Curadoria Algorítmica

01/03/2021

O impacto da pandemia da Covid-19 nos setores culturais e criativos é um fato consolidado. O contexto envolve shows cancelados, cinemas fechados e trabalhadores dos setores culturais sentindo o impacto financeiro. Em 2020, 48,8% dos agentes culturais perderam 100% da sua receita entre maio e julho, de acordo com a pesquisa “Percepção dos impactos da Covid-19 nos setores cultural e criativo do Brasil”. Práticas de criação, produção e consumo nessas áreas foram alteradas significativamente, apontando para o consumo de conteúdo cultural em ambientes digitais e para uma relação direta com as plataformas de entretenimento — hábito que deve ser mantido mesmo após a reabertura dos espaços culturais, como indica pesquisa divulgada pelo Itaú Cultural e DataFolha em 2020.

A intensificação dos usos de plataformas digitais foi consequência direta das medidas de restrição de circulação das pessoas como forma de prevenção da disseminação do coronavírus. O Painel TIC Covid-19 — elaborado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) ligado ao Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br) — mapeou os usos da internet no país durante o distanciamento social motivado pela pandemia entre junho e julho de 2020. A partir de um desenho amostral de 95 mil indivíduos, com idade igual ou superior a 16 anos, a pesquisa revelou que, entre os usuários de internet no Brasil no período considerado: 49% realizaram atividades de trabalho na internet; 72% buscaram informações relativas à saúde na internet; 43% pagaram por serviços, filmes ou séries em streaming; 64% acompanharam transmissões ao vivo em áudio ou vídeo; 66% realizaram compras online de produtos ou serviços; 46% utilizaram aplicativos de mensagens instantâneas para mediar a compra de produtos e serviços.

Em relação à intensificação do uso de plataformas de streaming de filmes, o campo de estudos sobre consumo enfrenta um desafio. Isto porque os sistemas de recomendação inerentes a esse tipo de plataforma produzem uma concepção de consumo personalizado que deve ser problematizada, principalmente se levarmos em conta abordagens de consumo que o relacionam com produção de sentido e com identidade. Plataformas de streaming permitem acesso a uma vasta biblioteca de conteúdo a um preço fixo por mês ou, quando subsidiados por publicidade, gratuitamente. Há plataformas que oferecem conteúdo em forma de música (Spotify, Deezer, Tidal, etc.), filmes/séries (Netflix, Amazon Prime Video, Hulu, etc.), jogos (Twitch, HitBox, Beam, Azubu, etc.), entre outros tipos. O sistema de streaming diz respeito a um tipo de consumo de bens informacionais que não necessariamente envolve a posse dos arquivos: um servidor armazena os conteúdos, que são acessados sob demanda. E é aqui que entra o sistema de recomendação, um dos principais aspectos que diferenciam o consumo on-line do off-line.

Os sistemas de recomendação se relacionam com as duas formas pelas quais as plataformas de streaming obtêm receita: venda de assinaturas e venda de anúncios de publicidade. No primeiro sentido, trata-se de direcionar conteúdos considerados relevantes para os usuários, de forma a mantê-los ativos na plataforma. No segundo sentido, a finalidade é endereçar anúncios que pretensamente interessem aos usuários e, com isso, motivá-los a comprar, clicar, baixar algo. Nos dois casos, é absolutamente necessário que os usuários estejam ativos nas plataformas, uma vez que esse endereçamento de conteúdo e de publicidade é acionado pelos dados coletados nas atividades dos consumidores dentro e às vezes até mesmo fora das plataformas. Chama-se “dataficação” o padrão de extração de dados das atividades dos usuários para posterior conversão em valores sociais e econômicos, que influencia a construção de filtros e recomendações para dar visibilidade a determinados conteúdos, o que direciona novos modelos de negócios e práticas de governança.

O consumo de produtos culturais tem características específicas. O pesquisador Robert Prey, da Universidade de Groningen, na Holanda, destaca que a música auxilia o ouvinte a perceber a si próprio enquanto indivíduo, uma vez que se conecta com seu cotidiano, memória, aspirações e identificação com determinados grupos sociais. O mesmo pode ser dito em relação a filmes, séries e jogos. Os sistemas de recomendação das plataformas de streaming interferem diretamente na disponibilização desse tipo de conteúdo aos usuários, a partir de uma promessa de acesso a consumo personalizado. Diversos autores que analisaram plataformas de streaming são unânimes em afirmar que o processo de recomendação de conteúdos leva tantas variáveis em conta que, de fato, é impossível que o resultado seja tão personalizado quanto se pretende. Ainda assim, uma série de camadas de software e hardware busca capturar a individualidade dos usuários sob a forma de “tipos mensuráveis”, ou seja: uma caricatura informada pelos dados considerados úteis pelas plataformas, resultantes de nossas atividades on-line.

Por sua capacidade de permitir, motivar e moldar o consumo contemporâneo, as plataformas digitais criaram uma dinâmica identificada com o neologismo plataformização. O fenômeno vai além do setor cultural, uma vez que a produção e distribuição de notícias e conteúdos precisam se ajustar às possibilidades apresentadas nas plataformas infraestruturais (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), sempre em transformação, o que articula tais processos com macrodimensões econômicas e políticas que impactam diferentes esferas da vida.

Pesquisas específicas evidenciam os efeitos do processo de plataformização do consumo durante a pandemia da Covid-19 em regiões delimitadas — como a que atualmente realizamos no Rio Grande do Sul. Por outras palavras, busca-se compreender de que forma as plataformas de streaming moldam a percepção que os usuários têm de si a partir desse consumo. É evidente que, neste caso, o próprio conceito de consumo digital precisa ser adaptado em função da perspectiva da plataformização. Mais do que considerá-lo apenas uma prática que envolve acesso, produção e compartilhamento de conteúdo digital, e sua relação com a performance pessoal dos usuários, toma-se como ponto de partida a relação entre os usuários e o consumo em plataformas digitais durante a pandemia.

Ao analisarmos os resultados da pesquisa “Covid-19 e os impactos na Indústria Criativa do Rio Grande do Sul” (2020), podemos observar que a plataformização da produção cultural é um fenômeno em evidência — um movimento que precede a pandemia, mas que se torna mais visível nesse período. Os dados refletem as respostas de 248 participantes de diversas regiões do estado, sobre questões relacionadas ao consumo audiovisual em plataformas de streaming, música, lives e jogos digitais.

Em relação aos conteúdos audiovisuais, a maioria dos respondentes (62,8%) afirma que a frequência de uso desses serviços aumentou durante a pandemia. Netflix (91,7%) e Amazon Prime (43%) figuram como as plataformas mais assinadas pelos respondentes. Com relação à frequência de uso, grande parte (38%) consome entre 1 e 6 horas por semana, seguida por aqueles que afirmam consumir de 8 a 14 horas semanais (33%). O período de maior consumo apontado foi entre 19h e 23h — pode-se inferir, nesse caso, a prevalência de um “horário nobre”. O consumo é ativo: a maioria dos respondentes afirma pesquisar em locais específicos (75,2%) ou seguir indicações (46,3%) para escolher o conteúdo que assiste. Séries, filmes e documentários são os principais gêneros e a televisão segue como o suporte preferencial.

O consumo de música tem como plataforma preferencial o Spotify (81,1%) e o smartphone é o dispositivo escolhido pela maioria dos respondentes (76,2%). Cabe ressaltar que sob esse aspecto a indicação é de que a frequência do consumo permaneceu igual para 47,1% dos respondentes — fato que pode estar relacionado à possibilidade de consumo enquanto desempenha outras tarefas no dia, sem a necessidade de um foco específico para tal, como ocorre com o audiovisual.

Já no caso das lives, a pesquisa confirma o aumento do interesse por esse tipo de conteúdo, por sinal preconizado pela mídia em reportagens e comentários de especialistas. O YouTube foi a plataforma mais lembrada (82,5%), e as lives de conteúdo musical foram as mais consumidas (62,1%) via smartphone (43,6%). Assim como no audiovisual, o horário preferencial para o consumo foi entre 19h e 23h e, nesse caso, as plataformas de redes sociais têm um papel preponderante: mais de 80% dos respondentes tomam conhecimento das lives por meio delas — e durante o consumo há ainda a interação com amigos e/ou familiares via aplicativos de mensagem (43,6%). Com relação aos jogos digitais, a maioria dos respondentes adeptos à prática (71,4%) relatou aumento no consumo durante a pandemia.

Para identificar o processo de plataformização desse tipo de consumo, a pesquisa avançará para a fase qualitativa com a aplicação de um modelo ancorado na abordagem conhecida como Teoria de Prática. Nessa concepção, as práticas são reconhecidas como a configuração de uma série de dinâmicas relacionadas e podem ser definidas, nas palavras do sociólogo Andreas Reckwitz, como “um tipo de comportamento rotinizado que consiste em vários elementos interconectados entre si: formas de atividades corporais, formas de atividades mentais, ‘coisas’ e seus usos, conhecimento prévio na forma de entendimento, habilidade para saber fazer algo, estados de emoção e conhecimento motivacional”.

A partir disso, o modelo leva em consideração a observação dos aspectos materiais (como os objetos, a multiplicidade de telas, os algoritmos e os sistemas de recomendação), as competências (ligadas às habilidades necessárias para o acesso e navegação, atenção e a capacidade de consumo do conteúdo em múltiplos suportes) e os significados atribuídos à prática analisada — de forma a localizar impressões sobre si e sobre os outros em função do consumo de determinado conteúdo. Somam-se a isso outros aspectos como a interação, o engajamento com as plataformas, o processo de socialização viabilizado, tempo e espaço em que as práticas ocorrem.

Torna-se portanto imprescindível a fase qualititativa da pesquisa, que relaciona os dados já obtidos a entrevistas em profundidade com os usuários, para a verificação do processo de plataformização propriamente dito, ou seja, da forma como os participantes se apropriam das plataformas de streaming. Certamente as respostas nos ajudarão a colocar em perspectiva questões relacionadas à dependência do consumo e produção cultural em relação a um grupo específico de plataformas, e ao impacto disso em novas rotinas estabelecidas e na alteração do ecossistema midiático. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº1/ 2021.

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Leia Mais:

Pesquisa “Percepção dos impactos da covid-19 nos setores cultural e criativo do Brasil”. Disponível em : https://iccscovid19.com.br/.

Pesquisa Itaú Cultural/ DataFolha: https://www.itaucultural.org.br/secoes/noticias/datafolha-lancam-pesquisa-sobre-habitos-culturais.

Pesquisa Covid-19 e os impactos na Indústria Criativa do Rio Grande do Sul : www.feevale.br/industriacriativars.