincar o Carnaval, de ouvir suas músicas nos blocos de sambas e marchinhas, de assistir a uma partida de futebol. Carnaval, futebol, alegria, marchinhas, temas e termos tão caros a Lamartine que não poderia haver outro nome senão o dele, Lalá! E assim foi escolhido aquele cuja figura está associada ao melhor do Rio e do Brasil, do que nos identifica e nos dá a noção de pertencimento a este e não a outro país.

O MIS possui em seu acervo 1.619 itens sobre Lamartine Babo, organizados museologicamente e disponíveis para consulta no banco de dados. Cada objeto corresponde a um item documental. No caso de objeto sonoro, por exemplo, pode ser um disco, um CD, uma fita K7 ou uma fita de rolo, contendo duas, quatro, cinco, dez, doze ou mais faixas com músicas de Lamartine Babo ou cantadas por ele. Sim, há músicas cantadas pelo próprio Lamartine. No setor iconográfico, pode haver um álbum de fotografias e, no textual, um álbum de reportagens ou um álbum contendo roteiros de algum programa de rádio – cada um desses conjuntos documentais, para efeito de contagem, é registrado como apenas um item. Um baita acervo, portanto! Dificilmente outra instituição possui um acervo sobre Lalá maior do que o encontrado no MIS-RJ.

Para além de números, a riqueza também está na diversidade dos tipos documentais e suportes, e no que eles podem revelar sobre o nosso personagem: documentos textuais, partituras, sonoros, iconográficos, audiovisuais e de natureza bibliográfica.

Lá estão os dois livros de humor escritos por Lamartine: Pindaíba (1932) e Lamartiníadas (1939), este com dedicatória ao radialista Almirante, que guardou grande acervo de Lalá. Almirante, como era conhecido o radialista Henrique Foréis Domingues, gravou nos anos 30 duas músicas de Lamartine: “Marchinha do grande galo” (com Paulo Barbosa) e “Hino do carnaval brasileiro”. Depois foi seu colega na Rádio Nacional e mais tarde seu vizinho de bairro, na Tijuca: Lamartine morava na rua Jorge Lóssio e Almirante na rua Almirante Cochrane. Almirante foi sobretudo amigo de Lamartine e guardião da obra do compositor.

Também entre os livros, destaca-se a primeira edição de Tra-la-lá – Vida e obra de Lamartine Babo, biografia minuciosa escrita por Suetônio Soares Valença, lançada em 1981 pela Funarte, encontrada na coleção Zezé Gonzaga do MIS. Zezé foi uma das cantoras da chamada época de ouro do rádio e participou do espetáculo teatral "As Cantoras do Rádio – 10 anos da sala F.U.N.A.R.T.", em 1988. A ela se juntaram outras divas – Nora Ney, Ellen de Lima, Carmélia Alves, Rosita Gonçales e Violeta Cavalcanti – para cantarem a música “Cantoras do rádio”, de Lamartine, João de Barro (o Braguinha) e Alberto Ribeiro. Na coleção Zezé Gonzaga encontra-se a letra da música para o espetáculo, e na coleção Braguinha o folder do evento.

Há correspondências e documentos pessoais, como o registro de empregado na Rádio Clube do Brasil, com data de admissão em 1952, ocupação “locutor-animador” e sua assinatura. O “Monólogo Jesus e Magdalena” foi escrito pelo Lamartine religioso, afilhado do cardeal Sebastião Leme e autor do Hino a São José, do Hino a Nossa Senhora Mãe dos Homens e de uma Ave-Maria composta para seu próprio casamento, com Maria José Barroso, aos 47 anos. Até então, dizem, era um celibatário convicto.

Uma carta (de Francisco Assis Queiroz para Elídio) trata de poesia inédita do artista, “Ipso Facto”. O remetente narra como a adquiriu, transcreve a letra e pede para que seja encaminhada ao jornalista Sérgio Cabral, acompanhada da assinatura de testemunhas de sua autoria.

É comum ver registros como “Folheto da gravadora RCA Victor contendo a relação dos nomes de artistas (nacionais e internacionais), os nomes de suas músicas e respectivos gêneros”. Um deles apresenta a marchinha “Rio cartão postal”, de Lamartine e Hervé Cordovil, com letra e cifras, revelando seu encantamento com as belezas naturais da cidade.

Há um folder promocional da restauração realizada, em 1974, por Adhemar Gonzaga em sua comédia musical Alô, Alô, Carnaval, produzida pela Cinédia em 1936. O MIS também possui a trilha sonora do filme em fita rolo, além de trechos de diálogos. Alô, Alô, Carnaval conta com a participação de Lamartine, Oscarito, Jorge Murad, Almirante, as irmãs Linda e Dircinha Batista e Aurora e Carmen Miranda. A trilha sonora é igualmente farta de grandes compositores, como Lalá, Braguinha, Antônio Nássara, Hervé Cordovil, Heitor dos Prazeres e Noel Rosa, e maravilhosos intérpretes: Mário Reis, Francisco Alves, Bando da Lua, Aurora e Carmen Miranda. Carmen Miranda e Mário Reis foram os grandes intérpretes de Lamartine, os mais próximos e os que mais gravavam suas músicas, ao lado do amigo Almirante.

Homenagens são várias, no acervo: roteiros de programas, folders de espetáculos, reportagens de aniversário de nascimento ou morte, textos escritos por Arthur da Távola, Sérgio Cabral e Ruy Castro. Séries de reportagens contam sua biografia, a atuação na União Brasileira dos Compositores (UBC), da qual foi diretor, presidente e tesoureiro, a participação nos festejos carnavalescos, lançamentos de músicas, até especiais por ocasião de sua morte. Lamartine está sepultado no cemitério do Caju e o velório reuniu “grande número de amigos e admiradores, colegas de rádio e televisão e o representante do Governador Carlos Lacerda” (Diário da Noite, São Paulo, 17 de junho de 1963). A análise das reportagens sobre sua morte permite destacar palavras comumente associadas a Lalá: artista autêntico, grande amigo, incentivador, cuja morte representa o fim de uma fase de um tipo de música que o povo gostava.

Um tema que chama a atenção pela recorrência com que aparece é a marcha-rancho “Os rouxinóis”. A reportagem do Diário da Noite sobre sua morte em determinado momento menciona o único desgosto de Lalá: ver suas marchas carnavalescas, embora amadas pelo povo, serem relegadas a segundo plano pelos críticos. Por conta disso, teria ficado quase vinte anos afastado do Carnaval, até retornar, em 1958, com a marcha-rancho “Os Rouxinóis”, considerada uma obra-prima mas desclassificada do concurso de marchinhas por ser “demasiada bonita”.

Datado de 13 de agosto de 1980, um convite da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro para o musicólogo Ricardo Cravo Albin registra o lançamento do enredo da Escola para o ano seguinte: “Lamartiníadas, Folia e Paixão”. No entanto, mudanças na direção da Escola puseram fim ao tema, ao enredo e à homenagem. Em 1981, a campeã do Carnaval foi a Imperatriz Leopoldinense, com o enredo “O teu cabelo não nega (Só dá Lalá)”, homenageando Lamartine Babo com um samba inesquecível.

“Lamartine Babo vai a leilão hoje na Barra”, anuncia reportagem do jornal O Globo em 21 de junho de 1994. Trata da venda de um acervo com quase 850 peças do compositor. O texto informa que as peças estavam em poder de uma prima de Lamartine, Maria Lúcia Borges Fortes, que herdara por testamento o acervo da viúva do compositor, Dona Zezé. Constavam partituras, correspondências, discos 78 rpm, manuscritos de programas radiofônicos, revistas, flâmulas e troféus.

Vale fazer um adendo: o MIS não possui uma coleção chamada “Lamartine Babo”. As coleções são nomeadas de acordo com seus titulares, ou seja, os responsáveis pela montagem da coleção, que pode ter sido comprada pelo Estado ou doada diretamente ao Museu. Os documentos referentes a Lamartine Babo, portanto, são encontrados nas coleções de seus amigos Almirante e Braguinha, colegas de trabalho, artistas – como Dorival Caymmi, Jacob do Bandolim, Elizeth Cardoso, Herivelto Martins e Nara Leão –, radialista, jornalista, crítico e/ou produtor musical, além das coleções da Rádio Nacional, onde atuou, da Discoteca Pública do Distrito Federal (DPDF), do próprio MIS e dos “Depoimentos para a Posteridade”, audiovisuais produzidos pelo MIS, organizados separadamente.

O depoimento do próprio Lamartine não foi possível ao MIS recolher, pois o projeto teve início em 1966, três anos após a sua morte. Nos depoimentos de amigos, porém, foi pedido que falassem sobre ele. Há também um depoimento intitulado “Nelson Souto, Lamartine Babo, Francisco Mignone e Sílvio Caldas (sobre Eduardo Souto)”. Trata-se de uma inserção de gravação de Lamartine sobre o pianista, compositor e carnavalesco Eduardo Souto, datada de 1957. Foi Eduardo Souto quem apresentou Lalá ao universo dos ranchos e dos blocos carnavalescos.

Como se pode constatar, Lamartine Babo pode ser encontrado em quase todas as coleções do MIS! É mais fácil falar em quais coleções não há itens de Lamartine ou referentes a ele: das 28 coleções disponíveis no banco de dados, Lalá só não consta em sete.

A maior parte do acervo é formada por fotografias, p&b, algumas em sépia e alguns desenhos e caricaturas. Há fotos de Lamartine Babo sozinho e acompanhado de uma constelação de artistas – entre eles Pixinguinha, Donga, Ataulfo Alves, Humberto Teixeira e Emilinha Borba. O palhaço Arrelia e o flautista Altamiro Carrilho aparecem juntos no lançamento do LP “Ride Palhaço”, voltado para o público infanto-juvenil, cuja marcha-tema ele escreveu. Há registro de Yara Salles (radioatriz) e Héber Bôscoli (locutor e animador), que apresentavam com Lalá o programa radiofônico matutino “Trem da Alegria”. Héber representava o maquinista, Yara o foguista e Lalá, o guarda-freio. O programa foi um dos mais duradouros da história do rádio nacional, passando pelas rádios Cruzeiro do Sul, Nacional, Globo e Mayrink Veiga entre os anos 1940 e 1950. Seus integrantes ficaram conhecidos como Trio de Osso, em alusão ao Trio de Ouro (Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas) e por conta da magreza de todos. Assim como Dalva e Herivelto, Yara e Bôscoli também se casaram. Há fotos de artistas e personalidades convidados a participar dos quadros do programa, como a cantora Elizeth Cardoso e o jogador de futebol Leônidas da Silva, em momentos distintos.

Em outras coleções Lamartine aparece com políticos, como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Uma foto mostra o então presidente Vargas e sua esposa, Darcy, no Palácio do Catete, entre vários artistas. É sabida a associação dos artistas da Era do Rádio com o governo Vargas. No acervo sonoro, há programas jornalísticos a respeito e músicas em homenagem ao presidente. Em 1931, Lamartine e Almirante compuseram “Gê-Gê (Seu Getúlio)”, interpretada pelo Bando de Tangarás, conjunto musical formado por Almirante, Noel Rosa, João de Barro (o Braguinha), Álvaro Miranda (o Alvinho) e Henrique Brito. Quatro anos depois, em “Parei Contigo”, que gravou com Mário Reis, Lamartine demonstra descontentamento e anuncia seu rompimento com Getúlio Vargas, por conta da censura imposta às marchinhas, antes mesmo do golpe do Estado Novo.

Vários artistas sofreram com a censura. Ary Barroso e Nássara, por exemplo, haviam composto “Garota Colossal” e foram cerceados em 1935, por inserir na música dois compassos do Hino Nacional em tom de anedota.

Fantasiado de Diabo, o católico Lalá desfila (com pessoas não identificadas) em um carro conversível por ocasião do título estadual do América, seu clube do coração, em 1960. O compositor nasceu no mesmo ano em que foi fundado o America Football Club, 1904 (ele em 10 de janeiro, o clube em 18 de setembro). No mesmo bairro em que morava e onde o clube tinha sede, a Tijuca, Zona Norte carioca, está a Praça Lamartine Babo, que abriga monumento em homenagem ao artista – feito a partir de sua máscara mortuária.

No acervo há 475 partituras musicais, majoritariamente nas coleções Almirante e Rádio Nacional, além de duas na Coleção Jacob do Bandolim. Destaque para as partituras com Noel Rosa (as marchas “A.B.Surdo” e “A.E.I.O.U.”) e Ary Barroso (o samba-canção “No rancho fundo”), para o “Hino do carnaval brasileiro”, as valsas “Eu sonhei que estavas tão linda” (com Francisco Mattoso) e “Alma dos violinos” (com Alcyr Pires Vermelho, orquestrada por Guerra-Peixe), o samba-canção “Serra da Boa Esperança” (imortalizada por Altemar Dutra), a famosa e polêmica marcha “O teu cabelo não nega” (com os irmãos Valença) e a marcha de São João “Chegou a hora da fogueira”, interpretada por Carmen Miranda e Mário Reis em 1933.

Tanto as partituras quanto os itens sonoros revelam a versatilidade de Lamartine para compor músicas nos mais variados gêneros musicais: blues, cançoneta, cateretê, embolada, fox, fox-canção, foxtrote, hinos, marcha, marchinha carnavalesca, marcha-rancho, maxixe, modinha, opereta, samba, samba-canção, tango, toada, valsa.

Faceta pouco conhecida: Lalá foi versionista de canções originalmente escritas em inglês, espanhol e francês. Destaque para as versões de Night and Day, foxtrote de Cole Porter, e “Abafando a banca”, versão de foxtrote de Irvin Berlin.

Campeão de itens documentais de Lamartine Babo, com 918 registros no acervo, o setor sonoro revela a qualidade e a quantidade de parceiros e intérpretes, cantores e/ou instrumentistas, bem como a sua atemporalidade. Entre os parceiros de Lamartine, além dos já citados, há nomes como Antônio Nássara, Bonfíglio de Oliveira, Assis Valente, Ataulfo Alves, Carolina Cardoso de Meneses, Gadé, Henrique Brito, Henrique Vogeler, Ismael Silva, Jayme Tomás Florence (o Meira), Joubert de Carvalho, Luiz Peixoto, Luperce Miranda, Lyrio Panicali, Pixinguinha, Roberto Martins e muitos outros. Seus intérpretes atravessam gerações de artistas, de Jacob do Bandolim a Jair Rodrigues, de Altemar Dutra a João Gilberto, de Francisco Alves a Radamés Gnattali, de Rosas de Ouro a Quarteto em Cy, de Orlando Silva a Maysa, de Silvio Caldas a Eduardo Dusek.

Sempre bom lembrar, por fim, que Lamartine é o autor dos hinos de 11 clubes cariocas de futebol: América, Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, Bangu, São Cristóvão, Madureira, Olaria, Bonsucesso e Canto do Rio.

Lamartine Babo é um universo! Para quem despertou o interesse em pesquisar sua obra no acervo do MIS, fica o convite para ouvir os quatro episódios do “Frequência MIS” no perfil da instituição no Spotify "MIS RJ", no link https://open.spotify.com/playlist/3YdqyoHmmti37WDM7I6k4y, onde todas essas informações estão contextualizadas em relação à vida do artista, de forma prazerosa, didática e inovadora. Há ainda a opção de consultar o programa o Centro de Pesquisa e Documentação Ricardo Cravo Albin, na sede do MIS, na Lapa. 

O MIS RJ está pronto para receber quem quiser mergulhar nesse universo de irreverência, humor e beleza. Sacudir a cidade com o que de melhor se produziu aqui, onde o Rio tem a cara do Rio, onde o Rio é mais Brasil. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº2/ 2021.

Referências Bibliográficas:

MIS-RJ. Acervo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Link: <https://dicionariompb.com.br/ lamartine-babo>.

VALENÇA, Suetônio Soares. Tra-la-lá: vida e obra de Lamartine Babo. Rio de Janeiro: Funarte, 2014. Link: <http://www.funarte.gov.br/wp-content/uploads/2016/08/Tra-la-l%C3%A1-vida-e-obra-deLamartine-Babo-Suet%C3%B4nio-Soares-Valen%C3%A7a.pdf>.

WEB RÁDIO MIS RJ. Link: https://www.webradio.mis.rj.gov.br/