Morte e Vida da Memória Nacional

01/06/2021

No ano de 2020, os significados do patrimônio cultural foram colocados em questão de modo inusitado, quando eclodiram, numa escala internacional inédita, manifestações públicas denunciando a violência do Estado imposta às comunidades negras, sob a inspiração do movimento social Black Lives Matter, ou Vidas Negras Importam, surgido nos Estados Unidos em 2014. Em tempos de redes sociais, os acontecimentos foram fartamente difundidos pelo noticiário globalizado e repercutiram muito rapidamente no Brasil.

Pode-se dizer que a mobilização social eclodiu a partir de 25 de maio, quando na cidade norte-americana de Minneapolis, no estado de Minnesota, ocorreu a morte do cidadão afro-americano George Floyd por uma ação policial desproporcional e despropositada. Os registros do assassinato em redes sociais logo alcançaram as mídias de massa e o fato mobilizou intensamente a opinião pública em torno do debate sobre o racismo estrutural, que condiciona a brutalidade policial e a desigualdade do sistema de Justiça. Na sequência dos dias, a solidariedade à causa se desdobrou em manifestações públicas com grande expressão em várias partes dos EUA e em diversos países.

O contexto geral de denúncia social contribuiu para afirmar a atualidade do patrimônio cultural. A partir do ato inicial de depositar flores em homenagem à memória de George Floyd, o local de seu assassinato passou a ser um ponto de manifestações contra a violência de Estado e o racismo, em associação com a criação artística. Valorizando o que é próprio da lógica dos monumentos, o local foi investido de sentido histórico e se constituiu em lugar de memória, dando origem ao George Floyd Global Memorial. A originalidade do memorial está na sua concepção como espaço de ocupação permanente, definido como living memorial, ou “memorial vivo”, pela organização social que se constituiu para sua preservação. A iniciativa acompanhou, assim, o sentido da missão do movimento Black Lives Matter, que se propõe a combater a violência “criando espaço de imaginação e inovação negra, promovendo a alegria negra”. A partir daí, afirmou-se na cidade um ponto de referência sempre renovado por intervenções efêmeras que se combinaram com o marco duradouro da imagem de George Floyd, em retrato de grande escala, pintado em preto-e-branco, de autoria do artista de rua urbano Peyton Scott Russell.

Em 7 de junho de 2020, na cidade de Bristol, na Inglaterra, um grande protesto chamou igualmente muita atenção das mídias, com a notícia de que o movimento antirracista local promoveu a derrubada de uma estátua em praça pública. O alvo do ato iconoclasta foi a imagem de Edward Colston, personagem do século XVII, de memória celebrada pelo seu papel de filantropo, mas cuja riqueza pessoal teve origem nos lucros do tráfico negreiro. As fotografias da derrubada da escultura pública correram o mundo, documentando como o movimento social arrancou a obra de seu pedestal e jogou ao rio a imagem histórica. O ato simbólico foi claramente uma reação popular à repressão policial, apoiada pelo posicionamento das autoridades de governo nacional diante das grandes demonstrações públicas que ocorriam em várias cidades inglesas, repercutindo o alcance da causa de Black Lives Matter, levantada em várias partes do mundo depois do assassinato de George Floyd. Em Bristol, a onda global antirracista se encontrou com uma reivindicação social anterior, de retirada do espaço público daquela estátua de bronze inaugurada no século XIX. Ao final, a estátua com as marcas do ataque do movimento social tornou-se objeto de exposição em museu histórico da cidade, como documento da luta social e da causa antirracista.

O ato iconoclasta de Bristol, no bojo da luta de defesa dos direitos da comunidade afrodescendente, afirmou como é incontornável que a política de preservação do patrimônio cultural se desenvolva de modo atualizado com as releituras contemporâneas da história e em sintonia com os temas da vida em sociedade, assumindo o papel de representação de causas sociais dos novos tempos. Se, de um lado, o caso evidencia como o Estado se manteve indiferente a essa tendência do tempo presente, por outro lado aponta para o fato de que a preservação implica necessariamente em renovar processos de significação que mantenham vivo o diálogo do bem cultural com a sociedade, evitando sua solidão, abandono ou destruição. Não basta resumir a preservação à dimensão material do bem cultural, é preciso tratar sua dimensão simbólica e intangível, evitando o risco de o patrimônio cultural servir para naturalizar antigas visões de mundo e se distanciar das causas das novas gerações.

O caso da estátua da cidade de Bristol lembra o debate recorrente sobre os monumentos aos bandeirantes na cidade de São Paulo. De tempos em tempos, esses monumentos são alvo de intervenções que confrontam a memória estabelecida de que os bandeirantes são heróis do desbravamento do território nacional. Ao longo dos anos, a imprensa paulista noticia diversos casos de pichações que manifestam a crítica à memória enquadrada dominante. Em outubro de 2020, no contexto da repercussão do movimento Black Lives Matter, algumas das conhecidas estátuas paulistanas amanheceram cercadas de crânios cenográficos. Tratava-se da criação de um coletivo de artistas propondo a atualização dos significados históricos dos bandeirantes, caracterizando-os como agentes da escravização de indígenas e, por consequência, do genocídio dos povos originários da terra do Brasil. Sem a participação do Estado e sem qualquer ameaça à integridade de bens culturais tradicionais da cidade de São Paulo, o movimento social promove novos olhares sobre o patrimônio cultural.

A história do pensamento sobre o patrimônio cultural no Brasil tem um marco importante no ano de 1967, quando ocorreu o lançamento do livro _Morte da memória nacional*, escrito pelo jornalista Franklin de Oliveira (1916-2000). Embora publicado no ano em que o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dito SPHAN, completava 30 anos, o livro nada tinha de celebração da efeméride, afinal seu tom era de crítica à política nacional de preservação do patrimônio cultural. O título já anunciava a advertência sobre o risco de o Brasil se transformar numa nação “atacada de amnésia histórica” pelo processo de “desintegração do acervo cultural brasileiro”. Sem deixar de valorizar os significados valiosos do patrimônio cultural de norte a sul do país, poucas vezes a ação do Estado nessa área foi objeto de uma consideração tão sistemática em caracterizar a “a situação de abandono em que jazem os bens culturais do Brasil”. Claramente, o argumento central tendia a caracterizar como o descaso com o patrimônio cultural traduzia uma política de produção de esquecimento.

Morte da memória nacional é um livro pouco citado na bibliografia especializada atual. Franklin de Oliveira era um notório mestre da reportagem, que não manteve uma dedicação permanente aos mundos do patrimônio cultural e nunca teve qualquer intenção de fazer escola nessa direção. O autor tampouco integrava o universo da “Academia SPHAN”, feliz expressão cunhada pela socióloga Mariza Veloso, caracterizando o grupo de intelectuais que capitaneou a formação discursiva que serviu de base para as atividades daquela repartição federal, cuja missão era a preservação do patrimônio cultural nacional. Outro fato que pode justificar a desconsideração pelo livro no terreno dos estudos especializados é que o seu lançamento ocorreu no ano em que o diretor fundador da instituição, Rodrigo Melo Franco de Andrade, afastou-se de suas funções executivas, permanecendo apenas como membro do conselho consultivo do órgão até seu falecimento, dois anos depois. A gestão do SPHAN passava então às mãos de uma nova geração. Além disso, o predomínio do interesse pela história institucional não dimensiona as contribuições externas aos quadros do IPHAN, mesmo que o livro valorize muito o trabalho e a dedicação dos servidores do órgão federal.

No seu tempo, Morte da memória nacional gerou repercussão pública, como resultado do entrelaçamento entre a imprensa e o mundo editorial característico do Brasil dos anos de 1960. O produto era um desdobramento da série de nove textos de reportagem publicados nas páginas do jornal O Globo e a partir de dezembro de 1966. Uma viagem às cidades históricas de Minas Gerais foi a base do trabalho, em que o jornalista foi acompanhado pelo fotógrafo Luis Alberto Peña, cujas imagens enriqueceram os textos publicados tanto no jornal quanto na primeira edição do livro. A reunião das crônicas de reportagem, acrescidas de outras quatro inéditas, deu forma ao livro, com 13 capítulos, apresentação e bibliografia essencial, que a partir do quadro regional de Minas Gerais oferece dados sobre o patrimônio cultural em várias partes do país. Pode-se dizer que a obra representa um gênero narrativo próprio do jornalismo que tem a reportagem como método e combina pesquisa descritiva com opinião.

Como o próprio autor descreve na apresentação do livro, a reportagem foi pensada como a ponta de lança de “uma campanha de defesa dos bens culturais do Brasil”. A prática buscava atrair leitores a partir de reportagens com potencial para influenciar o debate público sobre questões nacionais. Franklin de Oliveira repetia assim o modelo de reportagem investigativa que havia resultado em outro livro de sua autoria, sobre o processo de descapitalização do Brasil meridional, que também se originou de uma série de textos publicada no jornal O Correio da Manhã. Nesse tipo de campanha conduzida pela imprensa, a notícia da repercussão do debate chamava atenção para o próximo texto da série, definindo um circuito em que qualquer manifestação de personalidade pública incrementava o noticiário cotidiano do jornal e ampliava o alcance do debate proposto pela reportagem. A partir da imprensa, mobilizavam-se diferentes instâncias da sociedade civil e da política em torno de uma pauta da vida social, o que dava tom político à difusão da reportagem.

No caso, esse tom era envolvido ainda pela aura do autor, jornalista experimentado, mas cujo posicionamento político levou à cassação de seus direitos políticos pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1), que marcou a fase de construção da ordem autoritária no Brasil instaurada a partir do golpe de Estado de 1964. A publicação da grande reportagem deixou claro que, mesmo sem direitos políticos, o jornalista não havia abandonado sua profissão nem havia perdido a motivação para participar do movimento de ideias de seu tempo, encontrando apoio no mercado de trabalho. Em alguma medida, o livro era uma manifestação em favor da liberdade de expressão sob a sombra do autoritarismo que marcava o Brasil daquele momento. Não sem razão, advertia que o pretexto da proteção dos bens culturais não podia “degenerar em planificação fascistizante da cultura”, ou “espartilhar o ímpeto criador da inteligência brasileira”. Elementos como esse conferem ao livro um claro traço de época e deixam transparecer o seu caráter de documento histórico.

Mesmo sendo uma reflexão datada, a reportagem ainda é capaz de envolver os leitores de hoje ao explorar a curiosidade e colocar a erudição ao alcance de todos. O narrador experimentado, que aborda o singular para tratar o universal, faz da crônica um libelo que se confirma quando, na apresentação da segunda edição do livro, ele recorda que o livro fora publicado “como denúncia e protesto”. A reportagem explicitava, então, um ponto de vista segundo o qual os bens culturais do Brasil se encontravam “em fase inicial de derrocada, pelo colapso do sistema instituído para lhes assegurar a preservação”. Ao enfatizar a derrocada ou o colapso dos mecanismos institucionalizados pelo estado de preservação do patrimônio cultural nacional, a narrativa elaborada mobilizava um sentimento de inconformismo que traduzia a aspiração de “manter acesa a peleja” explicitada na primeira edição do livro. De fato, o autor conclui o último capítulo clamando por uma “ação de solidariedade aos órgãos encarregados da defesa, preservação e ampliação de nosso acervo cultural”, defendendo a deflagração de uma mobilização do povo “a fim de que o Brasil não se transforme numa grande nação historicamente desmemoriada”. Para leitura nos dias atuais, a evidência de paralelismo dos fatos de ontem e de hoje é incontornável, fazendo o livro ultrapassar a sua condição de documento histórico.

A consistência e a legitimidade da causa da defesa dos bens culturais eram reforçadas pela referência a exemplos históricos que ofereciam uma genealogia à luta, de modo a não permitir defini-la como exclusiva de determinado contexto histórico. O autor recorre à lembrança do conde das Galveias, vice-rei do Brasil, que a partir de Salvador da Bahia, em 1742, se opôs à transformação em quartel de tropas do antigo Palácio das Duas Torres de Recife, erguido pelos holandeses; e do barão do Bom Retiro, que, como ministro do Império, despachou ordem para que se cuidassem dos monumentos preservando suas inscrições. Acrescenta uma lista de personalidades que sustentaram a declaração da cidade de Ouro Preto como cidade-monumento nacional: Bruno Lobo, Luís Cedro, José Mariano Filho e Augusto de Lima. Com o mesmo sentido, arrola outros nomes que apoiaram a criação, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN): Raimundo Lopes, Wanderley Pinho e Mario de Andrade. Ao final, a genealogia de defesa do patrimônio cultural nacional se completa com menção à “bravura silenciosa” e “luminosa competência” de Rodrigo Melo Franco de Andrade, líder da geração heroica da fundação do SPHAN. Nessa altura do argumento geral, fica evidente que o problema não estava na má gestão das instituições culturais, mas numa crise estrutural de sistema.

A crônica exemplificava, então, a situação da gestão da cultura nacional atingida pela falta de orçamento, comprometendo a ampliação de coleções públicas e favorecendo o comércio de antiguidades. O quadro traçado apontava igualmente que a falta de segurança dava espaço para furtos constantes de bens culturais, assim como a carência de uma legislação de controle do patrimônio cultural permitia descartes inconsequentes e legitimava transferência de acervos para instituições estrangeiras, o que era comparado a um saque cultural. Havia ainda o caso dos interesses imobiliários que atingiam a preservação da arquitetura das cidades históricas. A imagem da “ameaça que nos ronda”, ganhava vida na reportagem iniciada em 1966. Ao lado disso, a reflexão ensaística proclamava, no capítulo 6, que cultura não deve ser tratada como luxo, mas como bem de produção, antecipando em décadas a pauta da relação entre cultura e desenvolvimento, que seria fixada por Celso Furtado no comando do Ministério da Cultura, na década de 1980.

Os fatos descritos por Franklin de Oliveira tornam inevitável a comparação entre o ontem e o hoje ao evidenciar que, na década de 1960, a falta de investimentos públicos demonstrava a dificuldade de governos em tratar o patrimônio cultural como atividade de Estado necessária. Mesmo situada décadas atrás, a crônica de época ressoa diante de fatos contemporâneos, iluminando a dificuldade ainda atual de afirmar a preservação dos bens culturais no Brasil como uma função de Estado. Observa-se que o aparato do Estado foi construído ao longo dos anos, especialmente entre as décadas de 1930 e 1950, depois rearranjado na passagem dos anos de 1980 e 1990, mas as instituições seguem fragilizadas pelo seu desprestígio diante dos programas de governo e pela sazonalidade de ações.

Sem uma base conceitual sistemática, Franklin de Oliveira investe, em Morte da memória nacional, na análise do processo de institucionalização do patrimônio cultural no Brasil. Essa abordagem converge com as tendências contemporâneas de linhas de pesquisa que se desenvolveram principalmente a partir dos programas de pós-graduação do país, na década de 1990. Essa bibliografia mais recente emergiu sob a inspiração otimista do contexto de redemocratização política e construção renovada de políticas públicas. A criação do Ministério da Cultura, em 1985, certamente serviu como referência para aprofundar as pesquisas que tomavam o patrimônio cultural como objeto de políticas públicas. Não há como negar que a conjuntura coincidiu com o processo de ampliação da ação do Estado na área do patrimônio cultural, o que pode ser exemplificado pelo marco legal do registro do patrimônio imaterial estabelecido no ano 2000, ou com a criação do Centro Nacional de Arqueologia e do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) em 2009. Os fatos, porém, indicam que essa ampliação de estruturas não significou a superação histórica de fragilidade institucional dos órgãos públicos relacionados à ação cultural, já apontada na década de 1960 pelo jornalista Franklin de Oliveira e que encontrou sua maior expressão em tempos recentes, por ocasião do incêndio do Museu Nacional, em 2 de setembro 2018. Poucos depois desse triste acontecimento, com a mudança de governo, o Ministério da Cultura foi extinto, em janeiro de 2019.

Diante desse quadro, ainda que a reflexão de Franklin de Oliveira represente o ponto de vista de outra geração, pode ser igualmente considerada antecipadora ao situar um processo histórico que permanece inconcluso: inscreve uma duração que se estende pela atualidade. A originalidade de Morte da memória nacional, no entanto, está em apontar que o descaso de governos em relação ao patrimônio cultural transmuta qualquer política de memória em produção social do esquecimento, transformando o Estado em agente da iconoclastia por fazer desaparecer coleções e bens culturais. Essa advertência faz com que aquele livro se defina como um documento para os novos tempos.

Evidentemente, a atualidade da obra de Franklin de Oliveira precisa ser confrontada com o que há de novo no mapa social da cultura brasileira e que distingue os tempos históricos. Certamente, o jornalista não contava que o movimento social de luta por direitos de cidadania se tornaria a base da defesa do patrimônio cultural no Brasil contemporâneo. Enquanto no fim da década de 1960 o quadro das instituições culturais era dominado por órgãos de Estado, na atualidade convive-se com a vitalidade do patrocínio privado que sustenta ações as mais diversas de preservação do patrimônio cultural, aproveitando as oportunidades criadas pelas leis de incentivo à cultura – que têm como referência o modelo federal que vem sendo aperfeiçoado desde sua criação, na década de 1980.

O patrocínio cultural criou espaço igualmente para o protagonismo de instituições privadas, ou sob gestão privada, que inexistiam no Brasil de outros tempos. Ao lado disso, não se pode deixar de reconhecer que a Constituição de 1988 foi decisiva ao definir a ampliação do conceito de cidadania, instituindo os direitos culturais no Brasil. Nesse sentido, a política cultural nacional, em todas as esferas de Estado, ficou comprometida com a garantia da liberdade de expressão e da atividade criativa, bem como com a valorização da diversidade cultural. Cabe ainda ressaltar a renovação do foco da política de patrimônio cultural pela reunião de bens de natureza material e imaterial. Nessa chave constitucional, abriu-se a trilha para afirmar a cultura como terreno de defesa de direitos de cidadania e como espaço para projetar causas sociais contemporâneas no Brasil.

Em grande medida, a tendência nacional de ampliação do universo do patrimônio cultural acompanhou o debate internacional ao menos desde a aprovação da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, em 1972, e da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas produzidas no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Na mesma direção, pode-se apontar a renovação da Museologia pelo compromisso com a função social dos museus, que se afirmou especialmente a partir da Declaração de Santiago de 1972, resumindo os resultados da Mesa-Redonda sobre o papel dos museus na América Latina promovida pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) e abrindo o horizonte para o pensamento renovador da Nova Museologia e da Museologia Social.

No Brasil, a reflexão teórica contemporânea sobre o patrimônio cultural e os museus participou ativamente do processo de aprovação de registros de bens culturais de natureza imaterial e da multiplicação de ecomuseus e museus comunitários no país. Segundo dados fornecidos pelo IPHAN, até o ano de 2018 constavam 48 bens registrados pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, cujo objetivo é promover o protagonismo dos agentes dos saberes tradicionais, que são o foco do patrimônio imaterial. Por sua vez, pesquisa de Suzy Santos apontou que, entre 1968 e 2017, formaram-se 196 ecomuseus ou museus comunitários no Brasil. Os dados indicam que a conjuntura da Constituição de 1988 foi decisiva para a multiplicação desse gênero de instituição museal. Contudo, foi na primeira década do século XXI que se criou o maior número de ecomuseus e museus comunitários, somando um total de 76 instituições reconhecidas (de caráter mais ou menos formal). A reboque da força dessa tendência social, foi implantando o Programa Pontos de Memória, criado pelo antigo Ministério da Cultura, que lançou editais entre os anos de 2009 e 2014 para patrocinar “processos museais protagonizados e desenvolvidos por povos, comunidades, grupos e movimentos sociais”. Nesse quadro geral, multiplicaram-se os museus indígenas, quilombolas, de comunidades de trabalhadores (rurais, extrativistas, da pesca etc.), comunidades urbanas e favelas e representativos de causas ambientais ou identitárias, como os museus que trabalham a luta LGBTQI+.

Assim, tanto o registro do patrimônio imaterial como o da criação de museus comunitários apontam no sentido de que o patrimônio cultural tem sido elemento importante na mobilização social no Brasil, “ora como espaço de luta e reivindicações e busca de reconhecimento, ora como espaço pedagógico”, para usar os termos que Marilia Xavier Cury empregou para caracterizar os museus indígenas contemporâneos, que têm como exemplo pioneiro o Museu Magüta, que promove a cultura dos ticuna, povo da região amazônica do Alto Solimões.

Essa associação entre patrimônio cultural e reconhecimento de direitos está afirmada em vários países onde a democracia anda junto com o controle social do Estado. Fato marcante, sem dúvida, ocorreu em 1970, quando o chanceler alemão Willy Brandt, em visita oficial à Polônia, surpreendeu o mundo ao se ajoelhar diante do monumento ao levante do gueto de Varsóvia e pedir perdão pela violência impetrada pelo Estado alemão durante o regime nazista. Abriu, então, novos rumos para a relação do Estado com a construção social da memória. Anos depois, em 1995, também o presidente francês, Jacques Chirac, reconheceu em público a responsabilidade francesa na deportação de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, o que seria ratificado pelo Conselho de Estado da França em 2009. Naquele mesmo ano, o Senado dos Estados Unidos aprovou pedido de desculpas aos negros americanos, em nome de todo o país, pela escravidão e a segregação racial, confirmando a manifestação que o presidente Bill Clinton havia feito em 1998, em viagem à África do Sul, quando lamentou a prática da escravidão. No ano 2000, o papa João Paulo II pediu perdão à humanidade pela Inquisição. Essa abertura de uma era de reparação simbólica representou nova orientação para as políticas de memória, que passaram a promover leituras críticas da história nacional.

Em diferentes países do mundo, atos oficiais semelhantes se repetiram e se combinaram com a iniciativa de construção de antimonumentos diversos e de museus memoriais. Desse modo, o patrimônio cultural passou a participar no plano simbólico do combate aos crimes contra a humanidade e de promoção da reparação histórica. O direito à memória se redefiniu como direito à verdade. O Brasil ainda parece distante desse tipo de política de memória, ao não desenvolver programas de reparação simbólica com resultados consolidados diante da história do genocídio indígena, da prática da escravidão africana e dos casos das vítimas da repressão política durante as ditaduras, mesmo que a Justiça de transição tenha garantido conquistas importantes. Da perspectiva da definição de uma política pública de memória nacional, isso mantém o Estado distante da compreensão da função social contemporânea do patrimônio cultural e não contribui para associar democracia e justiça social. Pode-se dizer que essa é a nova fase da produção de esquecimento conduzida pelo Estado.

O quadro brasileiro apresenta uma situação inusitada do ponto de vista histórico, pois o Estado nacional vem consolidando a imagem de vilão do patrimônio cultural, ao não cumprir plenamente suas obrigações formalmente instituídas e ao envolver a construção social da memória em produção de esquecimento. Historicamente, a iconoclastia se caracteriza como recurso da contestação social, mas no Brasil das últimas décadas o padrão histórico parece se inverter, uma vez que o movimento social de base popular se tem constituído como agente defensor da promoção de bens culturais. Desse modo, os usos do passado, que em perspectiva histórica foram recurso da ordem social dominante, na atualidade brasileira se constituem em engrenagem do fortalecimento da luta pela garantia e ampliação de direitos.

Enfim, não se confirma o vaticínio da “morte da memória nacional” lançado por Franklin de Oliveira no livro de 1967. Ao contrário, na atualidade brasileira, pode-se falar em ampliação e renovação dos sentidos e práticas do patrimônio cultural. Ocorre que o Estado vai perdendo seu protagonismo. Vê-se que, tal como no caso internacional do Black Lives Matter, o movimento social no Brasil recente se afirmou como agente da defesa e renovação dos sentidos contemporâneos do patrimônio cultural, proclamando que lembrar é preciso. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº2/ 2021.

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