O meme é o mundo

01/06/2021

Os memes são invariavelmente associados a uma novidade. Seja porque se configuram como uma linguagem nativa do ambiente digital, ou porque refletem, frequentemente com algum bom humor, os acontecimentos mais recentes do cotidiano. Não obstante, não é raro que o frenesi midiático acene com um certo afã aos memes quanto se trata de uma cobertura noticiosa sobre o passado. Quais os memes que fizeram mais sucesso em 2020? O que os memes têm a dizer sobre a pandemia? Ou ainda: quando foi que o primeiro meme surgiu no Brasil? Para esses incautos navegantes de primeira viagem, pode soar estranho que as respostas mais elaboradas acabem, de um modo ou de outro, esbarrando no aparente que implica em justapor o meme de internet ao conceito originalmente desenvolvido por Richard Dawkins, em 1976.

Na realidade, para aqueles que estudam o tema, é mandatório e, simultaneamente, tedioso, remeter a Dawkins a cada meia dúzia de palavras trocadas sobre a origem do termo. Mas é também pitoresco, para se dizer o mínimo, que um conceito que explode em meados da década de 2010 tenha sido criado há cerca de 40 anos, muito tempo antes de a própria internet se tornar uma tecnologia civil e de as mídias sociais ganharem popularidade. Além disso, como não é o caso com outros conceitos, uma vez criado, e em sua acepção original, o meme poderia imediatamente representar fenômenos que teriam ocorrido anos, séculos antes. O recurso ao anacronismo epistêmico é útil, nesse caso, para desnaturalizarmos a ideia de que os memes são novidade, e para chamarmos a atenção para o quanto o meme, a despeito de ser, hoje, associado ao mundo digital, está entrelaçado com a nossa cultura de memória.

Em linhas gerais, o meme a que o #MUSEUdeMEMES se refere, e ao qual todos remetemos quando se trata de um comentário jocoso sobre a última grande piada da internet, é muito diferente daquele enunciado há mais de quatro décadas em O gene egoísta. Essa mudança reflete um conjunto de reapropriações da categoria, em grande medida realizadas a partir do momento em que ela passa a representar um gênero específico de conteúdo em circulação no ambiente social da web. E, embora seja possível, ainda, compreender o meme com as lentes de Dawkins e outros que nele se inspiraram, popularmente não é mais factível chamar de meme algo diferente do meme de internet. As reflexões a seguir procuram apontar o porquê.

Os memes: o que são, como surgiram, de que se alimentam

Tornou-se um meme dizer que o meme surgiu em 1976 e foi primeiro descrito por Richard Dawkins, em O gene egoísta. Na década de 1970, o biólogo Dawkins, em passagem razoavelmente lateral de seu livro, apresentou o termo, dizendo tê-lo criado a partir de uma contração do radical grego μίμημα (lê-se mimeme), para aproximar-se de “gene”. Naquela ocasião e ainda hoje, Dawkins procurou conciliar dois horizontes científicos distantes, o do determinismo genético e o do culturalismo, apelando para o recurso ao darwinismo universal.

De acordo com o darwinismo universal, a seleção natural pode ser compreendida como uma espécie de fórmula ou algoritmo segundo o qual um mecanismo replicador se encarrega se passar adiante determinada herança para outros indivíduos. No caso da biologia, o gene é quem carrega as informações hereditárias de indivíduo para indivíduo, e é o principal responsável por adquirirmos características semelhantes de gerações que nos antecederam: o sexo biológico, a cor da pele, a cor dos olhos, mas também habilidades físicas e até doenças genéticas. Mas, Dawkins então sugere, a seleção natural não é um processo exclusivamente biológico, pois há outras situações em que processos semelhantes ocorrem, sempre resultando na sobrevivência de organismos mais aptos, em função da capacidade de alguns replicadores passarem adiante determinada carga informacional. O biólogo explica que, se a seleção natural ocorre entre os organismos biológicos, é bastante provável que, no ambiente cultural, tenhamos algo parecido. E esta especulação o leva a criar o conceito de meme, para apresentá-lo como o replicador responsável por disseminar caracteres ideacionais entre os indivíduos. Isto é, se o gene carrega informações biológicas de um ancestral a um herdeiro, o meme carrega informações culturais, que Dawkins traduz simplesmente como ideias. As ideias passadas adiante, de geração em geração, constituem nosso caldo cultural, ou o que é por ele chamado de memepool.

Desta compreensão se depreende que o meme, para Dawkins, possui um caráter abstrato e impreciso. Trata-se de uma ideia que ele próprio exemplifica, em diferentes momentos, a partir da metáfora da crença em uma divindade superior. Deus, segundo Dawkins, é um meme, uma ideia cuja origem é obscura, que vem sendo passada adiante geração após geração, com alta adesão entre diferentes povos e culturas, e que sofre adaptações circunstanciais a cada contexto. Essas adaptações são fruto mormente de três fatores, descritos pelo biólogo como concernentes, em última instância, a todo e qualquer processo de seleção natural: a longevidade, a fecundidade e a fidelidade. Ou seja, a capacidade de uma ideia perdurar no tempo, a capacidade de gerar muitas réplicas e a de que essas réplicas sejam o mais próximas à concepção original quanto possível. Do ponto de vista teórico, portanto, se Deus é um meme, a religião, de modo mais abrangente, pode também ser lida dessa forma. E é assim que Dawkins indica que, muitas vezes, os memes, como os genes, operam em conjunto, como um "complexo de memes". Da mesma forma que um gene sozinho não é capaz de definir a cor de nossos olhos, algumas ideias requerem a combinação de múltiplos memes, como se o efeito final fosse produto dessa interação. E, assim, praticamente toda e qualquer manifestação cultural pode ser compreendida a partir das lentes do meme: a religião, a cultura popular, o folclore, a moda.

Já naquela altura a discussão de Dawkins soava defasada, após décadas de desenvolvimento das ciências humanas e sociais que, ainda no século XIX, costumavam construir paralelos semelhantes, evocando para a sociologia um largo espectro de metáforas comumente empregadas na epidemiologia, como a noção de contágio conforme desenvolvida por Gabriel Tarde (1843-1904). Ainda assim, o conceito de meme foi subsequentemente apropriado por um conjunto não desprezível de teóricos e pesquisadores. Entre os mais proeminentes, destacam-se o filósofo Daniel C. Dennett e a psicóloga Susan Blackmore. Dennett está particularmente preocupado com a dimensão da agência humana e as condições de propagação dos memes. Já Blackmore procura ampliar a noção de Dawkins para permitir que ela compreenda não apenas ideias, mas também comportamentos, modos de ser e fazer. É assim que descreve como memes não somente ideias mas também ideologias, como o nazismo. A base de sua teoria está centrada na compreensão do meme como uma imitação social, um fenômeno que também já havia sido discutido décadas antes por Tarde. Além disso, Blackmore suprime do indivíduo humano qualquer agência no processo de transmissão dos memes. Para ela, os memes são entidades autônomas que utilizam o ser humano meramente como hospedeiro. Ainda que controversas, suas concepções teóricas originais passaram a compor o que àquela altura já vinha sendo denominado de Memética, isto é, um campo de estudos dedicado à compreensão dos fenômenos relacionados aos memes e à área de Estudos de Mídia. Isso porque o meme, para Blackmore, pressupõe a existência de um veículo, através do qual uma dada ideia ou comportamento é passado adiante. Ela jamais utilizou esse termo para defini-lo, mas tal veículo não é outra coisa senão uma mídia. E, assim, sob um prisma teórico e conceitual, estava aberto o caminho para que o meme passasse a ser compreendido desta forma.

Em paralelo, porém, com o boom das comunidades online em meados da década de 1990, e particularmente com o sucesso de leituras com um razoável caráter conspiracionista – como o best-seller Media Virus, de Douglas Rushkoff, que se referia aos memes como um vírus da mídia, resultado de uma operação maquiavélica de manipulação ideológica, uma verdadeira máquina de persuasão – o conceito ganhou cada vez mais tração entre jovens e pundits tecnológicos. Mike Godwin, então colunista da Wired, foi um dos primeiros, se não o primeiro, a se referir aos memes como conteúdos que circulam pela internet na mídia de massa. A partir daquele momento, o ritmo de apropriação nativa da categoria se intensifica, e o meme ganha contornos cada vez mais precisos. No final daquela década já era comum, em certos círculos online, que o termo fosse empregado para representar um conteúdo gerado por usuário, isto é, um tipo específico de mensagem, que poderia ser encontrado em texto, em imagem ou (com menos frequência em função das velocidades de transmissão da época) em formato audiovisual.

No princípio dos anos 2000, Michele Knobel e Colin Lankshear buscaram definir os memes pelo seu caráter discursivo, chamando a atenção para como os conteúdos inspiravam afetos e constituíam redes de afinidades entre públicos online. Logo em seguida, autores como Miltner e Burgess construíram uma primeira ponte entre estudos sobre cultura fã e investigações sobre memes de internet. O conceito havia sido ressignificado ao longo dos anos, até alcançar a compreensão que grande parte das pessoas tem hoje, conhecendo, mesmo que intuitivamente, o seu significado. O meme de internet é, desse modo, fruto de uma apropriação nativa de uma categoria conceitual desenvolvida para representar outra coisa.

É bem verdade que é possível argumentar serem os memes de internet memes como quaisquer outros. Entretanto, essa nova nomenclatura – os memes "de internet" (ou memes online, como preferem alguns autores) – implica uma mudança de paradigma sobre o fenômeno: os memes deixam de ser resultado de uma mera imitação e passam a se caracterizar pela recriação generativa. Essa circulação de conteúdos gerados por usuários está imbuída de criatividade vernacular, isto é, da capacidade, própria dos usuários das mídias sociais, de manifestarem sua criatividade a partir da apropriação de elementos da cultura pop para expressar nuances de seu cotidiano.

Passa a haver uma distinção entre termos inicialmente empregados de forma indiscriminada, como os memes e os virais. Há uma diferença profunda entre conteúdos que são apenas passados adiante de forma idêntica e replicados entre os usuários e conteúdos que são remixados, parodiados ou recriados. No primeiro caso, diz-se que houve um processo de viralização, ao passo que, no segundo, não se trata mais de um viral, mas de um meme propriamente dito. A diferença é tão grande quanto a existente entre a cultura de massa e a cultura popular.

Esta separação é vital para a definição trazida por Limor Shifman, que contribuiu para reformular o campo decisivamente. A pesquisadora retoma o conceito de “complexo de memes”, ou “memeplexo”, para defini-los como um “grupo de itens digitais”. A ênfase na expressão “itens digitais” sugere que o foco de Shifman está na compreensão dos memes como conteúdos, e não como ideias ou comportamentos. Além disso, ao tratá-los como um grupo, a pesquisadora deixa claro o olhar para o fenômeno a partir de uma dimensão coletiva, e não individual. É desse modo que os memes passam a ser caracterizados como um gênero discursivo.

Eu vejo memes. Com que frequência? O tempo todo

A percepção de que o conjunto importa mais do que o conteúdo isoladamente é fundamental para a compreensão contemporânea dos memes de internet. Frequentemente, reconhecemos se tratar de um meme um conteúdo que apresenta padrões estéticos próprios de alguns formatos, como os image macro, as famosas imagens legendadas. Nos macros, superpostas a uma imagem, encontram-se uma legenda superior e uma legenda inferior, ambas utilizando uma família de fontes Impact de cor branca e contorno preto.

Em sua dissertação de mestrado para a London School of Economics, publicada em 2011, a pesquisadora Kate Miltner realizou uma série de grupos focais com usuários que criam e compartilham memes de gatos fofinhos nas mídias sociais. Ela descobriu que, apesar de muitos usuários não conseguirem se remeter à origem dessa estética ou se referir ao nome da tipografia empregada, a maioria deles era capaz de discernir se um dado conteúdo utilizava ou não regras e estilos que se afinavam com o que a comunidade, de modo geral, compreendia como um meme. Em resumo, se um macro empregava, digamos, uma tipografia Comic Sans, em lugar da Impact, ou se a cor das legendas era amarela, e não branca, esse elemento dissonante fazia com que rapidamente o meme fosse identificado pelo grupo como produzido por alguém inexperiente nos códigos da linguagem. Na mesma proporção em que padronizaram e limitaram o formato, os templates e geradores de memes garantiram ainda mais popularidade aos macros. Para muitas pessoas, esse formato se tornou praticamente sinônimo de meme.

Esse efeito não é exclusividade do caráter visual dos memes. Algo muito parecido é notado nas linguagens típicas da cultura digital, em que regras bem constituídas para os idioletos empregados. No caso do assim chamado LOLspeak, uma espécie de corruptela tatibitati do inglês, muito utilizada para legendar imagens de gatinhos, há um conjunto de normas quase oficiais compartilhado pelos usuários, como a inversão do verbo auxiliar com o verbo principal e a troca do S pelo Z em alguns contextos gramaticais.

A capacidade de empregar essas normas linguísticas pode muito bem caracterizar se um usuário é experiente ou se é um novato na cultura dos memes. Tais exemplos evidenciam o caráter coletivo dessa produção. Mesmo quando há um erro de linguagem ou uma estética aparentemente descuidada e amadora, trata-se na realidade de uma falha proposital. E é a partir dessas “falhas” que a comunidade se reconhece tacitamente. Embora nem sempre seja possível indicar a autoria de um meme, está claro que há aspectos de reconhecimento implícitos na linguagem.

Na cadeia produtiva de compartilhamento e cooperação em comunidades online, a identidade de um grupo é produto direto das interações entre seus membros ao longo do tempo. Essa experiência permite que os usuários troquem impressões e visões de mundo, e que construam mitos e memórias comuns. Isso é comum mesmo em comunidades em que os usuários não assumem identidades individuais, como é o caso do muito comentado fórum 4chan. O 4chan é um imageboard surgido em 2003 e notabilizado não apenas como a arena de onde emergiu o grupo ativista Anonymous, mas também, mais recentemente, como uma comunidade em que se reúnem usuários de diferentes vernizes da chamada alt-right norte-americana. O fórum é conhecido por não exigir de seus usuários que se identifiquem nominalmente. Muitos deles assumem identidades numéricas e efêmeras, que mudam em seu próximo login. Essa característica incomum desafia os preceitos de muitos teóricos que afirmavam ser a identidade coletiva um produto da permanência de identidades individuais. Em grande parte, nesses ambientes o meme é a materialização dessa memória, é ele que permite que os usuários compartilhem sentido e conformem públicos afetivos. Além disso, eles estão intimamente associados a uma construção narrativa e cênica dos acontecimentos, de tal forma que muitas vezes os memes são responsáveis por erguer ou contrapor a imagem pública de determinados atores políticos.

Em todos esses casos, para além de constituírem representações coletivas, os memes são, por si sós, um gênero coletivista. Com frequência, os personagens proeminentes em um meme, bordões ou símbolos específicos não são um fenômeno isolado. Eles conformam famílias de memes, e permitem aos usuários uma experiência de mapeamento de características que os atravessam. Uma família de memes se distingue de outras por conta de aspectos peculiares, ao passo que um meme integra a mesma família que outro na medida em que compartilham valores comuns.

Assim, sabemos que um meme é um meme porque ele incorpora uma estrutura que lhe é subjacente, aplica símbolos que são facilmente reconhecidos por um determinado público, e, desse modo, ajuda a construir memórias e imaginários junto a uma dada comunidade. Há um elemento que proporciona esse reconhecimento, uma espécie de vetor de memória, que se reporta ao caráter intertextual do meme e nos faz associá-lo diretamente a outras mensagens congêneres. Qualquer frase apendida de um sufixo composto pela expressão “né, minha filha?”, por exemplo, será imediatamente incorporada à família de memes originada por ocasião de um momento de empatia externada pelo médico Dráuzio Varella em um quadro na televisão aberta. O afeto – isto é, a empatia – e a memória sustentam esse e todos os outros memes.

Nesse sentido, ainda que Dawkins não fizesse referência ao mneme, parônimo conceitual desenvolvido pelo também biólogo Richard Semon em 1904 – e que procurava expressar a herança de caracteres adquiridos pelos indivíduos através do traço mnêmico, uma espécie de memória orgânica dos seres vivos –, o meme, e especialmente o meme de internet, é também uma evocação da memória social, por meio de representações cultivadas coletivamente. Se os memes podem ser compreendidos como grupos de itens digitais, não é difícil reconhecê-los como um acervo ou uma coleção. No final das contas, é difícil até mesmo recompor qualquer relação de causalidade: são os memes oriundos de comunidades online ou são as comunidades estabelecidas em torno de seus próprios memes?

Vai pa onde? O futuro do meme é o museu

A sofisticação de suas características e a gradativa incorporação de novos aspectos intertextuais e referências à cultura pop e a piadas internas compartilhadas por alguns grupos específicos têm feito o meme extrapolar a condição de gênero comunicativo nativo do ambiente digital. Ele, hoje, não é apenas um gênero, mas um gênero composto de muitos gêneros.

Há diferentes formatos e diferentes funções desempenhadas pelos memes. Há também diferentes figuras de linguagem acionadas em cada uma das famílias de memes que conhecemos. Memes como Tenso ou o painel da Mente Expandida, por exemplo, trabalham com a gradação, construindo uma escala de suspense a cada quadro. Memes como os da série Como Eu Me Sinto Quando, ou diversos look-alikes comparativos entre um personagem real e um fictício, estabelecem analogias. Há memes que fazem uso de hipérboles, prosopopeias, antíteses, metonímias e catacreses, entre outras figuras de linguagem. Esses elementos nos ajudam a reconhecer as características de cada família e a perceber que os memes são uma linguagem completa e robusta, que comporta em si mesmo diferentes gêneros discursivos.

Embora não sejam objetos materiais em um sentido estrito, os memes materializam afetos e reações e funcionam como comentários sociais em cenários de discussão pública. Na prática, eles ocupam um espaço intermediário entre a cultura material e os imaginários coletivos. Dessa forma, aproximam-se do universo museal. O museu apresenta o sensível por meio de um artefato. O artefato caracteriza a substituição, a experienciação sensorial. À dimensão estética (o sensível), portanto, unem-se a dimensão museal (o mostrável) e a dimensão virtual (o artefato, ou, diríamos, o exequível). O artefato (isto é, feito com arte) é aquilo que opera como elemento desencadeador da rememoração. O museu, seja ele virtual ou não, é sempre um artefato capaz de despertar a emergência de sentidos para a memória. Dito isto, são os memes objetos museológicos?

Em 2015, quando tudo ainda era mato, o #MUSEUdeMEMES foi oficialmente criado, na Universidade Federal Fluminense. Ele nasceu de uma dupla provocação. Como todo museu, tem seu lado sério, levado a cabo a partir do objetivo de apresentar ao grande público um pouco da memória de uma certa cultura popular de internet, como se referem os especialistas. Por outro lado, ele é, em si mesmo, um meme, isto é, uma brincadeira, um artifício. Em suma, o museu é uma ferramenta de comunicação, mas também é ativismo político, é teoria mas também é práxis.

E há dois gestos envolvidos simultaneamente na fundação de um #MUSEUdeMEMES. O primeiro e mais evidente deles é o de preservar a memória concernente aos memes de internet e sugerir um reflexão sobre o lugar que ocupam na cultura contemporânea. Afinal, não se guarda qualquer coisa em um museu. Os memes são ressignificados como linguagem ou expressão cultural de suma importância, como vetores de memória, que devem, por assim dizer, ser entendidos também como patrimônio. Quem entende os memes de internet apenas como cultura inútil está perdendo muitas camadas de significado. Ato contínuo, o segundo movimento desloca o sentido do museu, normalmente tido como instituição mantenedora de uma arte erudita ou de uma história das elites, e passa a compreendê-lo como ferramenta a serviço da cultura popular, notadamente, em nosso caso, da cultura popular da internet (um tipo bastante específico). Um #MUSEUdeMEMES é, dessa forma, um produto da museologia social, que se quer no mundo.

Em sentido estrito, o #MUSEUdeMEMES consiste em uma atividade que envolve pesquisa, ensino e divulgação científica, e tem como escopo a implementação de um foro de referência para leigos e pesquisadores. O acervo é composto, atualmente, de algumas centenas de famílias de memes, dentro das quais dezenas de milhares de conteúdos foram mapeados previamente por nossa equipe, e constituem a reserva técnica do #MUSEU. O trabalho dos pesquisadores envolve a documentação dessas famílias de memes, isto é, conjuntos temáticos específicos.

Tomado como um webmuseu, o #MUSEUdeMEMES não se configura a partir de um cenário virtual tridimensionalizado, e não procura reproduzir ou emular a experiência de visitação dos museus físicos. Trata-se de um museu que respeita o suporte midiático que lhe é inerente, e, como tal, aposta nos mecanismos de associação e agregação de conteúdos para apresentar ao seu visitante uma coleção por se construir, uma coleção em que o próprio visitante tece suas conjecturas e experiencia por si mesmo, pois os memes só ganham contexto quando o humor subjacente lhes emerge. A piada interna, que, em muitos sentidos, é o próprio meme, só se completa quando o interlocutor acha graça. É como se, ao entrar em uma edificação museal, subitamente o indivíduo se apercebesse que as obras expostas nas galerias são talvez menos importantes que suas fichas técnicas – estas, sim, em absoluto destaque, como legendas que explicam as piadas. Nos memes, a explicação contextual é sempre fundamental, porque é ela que permite a emergência da memória social construída em torno dos fatos e acontecimentos, dos personagens e das situações do dia-a-dia. Como artefatos midiáticos, os memes carecem de uma narrativa que os contextualize. O contexto é o que os reúne. Os memes são sempre uma coleção de textos. E, no #MUSEUdeMEMES, nós os colecionamos… ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº2/ 2021.

Leia Mais:

CHAGAS, Viktor (org.). A cultura dos memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital. Salvador: EdUFBA, 2020.

#MUSEUdeMEMES. Disponível em: http://museudememes.com.br.

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