Uma nova visão da história eventual

01/03/2021

Abalados, assim como os outros cidadãos, pela crise atual, os historiadores estão questionando alguns dos fundamentos do seu ofício. Pessoalmente, encontro-me a repensar a noção dos eventos e sua relação com a consciência coletiva — um conceito amorfo, admito, porém uma força poderosa na história, que deve ser distinguida da opinião pública e que merece ser mais estudada.

Testemunhamos opiniões públicas muito diversas em 2020. Os norte-americanos se posicionaram em discussões sobre o uso de máscaras de proteção, o auxílio aos desempregados, a participação em manifestações e os monumentos à “causa perdida” da Confederação, sem mencionar os políticos. Apesar de nossas diferenças, no entanto, nós compartilhamos uma noção geral de crise. Fomos varridos por uma ansiedade coletiva sobre a direção do país e uma necessidade generalizada de reavaliar o seu passado. Sejamos ou não a favor da remoção ou preservação de estátuas, reconhecemos que a paisagem simbólica está passando por uma mudança fundamental.

Embora os historiadores tenham se dedicado frequentemente a estudar os desastres e seus efeitos, eles não fizeram justiça, na minha opinião, à maneira pela qual os eventos transformam os ambientes simbólicos. Os eventos não chegam nus à esfera pública. Eles vêm vestidos com atitudes, valores, disposições mentais, lembranças do passado e projeções para o futuro, cheios de paixão, esperança e medo. Uma história dos eventos deve incluir a maneira pela qual os eventos foram absorvidos pelas visões coletivas do mundo.

Uma dificuldade, pelo menos para nós que nos dedicamos a estudar a França, é o desdém pela “história dos eventos” entre os historiadores da escola dos Annales no ápice de sua influência após a Segunda Guerra Mundial. Para eles, ela era superficial — a espuma que flutuava na superfície do passado, em oposição às correntes profundas que dirigiam sociedades inteiras. Um entendimento mais aprofundado da história só poderia ser obtido pelo estudo do jogo entre a estrutura e a conjuntura ao longo de grandes extensões de tempo. Na prática, isso geralmente significava a construção de séries estatísticas que indicavam o formato de uma sociedade à medida que ela evoluía ao longo dos séculos — padrões em estruturas demográficas, econômicas e sociais.

Por volta da década de 1960, os Annalistes também abriram espaço para “a história das mentalidades”, mas essa também tendia a ser abstrata e estatística. Ao mesmo tempo, os historiadores britânicos liderados por E. P. Thompson demonstraram a importância do entendimento da “história a partir de baixo”. Historiadores norte-americanos, como Eugene Genovese, responderam com estudos aprofundados semelhantes de movimentos sociais. Desenvolvia-se um ethos profissional: quanto mais profunda a história, melhor.

Muito já aconteceu desde aqueles dias, inclusive tentativas (notavelmente de Pierre Nora) de reviver a história dos eventos, que os profissionais haviam deixado para aqueles que queriam popularizá-la, entre eles alguns historiadores muito talentosos, como Barbara Tuchman e David McCullough. Diferentemente da história social mais antiga, no entanto, o trabalho recente não aborda o problema da compreensão de estados mentais coletivos.

Embora “o imaginário coletivo” seja um termo comumente usado, ele deixa alguns de nós desconfortáveis. O seu caráter vago é angustiante. O termo evoca outras ideias amorfas como “mentalidade”, “clima de opinião”, “ethos” e o venerável, mas desgastado, zeitgeist. Apesar de sua inefabilidade, no entanto, penso que essas ideias possuem um poder conceitual, e que elas podem auxiliar na tentativa de repensar a história dos eventos.

As visões coletivas certamente existem. Elas são de alguma forma semelhantes à linguagem: nós compartilhamos um idioma comum, embora falemos com sotaques e entonações pessoais diferentes. Contudo, elas não podem ser estudadas da mesma maneira que a política e a economia — ou seja, assumindo-se que o assunto não apresenta problemas e com métodos que, se empregados de forma acrítica, equivalem a pouco mais que positivismo intuitivo. Como a história da consciência coletiva pode ser estudada com rigor conceitual?

Poderíamos começar com a percepção de Claude Lévi-Strauss de que algumas coisas são boas para se pensar. As pessoas comuns carregam uma grande quantidade de bagagem mental em torno de si — parte dela explicitamente doutrinária, como o Credo Niceno ou o Juramento à Bandeira, mas a maior parte dela é implícita, como em algumas variedades do racismo. Geralmente, nós não conectamos proposições em sequências lógicas à medida que conduzimos os nossos afazeres diários. Em vez disso, nós ruminamos os eventos — tanto as ocorrências pequenas limitadas à vizinhança, quanto às ocorrências maiores que atingem a consciência de todos no país e, às vezes, de praticamente todos no mundo.

Este último tipo de evento se tornou familiar. Os norte-americanos conhecem essa sensação a partir de suas experiências com os assassinatos do presidente Kennedy e de Martin Luther King Jr., do 11/9 e, no momento em que escrevo, dos efeitos combinados do coronavírus, do colapso econômico e da repulsa contra o racismo.

O esforço para compreender esse tipo de experiência coletiva pode se beneficiar da sociologia de Gabriel Tarde, que desenvolveu uma teoria controversa da imitação como uma força social geral e aplicou-a à experiência de leitura diária dos jornais. Tarde escreveu no final do século XIX, quando os leitores normalmente consultavam os jornais em cafés. As suas visões políticas variavam enormemente, enfatizava Tarde, mas eles estavam conscientes de que liam sobre os mesmos eventos ao mesmo tempo que outros leitores em outros cafés, participando, dessa forma, de uma consciência comum. Benedict Anderson adotou uma visão semelhante em Comunidades Imaginadas. O nacionalismo, argumenta, se desenvolveu em sociedades coloniais a partir da experiência coletiva da leitura — ou seja, a partir da sensação de pertencimento a uma coletividade imaginada e não meramente da mensagem de alguns livros específicos.

A ‘frame analysis’ de Erving Goffman complementa essas percepções com um relato de como os grupos interpretam a realidade. Em A Representação do Eu na Vida Cotidiana, ele mostra como o comportamento interativo envolve a teatralidade, mesmo em situações comuns, como pedir uma refeição em um restaurante. Isso não significa que os participantes simplesmente desempenham papéis, argumenta Goffman, mas que, ao fazer isso, eles definem o que a situação efetivamente é. Quando assistimos a uma apresentação do Rei Lear, compartilhamos com a plateia a experiência comum de testemunhar uma tragédia, mesmo que a nossa avaliação e a nossa interpretação desta tragédia sejam diferentes das dos outros. O jaleco branco e a atitude profissional dos farmacêuticos dizem aos seus clientes que a venda de medicamentos é uma questão de fornecer alívio científico para um problema de saúde; não se trata simplesmente de uma transação comercial. De uma interação a outra, nós estamos constantemente moldando a realidade.

A minha própria pesquisa sobre a emergência do que chamo de ânimo revolucionário em Paris de 1749 a 1789 fornece um exemplo histórico. Recentemente, completei um trabalho sobre os eventos de 1788, com o uso de correspondências, diários, jornais e jornais clandestinos que continham relatos sobre os acontecimentos durante quase todos os dias do ano. Diferentes opiniões apareciam em toda parte, contudo um senso comum de crise emergia das notícias diárias, sendo elas comunicadas por panfletos, fofocas, vozes de rua ou “ruídos públicos”. Da forma como os contemporâneos a percebiam, a crise se reduziu a uma ameaça de opressão que eles definiram como despotismo ministerial.

Com base no trabalho de outros que estudaram o discurso ideológico, a estrutura social e a cultura material, eu espero mostrar como os eventos se tornaram vinculados ao desenvolvimento de um ânimo revolucionário — ou seja, uma visão de mundo radicalizada que ia além da opinião pública. Relatos contemporâneos dos eventos expressavam uma concepção difundida de que a vida pública estava sendo dominada pelo despotismo. Essa concepção assumiu forma concreta nas ruas, por meio de discursos, rumores, canções, pôsteres, graffiti, revoltas e cerimônias, como a queima de espantalhos vestidos de forma a representar os ministros. Alguns poucos intelectuais discordavam, mas este sentimento avassalador era dirigido contra o governo (e não o rei) no mundo alheio de Versailles.

Não desejo simplificar demasiadamente a complexa historiografia da Revolução Francesa, mas, em vez disso, desejo sugerir uma forma alternativa de compreensão do colapso do Ancien Régime. A legitimidade do regime foi minada por algo mais amplo e mais poderoso do que as mudanças transitórias da opinião pública. Esse impulso revolucionário era um senso compartilhado de pertencimento a uma comunidade — ou seja, uma nação, que tinha o direito de afirmar a sua autoridade na determinação do destino do Estado. Essa ideia pode ser encontrada em muitos dos panfletos de 1788 e em trabalhos de vários filósofos, particularmente Rousseau. Mas a consciência revolucionária não foi formada meramente pela difusão de ideias, por mais importante que isso tenha sido. Ela se cristalizava coletivamente à medida que os parisienses recebiam relatos de ocorrências cotidianas.

A percepção dos eventos foi, portanto, tão importante quantos os eventos em si. Na verdade, era inseparável deles. Aqueles que tinham um alto nível de educação formal aprendiam com os livros, mas a população como um todo achava particularmente bom pensar sobre os acontecimentos. Acredito que uma nova concepção da história dos eventos possa abrir o caminho para uma história da consciência coletiva. ///

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº1/ 2021.

Leia Mais:

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 2012 .

GOFFMAN, Erving. Quadros da experiência social: Uma perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.

TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia: e outros ensaios. São Paulo: Editora UNESP, 2018.