No ateliê do tempo

01/06/2021

Em que momento os retratos de família deslizam de álbuns, gavetas, paredes da sala e molduras, abandonando recordações únicas e até secretas, para se desnudar nos arquivos e se tornar objeto da História?

As lembranças do Carnaval de 1942, a celebração dos 15 anos, crianças em trajes de marinheiro, retratos tradicionais de família, feitos em estúdios. Outras cópias trazem a marca da produção doméstica, retratos desfocados e fugazes, em ampliações características dos anos 1940. As duzentas fotografias da família de Elizabeth Garçon Passi cobrem o largo intervalo de 1918 a 1980 e descrevem uma cartografia da imigração judaica para o Brasil, da Grécia, do Marrocos, da Polônia, Portugal e Bahia. Com carimbos de estúdios como o Foto Oliveira, no Pará, ou o Photo Brazil, na rua da Carioca, Rio de Janeiro, foram reunidas ou mesmo selecionadas por um gesto que não é o do historiador, mas o da esfera privada, dos eventos que envolvem os vários ramos da família, com registros clássicos das fases da vida e comemorações, ainda que datas e lugares margeiem a ruptura, a tragédia: Wlodawa (Polônia) e Salônica (Grécia), 1939.

Doado ao Arquivo Nacional em 2006, o conjunto inicia a partir daí outro percurso, agora inserido em um sistema de descrição, indexado, integrando o universo de fundos de natureza privada que dialogam com os registros da administração pública e tornam-se indícios da vida social, dos rituais, das crenças, da cultura material.

Como gênero de maior êxito na história da fotografia, o retrato de indivíduos e grupos —, da produção à circulação, é um dos fios condutores para uma história da técnica, em seus deslocamentos e superposições. Ele estabelece uma ruptura na tradição retratista e instaura mesmo uma outra identidade. Pela primeira vez as próximas gerações poderiam saber como eram seus antepassados e como eles mesmos se pareciam na infância. Este era um privilégio para poucos até então, diz Pierre Bourdieu, dado que, “como uma técnica privada, a fotografia produz imagens privadas da vida privada. Com a imagem fotográfica, a tecnologia industrial deu aos mais despossuídos a oportunidade de possuir retratos que não são imagens de grandes homens desse mundo”. No Brasil, a desigualdade também se revelaria no campo da memória, desde o custo dos retratos à sua conservação.

Esse obstáculo não impediu, no entanto, que um incontável número de brasileiros comparecesse aos estúdios. Entre membros da família imperial e da aristocracia, encontra-se uma dada família oitocentista, reunida na coleção Fotografias avulsas e em arquivos privados de representantes da “boa sociedade”. No Arquivo Nacional esses primeiros exemplares de fotografias, acomodados em estojos de metal, forrados com veludo, joias únicas, pertencem, em sua maioria, ao arquivo da família Bicalho e, isoladamente, ao arquivo da família Werneck. Os exemplares do fundo família Bicalho, chegados à instituição nos últimos anos, constituem uma série de retratos, daguerreótipos e ambrótipos, alguns de autoria do fotógrafo Diogo Luís Cipriano, que assumira o ateliê da rua dos Ourives 34 (atual Rua do Ouvidor), anteriormente de propriedade de Guilherme Telfer, talvez um dos pioneiros da fotografia no Brasil, que se instalou no Rio de Janeiro em 1849.

O fotógrafo se encontrava em atividade, portanto, uma década após o anúncio da invenção do daguerreótipo por François Arago, em 7 de janeiro, na Academia de Ciências, e repetido em solene sessão conjunta das Academias de Ciências e Artes em 19 de agosto de 1839, quando a técnica foi doada ao mundo pelo governo do rei Louis-Philippe I. O daguerreótipo seria chamado de espelho com memória tal a sua qualidade e extraordinária precisão, embora apresentasse alguns problemas, como fornecer um exemplar único, fixado em uma placa de metal, o que causava reflexos, além de oferecer a imagem invertida. Embora nem todo retrato comercial fosse feito em estúdio, em meados da década de 1850 esses estabelecimentos já se haviam tornado endereços conhecidos nas principais ruas de toda a Europa, dos Estados Unidos e de outras partes do mundo. Eram lugares da moda, para ver e ser visto, e atraíam pessoas de todos os estratos da sociedade. A classe média, com seu recém-conquistado poder de consumo, gostava de ser amplamente retratada, igualando-se à aristocracia, que também adotou essa mídia moderna que fazia com que seus rostos se tornassem conhecidos.

Na década de 1850 os retratos fotográficos ainda eram caros e tecnicamente de difícil execução, o que seria atenuado pelo advento da carte de visite, que utilizava uma câmera de quatro lentes. O método havia sido patenteado na França em 1850 por André-Adolphe-Eugène Disdèri e só entrou em uso em 1857. Permitia que oito retratos fossem retirados de uma única placa, sendo possível também fazer experiências com o tempo da exposição. O resultado da impressão em papel albuminado era uma pequena imagem retangular, com aproximadamente 6x10 cm colada sobre um cartão com o nome do fotógrafo, do estúdio, seu endereço e distinções, competindo, nas décadas seguintes, com o formato carte cabinet, com cerca de 14x10 cm. A popularidade do retrato aumenta drasticamente quando as elites políticas e sociais começam a usar as cartes de visite para disponibilizar seus retratos ao público em geral, estimando-se em 90% sua participação na produção fotográfica da segunda metade do século XIX. Fotógrafos imploravam para captar o retrato de celebridades. Elas circulam em pequenos formatos cada vez mais intercambiáveis e passíveis de serem colecionadas. Segue-se uma legião de militares fardados, dândis, homens de terno, mocinhas e rapazes com os frequentes livros nas mãos, senhoras apoiadas em cadeiras, em um cenário pouco variável, sobre o qual escreveu Walter Benjamin: “foi nessa época que apareceram aqueles ateliês com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes, mescla ambígua de execução e representação, câmara de torturas e sala do trono...”.

Era em estúdios que prometiam gradativamente mais recursos, conforto, iluminação e qualidade que se postavam fotógrafos, boa parte estrangeiros, alguns conhecidos, citados na imprensa, mais tarde premiados em exposições nacionais e internacionais. Em um círculo menor de agraciados, havia aqueles distinguidos como fotógrafos da Casa Imperial. Eles chegaram cedo ao Brasil, em meados do século XIX, e mesmo em uma escala modesta, se comparada à das metrópoles europeias e norte-americanas, mantiveram um crescimento constante, espalhando-se pelos principais centros urbanos. Assim, nos anos 1850, contavam-se cerca de noventa fotógrafos, saltando na década seguinte para 200, entre os quais ao menos 40% estrangeiros, de presença majoritária nas províncias e com um aumento progressivo nas últimas décadas do século XIX.

A coleção Fotografias Avulsas, do Arquivo Nacional, formada por doações a partir dos anos 1980, possui um núcleo representativo da produção dos principais fotógrafos que operaram no país. Nomes como de Revert Klumb, Joaquim Insley Pacheco, José Ferreira Guimarães, Alberto Henschel, das sociedades como Gaensly & Lindeman, Carneiro & Gaspar, Modesto Ribeiro, Bernardo José Pacheco, Agio Pio e tantos outros, responsáveis por esse oceano de retratos carte de visite e carte cabinet, assinam um capítulo da história da fotografia e uma história visual do Império. Com seus estúdios incluídos no comércio e na rotina das cidades, tinham lugar reservado no universo dos álbuns de família, a exemplo do que escreveu Gilberto Ferrez sobre um dos mais célebres profissionais do período: “antes de tudo era exímio retratista. Não há quase nenhum álbum de família em que não figurem retratos de avós tirados por Alberto Henschel”. O entusiasmo do imperador e da princesa Isabel pela nova técnica, sempre lembrado, é acompanhado por uma série de retratos de membros da família imperial, por estúdios da capital ou no exterior, incluindo o conhecido jogo no qual Pedro II aparece duplicado como interlocutor de si mesmo, sentado e de pé, por Carneiro & Gaspar no final da década de 1860. Nesse jogo o imperador é identificado com a técnica e a ciência, evidenciando o processo fotográfico naquela carte de visite.

Tendo em si mesma os elementos constituidores da modernidade, a fotografia não revela a cena da modernidade, mas o modo como o processo fotográfico engendra uma visualidade que é própria da modernidade. Um dos vínculos mais importantes entre fotografia e modernidade está na técnica e na necessidade de circulação que definem a época; o ritmo das grandes cidades, a distribuição das mercadorias produzidas em massa, as novas tecnologias de meios de transporte e comunicação são alguns entre os grandes temas da modernidade afetados e mesmo definidos pelo imperativo da circulação, sobretudo na segunda metade do XIX, como assinala Tom Gunning.

No século XIX, as fotografias ganhariam uma mobilidade que seu referente nunca possuiu e circulam em espaço e tempo separados como assinala Gunning. Assim é que a fotografia compartilha com a moeda e o capitalismo a possibilidade de transformar objetos em simulacros transportáveis, um equivalente universal. E tanto quanto o impulso da circulação se associa à lógica do sistema em seu propósito de controle e previsibilidade, seu pressuposto de objetividade, atestando uma dada realidade. Isso porque, diferentemente dos retratos pintados, em que o indivíduo é representado a partir do estilo de uma época e de um pintor, a pessoa retratada na fotografia permanece presente: sabemos que ela de fato existiu e que esteve presente diante da câmera naquele instante registrado pela imagem. Esta, mesmo quando afastada do contexto em que foi produzida, tornando-se anônima, continua contendo o indivíduo fixado pela fotografia “apresentado ao espectador da imagem como se fosse um fato”, o que para Patrícia Lavelle, diz mais sobre nossas categorias de apreensão do mundo visível do que sobre a veracidade do “fato”.

Também dotados dessa confiabilidade, de uma segurança que o sistema bancário e os grandes centros urbanos pareciam oferecer, os arquivos nacionais, associados à disciplina da História e à narrativa do Estado-nação tal como se constitui no século XIX, concorriam para um clima de estabilidade e certeza, na França de 1839. Não seria uma mera coincidência a simultaneidade do anúncio, pelo governo, de uma pensão vitalícia a Daguerre e das novas instruções para organização dos arquivos: a fotografia e os arquivos afinal repousavam sobre um mesmo solo epistemológico. No cenário do recém fundado império, com seu compromisso fundacional, também não será fortuito que, em 1838, houvesse sido criado o Arquivo Público do Império, filiado, nas décadas seguintes, ao modelo francês de organização conquanto disputasse a atenção do Estado imperial em seu ímpeto por complementar as lacunas de séries documentais que desaguavam no que seria a “história do Brasil”.

Entre os retratos oitocentistas preservados na instituição, alguns são originários de estúdios americanos ou principalmente europeus, ambientes frequentados por membros da classe senhorial, parte da sociabilidade e das viagens ao exterior. Observa-se nas coleções um número expressivo de crianças em fotos de estúdio, corroborando a ideia da fotografia como um assunto de família; em menor quantidade figuram fotografias em grupo, muitas sem autoria identificada. Do ponto de vista demográfico nota-se a presença de homens e mulheres de camadas médias urbanas, indicando transformações sociais e uma crescente disseminação do retrato nas últimas décadas do século. Por outro lado, a coleção Fotografias avulsas, bem como os arquivos privados, silencia sobre a população negra e especificamente, escravizada, de presença rarefeita nesse acervo. Isso se deve, antes de tudo, ao perfil hierárquico e escravista, constitutivo da sociedade brasileira do século XIX, mas, igualmente, à composição dessa parcela do acervo.

As doações privadas não contribuíram com aqueles “tipos urbanos” de vendedores, artífices ou as séries de “tipos de negros” que eram vendidas como souvenires ou serviam a estudos pretensamente científicos. Exceções, nesse sentido, são as duas imagens de amas de leite com crianças da família Costa Pinto, de autoria de A. Lopes Cardoso, em Salvador. Raras no acervo do Arquivo Nacional, elas transitam entre o álbum de família e a ordem pública, a garantia do sistema. Um dos retratos, uma carte cabinet de Maria Rita Meirelles da Costa Pinto, data de 1880 e tem em Benvinda, sua ama de leite, o ponto de atração pelos trajes, pelo contraste com o fundo neutro, mas, essencialmente, pelo olhar agudo com que interpela a câmera. A carte de visite de Antônio da Costa Pinto, também com sua ama de leite, é anterior, de 1868, e parece lançar mão de um recurso comum, como lembra Maurício Lissovsky: o de fotografar os mortos como se estivessem dormindo: “o retrato do bebê Antônio, no colo de sua ama de leite africana, nos remete a essa incerteza, acentuada pela profunda tristeza que emana da escrava, que mantém os olhos fechados, recusando a oferecer-nos o seu olhar ou a repousá-los candidamente sobre a criança, que ‘dorme’”.

Outro raro exemplar, a carte de visite de Glicéria da Conceição Ferreira, ao que tudo indica uma liberta, é assinada pelo tradicional estúdio Carneiro & Gaspar, ao qual também recorreu o imperador, e data do início dos anos 1870. Sua composição mereceu a análise de Sandra Koutsoukos:

“Ao construir, junto ao fotógrafo, a sua representação, a jovem senhora escolheu fazer referência a uma boa situação social, que podia ser real ou não, representada pela sua roupa, joias, leque, rica caixa (de joias, de pequenos objetos de toucador, ou, quem sabe, de uma coleção de fotos), penteadeira e banquinho de apoio para os pés. Porém, apesar de um dos pés estar apoiado sobre o banquinho, apenas entrevemos o que parece ser a ponta de um sapato...”.

A bela fotografia de Glicéria, que traz ainda uma flor presa ao penteado, não é um exemplar como outros, inseparável aqui da coleção custodiada pelo Arquivo Nacional. No verso da carte de visite, a marca da firma evocava suas premiações e trazia endereços em São Paulo e Paris, além da rua Gonçalves Dias 60, na capital do império, ao qual Glicéria compareceu. Disputava o pouco espaço restante a dedicatória a “Ilma Exma Snra Leopoldina Augusta de Sá Barreto”. Em cada margem continuava com as expressões “respeito e gratidão”, “amizade eterna”, oferecida no Rio de Janeiro em 6 de abril de 1872, ano que ficaria marcado pela realização do primeiro censo nacional, único que considerou a população escrava, naquela altura já muito inferior ao grande contingente de libertos. O caminho seguido pelo retrato, do estúdio da rua Gonçalves Dias às mãos de Leopoldina de Sá Barreto e, finalmente, ao Arquivo Nacional, reitera a lógica da circulação da fotografia e sua transformação em documento, oscilando entre o caráter singular, da catalogação à parede dos museus, ou em sua inerente repetição, como série, no arquivo.

Em uma passagem conhecida de Susan Sontag, a fotografia é compreendida a partir das esferas de poder antes de tudo pela sua industrialização, o que permitiu a rápida absorção pelos encarregados de gerir a sociedade. As fotografias, diz Sontag, “foram arroladas a serviço de importantes instituições de controle, em especial a família e a polícia, como objetos simbólicos e como fonte de informação. Assim, na catalogação burocrática do mundo, muitos documentos importantes não são válidos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatória do rosto do cidadão”.

Uma das zonas de sobreposição desses mundos é esse mesmo registro colado, carimbado e datado em passaportes, carteiras de identidades, fichas consulares, processos. Nos fundos públicos preservados pelo Arquivo Nacional, em meio aos documentos textuais, esses retratos, “rosto do cidadão”, formam uma longa série de um gênero progressivamente reconhecido por artistas plásticos e curadores que os retiram da sombra. Reinseridos nos arquivos de família, eles nos iludem como um possível reencontro. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº2/ 2021.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Brasiliense, 1987

BOURDIEU, Pierre. Photography: a Middle-brow art. Cambridge: Polity Press, 1998.

GONÇALVES, Márcia de Almeida, MATTOS, Ilmar Rohloff. O império da boa sociedade, a consolidação do estado imperial brasileiro. São Paulo: Atual, 1991

GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001]

HACKING, Juliet (Dir). Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estúdio do fotógrafo. Representação e autorrepresentação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX. Tese de doutorado, Instituto de Artes, Unicamp, 2006.

KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2002

LAVELLE, Patrícia. O espelho distorcido: imagens do indivíduo no Brasil oitocentista, Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 24-25.

LISSOVSKY, Maurício. Guia prático das fotografias sem pressa. In: HEYNEMANN, Claudia B., RAINHO, Maria do Carmo T. Retratos Modernos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005

____. Eia, pois, aos retratos! A família Meneses tira seus daguerreótipos. Acervo, Rio de Janeiro, v. 32, p.155-185, maio/ago. 2019. Disponível em http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1256/1343

MAUAD, Ana Maria. Imagem e autoimagem do Segundo Reinado. In: ALENCASTRO, Luís Felipe (org). História da vida privada 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

SCHWARTZ, Joan M. 2000. ““Records of Simple Truth and Precision" Photography, Archives, and the Illusion of Control”. Archivaria 50 (January), 1-40. https://archivaria.ca/index.php/archivaria/article/view/12763

SONTAG Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.