O príncípio de Pinóquio

01/06/2021

Já está na Netflix um filme novo sobre Pinóquio.

O que tem isso a ver com jornalismo e, eventualmente, com literatura?

Eu quero tecer algumas considerações sobre essa correlação, mas vou começar justificando a alusão ao conto sobre a mentira. Vocês conhecem o famoso paradoxo: “Epimênides, o cretense, diz que todos os cretenses são mentirosos”. O que fazer com esta sentença? Não é verdadeira nem falsa. Trata-se de um paradoxo, sem nenhuma solução lógica à vista.

Mas o valor da argumentação não tem nenhuma universalidade ligada apenas ao rigor da lógica, depende das estruturas sociais onde se constrói a representação, onde “o lógico está em constante oscilação com o empírico” (Edgar Morin). Por isso, existe uma solução pragmática. Basta Epimênides dizer: sou cretense, mas me excluo do grupo, logo, falo a verdade.

Agora vamos aplicar a esse grupo o que me proponho a chamar de “princípio de Pinóquio”, ou seja, todo mundo é igual a Pinóquio, todo mundo mente.

Pinóquio, vocês sabem, é o boneco de madeira do conto infantil escrito em 1883 pelo italiano Carlo Collodi. O boneco foi fabricado por Gepeto, um homem simples, que já tinha recebido de presente um pedaço de madeira falante. Pinóquio mente compulsivamente, e seu nariz cresce de tamanho na proporção das mentiras. O conto é infantil, mas tem aspectos às vezes sombrios: Pinóquio é enforcado uma vez, numa segunda vez morre de novo, mas sempre ressuscitado pela Fada Azul.

Por que trazer esta história aqui e agora? Primeiro, por causa da atualidade de Pinóquio. Segundo, porque Benedetto Croce, o grande filósofo da estética italiano, disse certa vez que “a matéria de que Pinóquio foi esculpido é a própria humanidade”. Terceiro, porque o que estou chamando aqui de “princípio de Pinóquio”, ou o princípio da mentira sistemática, é o que hoje vem caracterizando a sociedade das redes eletrônicas.

Mentira é logicamente a afirmação ou a negação de um fato que confunde deliberadamente o falso com o verdadeiro. Não é a mesma coisa que erro: “Um erro fala com duas vozes. Uma delas afirma o falso, mas a outra o desmente” (Benedetto Croce). Ou seja, o erro tem uma relação com a verdade. A mentira fala com uma única voz, seduzida por si mesma, por sua própria movimentação. A mentira pode trazer sérias consequências para a convivência humana, porque é um risco enorme para o diálogo.

Diálogo não é mera troca de palavras, mas sim abertura e ampliação do laço coesivo – por discurso e ações – com vistas ao fortalecimento do vínculo humano, portanto com fins políticos (no sentido amplo do termo) de cooperação, solidariedade e discernimento crítico. A própria etimologia desse termo agrega as acepções de “conversa” (dialogos) e “discernimento crítico” (dialogué). O prefixo dia conota uma atividade de “divisão” e de “travessia” por parte de um sujeito que visa superar uma distância apoiando-se na linguagem. O diálogo divide antes de unificar. Implica, antes de tudo, atravessar, superar ou transpor barreiras, com vistas a uma verdade consensual e vinculativa – logo, ética.

O princípio de Pinóquio, isto é, o princípio da mentira sistemática e deliberada, é uma ameaça séria ao diálogo social. Por isso, eu tenho evocado aqui e ali o alerta do alemão Hans Jonas: a dignidade e a responsabilidade do ser humano se encontram hoje em grande perigo. O perigo está no excesso de potência humana por meio de uma macrotécnica incapaz de avaliar os efeitos a longo prazo que ela suscita, ainda que involuntariamente. Um desses efeitos é a mentira.

O que atualmente favoreceria a mentira? Eu gostaria de apontar a vigência de uma “realidade paralela”, reconhecida em jornais, em entrevistas, em colunas. A rede eletrônica é o atual acabamento formal da realidade paralela (o bios virtual) paulatinamente construída pelas organizações de mídia desde meados do século XX em conjunção com as abstrações inerentes ao capitalismo financeiro. Nessa virtualidade paralela, antigas diferenças constitutivas da sociabilidade (por exemplo, a diferença entre critérios de verdade e de mentira) desaparecem em favor de uma discursividade amorfa, mais emocional do que argumentativa.

Isso contrasta com a velha idealização letrada ou “iluminista” de um horizonte progressivo do jornalismo na direção de uma textualidade apta a aumentar a capacidade de leitura crítica de um público determinado. Não apenas jornalistas, mas até mesmo pensadores de inspiração liberal ou pragmática têm apostado na possibilidade de um sistema informativo capaz de ampliar racionalmente a transparência dos grandes problemas sociais, abrindo caminho para uma democracia deliberativa. Do ponto de vista semiótico, é uma aposta na força constatativa do discurso, em que os signos linguísticos (as palavras) diretamente antenados com o mundo-referência legitimam os argumentos.

Entretanto, sob o império midiatizado da imagem-mundo, portanto sob o influxo dominante do sensório eletronicamente estimulado, não se trata mais de palavras, nem de argumentos, nem de mera apreensão lógica de fatos, mas de operações automatizadas –– desde o entendimento até o contato puro e simples –– em que o receptor se implica de corpo inteiro, sensorialmente. É o que ressoa na hipótese de uma “democracia das emoções”, antitética à antiga democracia das opiniões, que implica mudanças na natureza da informação pública.

Quanto ao jornalismo informativo ou opinativo stricto sensu, possível árbitro da distinção entre verdade e mentira, ocorre uma espécie de debilitação do contexto que, em termos de técnica textual, implica situar o fato num cenário capaz de indicar o caminho da significação verossímil, na medida em que narra o passado da ocorrência ou descreve situações análogas.

O que os ideólogos do ofício definem como “bom jornalismo” tem certamente a ver com o imperativo, ao mesmo tempo técnico e ético, de contextualização do fato. Agora, entretanto, numa semiose constituída por um fluxo eletrônico de imagens (tanto na televisão como na internet), moldada por um presente interminável ou por um agora convincente, o que se busca é o encadeamento veloz de aparências (ideias preconcebidas, clichês, preconceitos etc.) com um pano de fundo moral.

A passagem de um regime público de veridicção do fato baseado em evidências e testemunhos a um regime norteado por aparências factuais cristalizadas em imagens pode ser sinteticamente descrita como a passagem do publicismo crítico à publicização cenográfica do cotidiano social. O antigo empenho de se estabelecer –– e comunicar –– uma “realidade” objetiva dá lugar a uma teatralização ou, ao menos, a um jogo cênico dos fatos, que os torna indecidíveis sob o ângulo de uma verdade consensual e os deixa à livre escolha dos receptores, segundo a natureza diversa de constituição dos públicos de massa. Isso ajuda a explicar um aspecto do fenômeno da polarização social: um determinado público recusa-se a aceitar uma evidência factual em favor de sua adesão irracional a uma encenação adequada a seu desejo ou a sua particular opinião. Ou seja, a mentira pode ocupar aí o lugar de uma verdade.

Nessa constelação semiótica, o horizonte do jornalismo poderia consistir na sua própria reinvenção, com o concurso de aportes comunitários, supostamente capazes de revalorizar o polo da recepção: não a consciência liberal dos direitos civis, mas a emoção sensomotora que estaria agora dando a impulsão neuromuscular para que os corpos da cidadania ganhem as ruas em situações de protesto.

Seja qual for o caminho, o jornalismo se revela essencial para restaurar a potência da palavra diante do risco concreto que ela enfrenta num universo de mentiras. A palavra ainda detém a centralidade simbólica na formação da consciência cívica, indispensável ao funcionamento da democracia. Há em inglês a expressão action-word, a palavra concreta ou transitiva, capaz de se converter em ação social. Lembrar Osman Lins: “A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos e, capaz de muitos usos, é também a bala dos desarmados e o bicho que corrói as carcaças podres”.

Atenção, porém, ao risco de que a palavra se transforme num “pequi roído”. Vejam esta frase: “Todes se reuniram na espaça organizada pela mandata parlamentar”. Ortografia e sintaxe estão sendo estropiadas, a palavra me parece ameaçada de morte, apesar do jornalismo sempre vivo. Estamos longe da literatura para adultos. É como se Pinóquio tivesse assumido a língua. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº2/ 2021.

Leia Mais:

CROCE, Benedetto. La Letteratura della nuova Itália. Bari: Laterza, 1939.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.

LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973.