O monumento, a cidade e os homens

01/03/2021

“Magnífico”, “majestoso”, “monumental”: estes foram alguns dos adjetivos utilizados por Manoel Cícero Peregrino da Silva, então diretor da Biblioteca Nacional, para qualificar o edifício erguido na extremidade sul da recém-aberta Avenida Central na capital federal, entre os anos de 1905 e 1909, para abrigar a instituição que ele dirigia.

O centro da cidade do Rio de Janeiro vivia uma profunda reforma urbana, e a construção de um prédio novo para a Biblioteca — “isolado, vasto, incombustível, apropriado” — era uma demanda compartilhada por diretores, intelectuais e cidadãos comuns desde o século XIX. Era notória a inadequação do prédio localizado na Rua do Passeio, uma residência familiar adaptada em 1858 para abrigar a instituição, desde sempre sofrendo com a falta de espaço, o risco de incêndio, a escassez de ventilação e iluminação.

Foi necessário o impulso modernizador da gestão do prefeito Pereira Passos para que finalmente o pleito fosse atendido. No raiar do século XX, em plena Belle Époque tropical, na avenida que representava tudo isso, eis que surge imponente o “palácio dos livros”, “cuja fachada é uma das mais belas, grandiosas e serenas do Rio de Janeiro moderno”, conforme celebrou a escritora Júlia Lopes de Almeida, ou “uma suntuosidade desnecessária”, segundo Lima Barreto. Polêmicas à parte, o fato é que, desde que a presidência de Rodrigues Alves decidiu realizar a construção da nova sede, a importância simbólica e a ordem de grandeza da empreitada eram compreendidas por todos. O projeto do engenheiro Francisco Marcelino de Souza Aguiar, idealizador de outros tantos edifícios do entorno, exigiria uma engenharia complexa por sua sofisticação arquitetônica e ornamental. Nada mais justo para a instituição que, às vésperas de completar seu primeiro centenário, era compreendida como o “repositório do saber humano, centro da cultura e do progresso”, nas palavras de seu diretor.

Essa imagem de instituição “monumentalizada” seria reforçada e reelaborada ao longo da história, nas mais diversas narrativas. É o caso do Álbum da construção da Biblioteca Nacional na Avenida Rio Branco. Trata-se de uma série de 44 fotografias, encadernadas em volume único, que registra em detalhes as obras do edifício, desde a fixação das primeiras estruturas até as proximidades de sua finalização, organizadas em ordem cronológica. O álbum teve atribuída a datação de 1909 e recebeu o primeiro registro de patrimonialização em 1911, em anotação a lápis na contracapa da encadernação. Numerações manuscritas, algumas delas riscadas e substituídas, mostram que o volume “passeou” pelos espaços de armazenamento ao longo do tempo, estando hoje abrigado no cofre do seu setor de guarda, na Divisão de Iconografia, junto com outras peças de inestimável valor. O amplo acesso à obra está garantido através da plataforma Biblioteca Nacional Digital, que oferece também o recurso de ampliação das imagens até os mínimos detalhes, sem perda de nitidez.

Segundo o registro catalográfico, o álbum foi doado pelo primeiro-tenente Alberto de Faria, provavelmente após a entrega do edifício. Engenheiro militar, ele atuou como auxiliar do engenheiro responsável pela obra, Nicolau Alexandre Moniz Freire. Seus nomes estão perpetuados em uma das duas placas comemorativas da data afixadas no vestíbulo, ao lado de personalidades como o presidente, o ministro da Justiça e Negócios Interiores e o autor do projeto.

Não se conhecem as circunstâncias burocráticas da produção do álbum, que, até onde foi possível apurar, não possui cópias. Não há folha de rosto, dedicatória ou qualquer outro elemento textual que o apresente. A capa é lisa, sem títulos ou ornatos. Embora as fotografias possam ter sido tiradas pelo próprio doador, essa hipótese é improvável, pois naquele tempo a atividade era exercida quase apenas por profissionais. A fotografia já era amplamente difundida e valorizada no Brasil, mas os equipamentos dificilmente estavam acessíveis para práticas amadoras e recreativas. Além do custo, para obter um bom “instantâneo” demandava-se uma preparação prévia, instalação de equipamento, enquadramento, tempo de exposição versus iluminação e, por fim, o processo de revelação. Quem quer que tenha clicado aquelas fotos, teve acesso ao canteiro de obras, inclusive às áreas internas e aos pisos cada vez mais elevados, o que indica apoio de alguma autoridade interna. Contou também com a colaboração dos operários, generosamente fotografados em vários planos. A série de registros mostra consistência técnica e estética, mantendo o mesmo padrão da primeira à última imagem.

O documento visual oficial que apresenta o prédio da Biblioteca já pronto e em atividade, intitulado Álbum contendo 40 fotografias da B.N, de 1911, tem uma apresentação completamente distinta, contendo índice e capa impressos e molduras nas fotos. Este é um indício de que o álbum que analisamos não foi previsto como publicação oficial da direção da Biblioteca. Ainda assim, pode ser considerado um projeto de memória de longo prazo, mesmo que de iniciativa individual: um conjunto de registros imagéticos de uma aventura arquitetônica que levaria um tempo considerável para se completar.

Ao ser doado e salvaguardado pela instituição, tornou-se uma peça da memória institucional. Segundo Ana Maria Mauad, “parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente, como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado — condições de vida, moda, infraestrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento: se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo”.

Sob a perspectiva material e simbólica, três elementos se destacam no conjunto: o edifício, sua inserção no espaço urbano e os personagens. As imagens da construção lembram a famosa série fotográfica das obras de arranha-céus de Nova Iorque no começo do século XX, com os trabalhadores da construção civil em cima de estruturas metálicas gigantescas. Essa semelhança é enfatizada pelo The Brazilian Review, um jornal carioca editado em inglês por um homem de negócios britânico: “O […] esqueleto do prédio da nova Biblioteca Nacional na Avenida está sendo erigido nos moldes de uma construção novaiorquina. […] Lembramo-nos uma vez em Nova Iorque de ver um prédio na 5ª Avenida […]. Um dia ele era uma estrutura metálica, como um quebra-cabeça todo preto, e dois dias depois era uma boa e imponente casa”.

A fotografia que abre o Álbum mostra o esqueleto da estrutura de ferro em fase inicial de montagem, chegando ao terceiro andar, do total de cinco. Várias imagens privilegiam em detalhes as colunas de ferro, com suas juntas e imensos parafusos, o que revela a preocupação do fotógrafo com o registro da técnica empregada em um prédio não só destinado a comportar um peso muito maior que as construções comuns, mas também onde o risco de incêndio é uma ameaça permanente. Nenhuma parte estrutural da nova sede foi feita em madeira, nem mesmo o telhado, o que é louvado pelo preocupado diretor.

Folheando o álbum, acompanhamos a progressão da obra. Abusando das fotografias em perspectiva, uma marca estética da série, vemos o “esqueleto” crescendo lateral e verticalmente até atingir a altura do telhado, onde é possível reconhecer a estrutura da claraboia central, as coberturas das alas laterais e o topo dos torreões circulares localizados nas extremidades. Aos poucos, os espaços da estrutura vão sendo preenchidos por grossas paredes de tijolos e tomam forma os arcos das janelas, as aberturas de ventilação dos armazéns e os pisos entre os andares de pé direito triplo, mostrados a partir da perspectiva dos vãos centrais dos armazéns, projetados para receber, posteriormente, três andares de estantes de ferro e assoalhos de vidro que facilitavam a iluminação. Ao centro, erguem-se as colunas da varanda do terceiro piso e, acima, o telhado triangular que, mais adiante, servirá de moldura para o frontispício.

Curioso perceber que a parte de trás do edifício, onde ficaria o salão principal de leitura, só ganha corpo depois que o bloco frontal já está bastante adiantado. Pode ter sido apenas uma questão de cronograma, mas aquela era justamente a parte do edifício que não estava prevista no projeto original. Depois de apresentado é que o diretor solicitou um pavilhão separado, sem estantes, com capacidade para 200 leitores. Ou seja: surpreendentemente, até então, seria uma biblioteca sem um salão de leitura principal. Em compensação, talvez seja possível afirmar sem muita hesitação que esta ala adicional ganhou o mais belo projeto de arquitetura interna da Biblioteca.

Característica digna de nota é o fato de os enquadramentos sempre mostrarem o entulho da obra. Cordas, pedaços de madeira, vergalhões de metal, pedras, telhas, baldes de cimento e argamassa, montanhas de tijolos e outros vestígios espalhados no chão, nos andaimes, lajes, janelas, telhados e até mesmo na rua, sugerem certa dose de caos. Há peças de roupas dos operários penduradas por toda parte. De forma paradoxal, a série estampa um ambiente distante da assepsia e da ordem que simbolizavam o projeto de remodelação da capital.

As últimas fotografias trazem enquadramentos mais amplos da obra grandiosa. O revestimento externo, com seus rebuscados ornamentos em estilo eclético, está apenas começando a ser aplicado sobre os tijolos, cobrindo de cima para baixo as paredes da fachada. Já é possível ver balaustradas e cornijas do último andar. A fotografia nº 21 mostra mesas com mísulas e capitéis à espera de fixação. Porém, ainda há muito o que fazer: não há esquadrias e janelas, portas, revestimentos internos, tampouco a cúpula de cobre e as claraboias. O telhado da ala esquerda permanece vazado e os andaimes ainda abraçam inteiramente o perímetro da edificação.

A longa obra, cuja demora se torna motivo de piada nas revistas, havia passado a fazer parte do dia a dia dos cariocas. O fotógrafo, nas últimas imagens, tiradas do passeio do Convento da Ajuda, registra alguns aspectos desse cotidiano de espera, em meio a tantas inaugurações ao longo da avenida. Dois homens sentados nos bancos da praça parecem observar pacientemente o monumento inacabado, enquanto outras pessoas circulam indiferentes. A imagem que encerra o álbum enquadra o prédio inteiro, mostrando em primeiro plano os pedestres, duas mulheres, alguns homens, uma charrete, um mascate que caminha com uma cesta equilibrada na cabeça. No portão de entrada do canteiro de obra, é presença constante um vendedor com duas vitrines de quitutes que, quando possível, descansa sentado no chão, à espera de clientes. Um grupo de operários faz reparos no calçamento da avenida recém-inaugurada. Ao lado, pende uma placa muito simples, pequena e modesta, que esclarece aos desinformados do que se trata: “Obras da Biblioteca Nacional”.

Essa sequência de fotos situa a Biblioteca no espaço da urbe. Nas primeiras imagens, os vãos da estrutura revelam o Pão de Açúcar ao fundo, o mar surpreendentemente próximo, de um tempo anterior ao aterro da praia de Santa Luzia e Ponta do Calabouço. Vemos os Arcos da Lapa, o morro de Santa Teresa e, mais adiante, o Outeiro da Glória. No outro lado da Avenida, os novos postes de iluminação elétrica dividem espaço em canteiros centrais com árvores esmirradas recém-plantadas, enquanto o Convento da Ajuda vive seus últimos momentos. Ele seria demolido em 1911, abrindo espaço para o parque de diversões de Francisco Serrador na futura Cinelândia. A essa altura, os passeios de pedra portuguesa já estão concluídos, com seus desenhos de ondas, mais estreitas do que as que seriam vistas em breve em Copacabana. Na fotografia de número 14, vê-se o Palácio São Luiz, futuro Monroe, projeto premiado de Souza Aguiar para abrigar o Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de St. Louis, em 1904. Por cima do telhado da ala direita, aparece o vasto casario do Centro, no qual desponta a cúpula do Theatro Municipal, inaugurado em 1909. Por fim, emoldurando a Biblioteca, o Morro do Castelo já rasgado para ceder espaço aos edifícios e ao novo traçado das ruas. Nos anos seguintes, quando chovia, ainda desceria lama para os fundos da Biblioteca, causando preocupação em relação à conservação do acervo. A demolição do morro seria completada apenas no começo da década de 1920, e ele daria lugar às instalações da Exposição do Centenário da Independência.

Os operários da obra são, de fato, os protagonistas do álbum. Nesse ponto, o conjunto de imagens difere bastante dos dois documentos fotográficos da instituição feitos em momentos próximos. O Álbum de vistas da Bibliotheca Nacional, de 1902, que retrata as instalações do prédio antigo, e o já citado Álbum contendo 40 fotografias da B.N., de 1911, mostram em geral ambientes desertos, estáticos e absolutamente ordenados e limpos. O Álbum da construção… carrega outro tom: é um retrato sensível daqueles trabalhadores no tempo e no espaço — invariavelmente portando chapéus de aba curta ou bonés, vestidos com roupa geralmente clara ou de riscado, em calças de algodão folgadas que cintos ou cordões impedem de cair, em mangas de camisa de tecido ou malha, raros coletes e nenhum paletó, calçando botinas ou apenas tamancos de couro de enfiar nos pés, daqueles que deixam os calcanhares expostos. Com cigarro no canto da boca, frequentemente emoldurada pelo bigode, eles descansam nos canteiros suspensos a quatro andares de altura, nos pisos internos, nos andaimes, na cobertura. Entre pás, baldes, cordas, roldanas, marretas e outras ferramentas, são flagrados nas mais diversas tarefas.

No trabalho ou no descanso, a maioria é clicada olhando diretamente para a câmera, mesmo quando ela está distante. De pé, um senhor em postura altiva sustenta uma pá na parede que está fazendo subir e ensaia um sorriso discreto. Outro, sentado ao lado de um amontoado de tijolos e um balde de cimento, mostra a mão esquerda protegida por uma atadura e encara o fotógrafo com uma expressão cansada. Na laje de um dos andares internos, uma dezena de trabalhadores posa lado a lado para o fotógrafo distante, olhando diretamente para a câmera, alguns sérios, outros com tímidos sorrisos, mas a postura de todos confere um ar de solenidade ao momento. Talvez se orgulhem do serviço. Um registro raro de homens comuns no árduo cotidiano da construção civil.

Como um monumento em muitas camadas, a Biblioteca Nacional conserva outros monumentos em seu acervo. Feito como registro de memória de um projeto ambicioso e perenizado pela salvaguarda institucional, o Álbum da construção da Biblioteca Nacional ressignifica-se como documento/monumento, sob o olhar do historiador. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº1/ 2021.

Referências Bibliográficas:

Biblioteca Nacional. [Álbum da construção da Biblioteca Nacional na Avenida Rio Branco]. Rio de Janeiro, RJ : [s.n.], 1909. 44 fotos : gelatina, pb ; 25,4 x 37. Notas Gerais: Doação do 1º Tenente Alberto Faria. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/ icon326081/icon326081.pdf

MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: estudos sobre história e fotografias. Niterói:EdUFF, 2008, p. 37.

The Brazilian Review. Rio de Janeiro, 30 out. 1906, p. 995. Tradução livre.