Mídia e Memória

01/03/2021

Desde o hoje longínquo ano de 1993, quando pela primeira vez publiquei um texto mais complexo sobre a relação mídia e memória, venho me dedicando a compreender os múltiplos processos encharcados de passado que envelopam (e, por vezes, determinam) as ações midiáticas. O objetivo era sempre o de produzir articulações conceituais que aproximavam (ou distanciavam) comunicação e história. História entendida, sobretudo, na sua dimensão de historicidade, ou seja, de ação humana produzindo trilhas de existência, em tempos vividos (ou expectativas de porvir), na articulação passado, presente e futuro.

Nessas reflexões, a questão teórica da memória teve destaque em diversas problematizações: a memória do público como inscrição narrativa dos eventos do passado; os usos do passado como estratégias narrativas dos meios de comunicação; a evocação do passado para intensificar o presente nas edições comemorativas, por exemplo; a eternização de idealizações deste mesmo passado; as políticas de esquecimento nas narrativas midiáticas — com destaque, como acontecimento símbolo, para o mundo dos escravizados brasileiros.

Num primeiro momento as pesquisas dialogavam com o que hoje é reconhecido como a “segunda onda” dos estudos de memória, inaugurada com reflexões decorrentes dos aportes teóricos de Maurice Halbawachs, para quem o fenômeno memorável só existe a partir de grupos sociais preexistentes, como no trabalho de Pierre Nora (1984-1993). Ao lado dessa filiação teórica, também se aproximavam dos trabalhos que consideram fundamental a dimensão do esquecimento na formulação memorável, como emblema da condição histórica e das proposições de uma memória enredada em laços culturais. A obra monumental de Nora tornou-se síntese a partir dos anos 1990, ganhando internacionalmente onipresença nos estudos de memória. No Brasil não seria diferente. Depois da tradução da introdução do volume que inaugurou a coleção Les lieux de mémoire (1984) observa-se a explosão dos estudos sobre o tema em várias áreas de conhecimento.

Outra consequência da onipresença dos aportes conceituais de Pierre Nora e da multiplicação de estudos em torno do memorável foi a utilização da história oral e do recurso aos depoimentos como maneira de operacionalizar metodologicamente as pesquisas, bem como a inclusão de dimensões reflexivas como a identidade na sua articulação com o memorável ou a questão da memória posicionada, tal como aparece nos textos de Michel Pollak.

Nesta “segunda onda” situam-se também as reflexões de Jan Assmann, com o conceito de memória cultural, estabelecendo diálogo crítico com as proposições de Maurice Halbawachs ao distinguir três níveis operativos para a memória: o individual, o comunicativo e o cultural. O primeiro seria relacionado ao neuromental, o segundo ao social — ou seja, a pessoa enquanto portadora de papéis sociais — e o terceiro e último atrelado há um tempo histórico, mítico e cultural. Assim, Assmann preserva a distinção de Halbwachs ao particularizar o conceito de memória coletiva, mas introduz a esfera cultural, não considerada por ele.

Para Jan Assmann, memória coletiva e memória cultural são diferentes modos de lembrar. A memória cultural pode ser transferida de uma situação a outra e de uma geração a outra. Assim, objetos da cultura material e eventos símbolos de uma trajetória produzem a conexão entre uma mente que lembra e um objeto que faz lembrar. As coisas podem nos fazer lembrar, “porque carregam as memórias de que as investimos”. Também no nível social os símbolos externos tornam-se importantes, fazendo com que grupos reúnam e signifiquem “coisas que funcionam como lembranças” — sejam os museus, os arquivos, as bibliotecas e outras instituições mnemônicas, como os meios de comunicação. Enquanto a memória cultural requer instituições de preservação, a comunicativa seria corporizada na sequência de gerações.

A memória comunicativa não tem, para ele, caráter institucional, ou seja, não é mantida por instituições que visam “ensinar, transmitir ou interpretar; não é cultivada por especialistas e não é convocada ou celebrada em ocasiões especiais”. Tem profundidade de tempo limitada e é moldada pelas estruturas, tradições de comunicação e laços afetivos que ligam famílias, grupos e gerações. As comunicativas são, portanto, memórias que compartilhamos com os nossos contemporâneos, que normalmente emergem nas entrevistas de história oral e que comportam as lembranças e esquecimentos de uma sequência máxima de até três gerações.

Já a terceira grande linha teórica dos estudos de memória tem seu ponto inflexivo em 2000, com a publicação, na França, da obra de Paul Ricoeur, entrelaçando memória, história e esquecimento, com sua singular fenomenologia da memória, que somada às revisões anteriores irá construir a base de futuras reflexões.

A proposição central desses novos estudos de memória, enfeixados como uma “terceira onda”, é de que todo ato de rememoração se situa em duas dimensões: uma de natureza sincrônica, inscrevendo o indivíduo que recorda em múltiplos quadros sociais e fazendo emergir uma polifonia que produz a simultaneidade de diversas interpretações contemporâneas sobre o passado; e outra de natureza diacrônica, considerando que a dinâmica da recordação e os padrões de rememoração se inscrevem no mundo cultural do qual fazemos parte. Estas compreensões levam à emergência do conceito de “entangled memory” frequentemente traduzido por “memória envolvida”, mas para o qual preferimos o termo “memória enredada”.

O ato de rememoração está encravado em ordens temporais, num enredo de uma história de vida que se atualiza na memória dos que ainda lembram das gerações passadas, construindo fluxos encadeados de memória que reatualizam permanentemente a narrativa vivida. Mas a maneira como se recupera estes fios efêmeros se inscreve em modos de lembrança comuns a um lugar cultural, que aciona maneiras de valorizar ou encobrir o passado. São enredos narrativos que constituem uma memória entremeada em tramas temporais. 

Essa relação entre comunicação e memória encravada em tramas narrativas, em laços constitutivos de pertencimento, em vínculos institucionais de natureza cultural, em significações permeadas de modos de existência que se manifestam num mundo que se metamorfoseou num bios virtual, vem sendo objeto de estudos frequentes nos trabalhos desenvolvidos junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sobretudo por integrantes do Núcleo de Pesquisa em Comunicação (NEPCOM), desde os anos 1990.

No início do século XXI, em coletânea sobre “mídia, memória e celebridades”, Ana Paula Goulart Ribeiro refletia sobre a mídia e os enquadramentos da memória e a prevalência das narrativas do passado, mostrando que as narrativas da memória (biográficas ou não) ofereciam bússolas e âncoras temporais aos indivíduos em um mundo que, naquele momento, já se afigurava como “veloz e fragmentado”. Ribeiro destacava o enunciado jornalístico e, de modo geral, as narrativas e representações veiculadas na mídia como determinantes no enquadramento do “fato histórico” nas sociedades contemporâneas. Com a perda gradual do espaço ocupado pela história na construção da memória oficial, sobretudo frente às tecnologias de comunicação infiltradas amplamente no tecido social, os meios de comunicação passam a ser o locus principal em que se realiza o trabalho sobre as representações sociais. Com isso, a mídia “é o principal lugar de memória e/ou de história das sociedades contemporâneas”.

A autora se tornaria uma das principais estudiosas brasileiras sobre a articulação mídia e memória, ao continuar sua trajetória reflexiva em torno do memorável, enfatizando num primeiro momento as narratividades do jornalismo e os relatos biográficos. Naquele momento, constatava que os meios de comunicação eram um dos principais atores na realização do trabalho de enquadramentos dos acontecimentos do presente, mas também do passado, produzindo-se uma operação mnemônica sobre os acontecimentos e interpretações que deveriam subsistir. O jornalismo enquadrava não apenas os acontecimentos, mas controlava a memória social como “testemunha autorizada”. E esse caráter testemunhal se referia também ao passado.

Nesta “segunda onda” situam-se também as reflexões de Jan Assmann, com o conceito de memória cultural, estabelecendo diálogo crítico com as proposições de Maurice Halbawachs ao distinguir três níveis operativos para a memória: o individual, o comunicativo e o cultural. O primeiro seria relacionado ao neuromental, o segundo ao social — ou seja, a pessoa enquanto portadora de papéis sociais — e o terceiro e último atrelado a um tempo histórico, mítico e cultural. Assim, Assmann preserva a distinção de Halbwachs ao particularizar o conceito de memória coletiva, mas introduz a esfera cultural, não considerada por ele.

Para Jan Assmann, memória coletiva e memória cultural são diferentes modos de lembrar. A memória cultural pode ser transferida de uma situação a outra e de uma geração a outra. Assim, objetos da cultura material e eventos símbolos de uma trajetória produzem a conexão entre uma mente que lembra e um objeto que faz lembrar. As coisas podem nos fazer lembrar, “porque carregam as memórias de que as investimos”. Também no nível social os símbolos externos tornam-se importantes, fazendo com que grupos reúnam e signifiquem “coisas que funcionam como lembranças” — sejam os museus, os arquivos, as bibliotecas e outras instituições mnemônicas, como os meios de comunicação. Enquanto a memória cultural requer instituições de preservação, a comunicativa seria corporizada na sequência de gerações.

A memória comunicativa não tem, para ele, caráter institucional, ou seja, não é mantida por instituições que visam “ensinar, transmitir ou interpretar; não é cultivada por especialistas e não é convocada ou celebrada em ocasiões especiais”. Tem profundidade de tempo limitada e é moldada pelas estruturas, tradições de comunicação e laços afetivos que ligam famílias, grupos e gerações. As comunicativas são, portanto, memórias que compartilhamos com os nossos contemporâneos, que normalmente emergem nas entrevistas de história oral e que comportam as lembranças e esquecimentos de uma sequência máxima de até três gerações.

Já a terceira grande linha teórica dos estudos de memória tem seu ponto inflexivo em 2000, com a publicação, na França, da obra de Paul Ricoeur, entrelaçando memória, história e esquecimento, com sua singular fenomenologia da memória, que somada às revisões anteriores irá construir a base de futuras reflexões.

A proposição central desses novos estudos de memória, enfeixados como uma “terceira onda”, é de que todo ato de rememoração se situa em duas dimensões: uma de natureza sincrônica, inscrevendo o indivíduo que recorda em múltiplos quadros sociais e fazendo emergir uma polifonia que produz a simultaneidade de diversas interpretações contemporâneas sobre o passado; e outra de natureza diacrônica, considerando que a dinâmica da recordação e os padrões de rememoração se inscrevem no mundo cultural do qual fazemos parte. Estas compreensões levam à emergência do conceito de “entangled memory” frequentemente traduzido por “memória envolvida”, mas para o qual preferimos o termo “memória enredada”.

O ato de rememoração está encravado em ordens temporais, num enredo de uma história de vida que se atualiza na memória dos que ainda lembram das gerações passadas, construindo fluxos encadeados de memória que reatualizam permanentemente a narrativa vivida. Mas a maneira como se recupera estes fios efêmeros se inscreve em modos de lembrança comuns a um lugar cultural, que aciona maneiras de valorizar ou encobrir o passado. São enredos narrativos que constituem uma memória entremeada em tramas temporais.

Essa relação entre comunicação e memória encravada em tramas narrativas, em laços constitutivos de pertencimento, em vínculos institucionais de natureza cultural, em significações permeadas de modos de existência que se manifestam num mundo que se metamorfoseou num bios virtual, vem sendo objeto de estudos frequentes nos trabalhos desenvolvidos junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sobretudo por integrantes do Núcleo de Pesquisa em Comunicação (NEPCOM), desde os anos 1990.

No início do século XXI, em coletânea sobre “mídia, memória e celebridades”, Ana Paula Goulart Ribeiro refletia sobre a mídia e os enquadramentos da memória e a prevalência das narrativas do passado, mostrando que as narrativas da memória (biográficas ou não) ofereciam bússolas e âncoras temporais aos indivíduos em um mundo que, naquele momento, já se afigurava como “veloz e fragmentado”. Ribeiro destacava o enunciado jornalístico e, de modo geral, as narrativas e representações veiculadas na mídia como determinantes no enquadramento do “fato histórico” nas sociedades contemporâneas. Com a perda gradual do espaço ocupado pela história na construção da memória oficial, sobretudo frente às tecnologias de comunicação infiltradas amplamente no tecido social, os meios de comunicação passam a ser o locus principal em que se realiza o trabalho sobre as representações sociais. Com isso, a mídia “é o principal lugar de memória e/ou de história das sociedades contemporâneas”.

A autora se tornaria uma das principais estudiosas brasileiras sobre a articulação mídia e memória, ao continuar sua trajetória reflexiva em torno do memorável, enfatizando num primeiro momento as narratividades do jornalismo e os relatos biográficos. Naquele momento, constatava que os meios de comunicação eram um dos principais atores na realização do trabalho de enquadramentos dos acontecimentos do presente, mas também do passado, produzindo-se uma operação mnemônica sobre os acontecimentos e interpretações que deveriam subsistir. O jornalismo enquadrava não apenas os acontecimentos, mas controlava a memória social como “testemunha autorizada”. E esse caráter testemunhal se referia também ao passado.

Em 2007, a autora organizou com Lúcia Ferreira uma coletânea denominada Mídia e Memória, reunindo uma série de textos que mostram como os meios de comunicação desempenham papel crucial na produção de uma ideia de história, mas também de memória. Ao se aproximar de uma efeméride importante no âmbito da história da imprensa – o bicentenário da mídia impressa brasileira, no ano seguinte – o livro pretendia divulgar reflexões produzidas no âmbito do Grupo de Pesquisa de Mídia e Memória, que enfocavam processos, mecanismos e rituais de produção de sentidos relacionados aos meios de comunicação e ao seu papel na constituição de uma memória social.

No momento seguinte, ao afirmar que a cultura contemporânea é profundamente mnemônica — ao contrário das proposições de teóricos da pós-modernidade que enfatizam a perda da referencialidade histórica como marca do nosso tempo —, Ribeiro continua sua trajetória em torno do memorável, constatando que embora já houvesse, na época, uma farta bibliografia sobre a questão da memória social, poucos ainda eram os trabalhos que analisavam o papel dos meios de comunicação nos processos mnemônicos. No texto A mídia e a cultura da memória (2010), procura destacar as especificidades da rememoração midiática, mostrando os usos do passado feitos pela mídia, os enquadramentos de memória realizados e também a dimensão do esquecimento — pois sendo essencialmente mnemônica a cultura da mídia é também profundamente amnésica: “Nela, lembrar e esquecer se articulam numa lógica que vai além da dialética fundadora de toda memória e constitui o próprio princípio contraditório do seu funcionamento”.

Nos estudos subsequentes, Ribeiro afirma cada vez mais a produção do duplo memória e esquecimento na cultura da mídia. Enfatiza as formas de significar o passado na dramaturgia (com ênfase nas narrativas audiovisuais), depois articula a questão da memória com a nostalgia e, mais recentemente, trata das patologias da memória. Seu olhar passa a ter como foco prioritário o mundo contemporâneo, sempre numa perspectiva histórica, ou seja, visto e interpretado na sua historicidade. São fenômenos que se articulam temporalmente, num tempo múltiplo, enlaçando diversos planos, durações, numa permanente ressignificação do presente, do passado e do futuro. O presente passa a ser objeto privilegiado de uma trama reflexiva historicista, eivada dos conceitos e dos modos de ver deste lugar conceitual. Um presente como tempo que se articula em múltiplas camadas de significação e no qual a questão do memorável vai ganhando novos contornos reflexivos.

Seguindo, portanto, a ampliação conceitual do campo da comunicação — que ultrapassa, cada vez mais, os estudos midiáticos e das representações expressas nesses lugares de visibilidade em direção à compreensão das significações humanas na contemporaneidade (expressas por dizeres e fazeres comunicacionais) —, a autora enfatiza em seus estudos de memória as relações entre lembrar e esquecer no que diz respeito aos produtos da cultura contemporânea. Como expressou no recente texto Pensar o tempo: breves notas sobre o presente, a história e os processos comunicacionais (2020), esses fenômenos podem se constituir numa rica chave de leitura para a compreensão do tempo em que vivemos.

Ao refletir sobre a centralidade cultural e política da memória no mundo contemporâneo, Ribeiro se debruça sobre muitas materialidades e práticas midiáticas. Assim, insere-se na ampla tradição dos estudos de memória, procurando compreender os processos mnemônicos como resultado de diferentes formas de gestão sobre o passado — percebendo-os ora como inerentes a disputas políticas (o dever de memória, como imperativo moral, por exemplo, ou os usos e abusos da memória), ora como “memória superabundante e hiperativada”, que pode se traduzir no bloqueio ao livre curso da vida dos indivíduos e coletividades, funcionando como mecanismos produtores de ódios e ressentimentos.

Assim, o que Ana Paula Goulart Ribeiro busca é “analisar as forças criativas do passado na contemporaneidade, sem deixar de estar atento também à memória que se satura e que perde potência frente a variadas formas de esquecimento e de negacionismo histórico”. Igualmente, destaca ela, é preciso observar que “a memória se espetaculariza e se converte em bem de consumo descartável, como o modismo retrô, os mercados da nostalgia e o entretenimento histórico banal”.

Na direção de reflexões em torno das “patologias da memória”, que atingem sobretudo os grupos etários mais envelhecidos, constata que nas últimas décadas mudaram os sentidos sociais da velhice e analisa um conjunto significativo de relatos sobre as doenças que acometem esse grupo etário, tal como o Alzheimer. Articulando velhice e cultura da memória, as pesquisas situam-se nas reflexões sobre mídia e usos do passado no mundo contemporâneo. Mostram, por exemplo, que a palavra Alzheimer só foi amplamente incorporada ao vocabulário a partir das décadas de 1990 e 2000, configurando-se como uma doença do nosso tempo, no qual observa-se a centralidade cerebral e psíquica. Uma doença do esquecimento num contexto de forte apelo à felicidade e à memória.

Se considerarmos o esquecimento “como dano à confiabilidade da memória”, como fraqueza, lacuna, há que perceber os graus de profundidade do esquecimento e as formas como se manifesta. O esquecimento evidencia a não confiabilidade da memória, o apagamento de rastros que conectavam cada um desses sujeitos impedidos ao testemunho e a uma memória comunicativa.

A intrínseca relação entre nostalgia, cultura da memória e cultura da mídia é detectada nos trabalhos de Ribeiro, que inclui a nostalgia como prática mnemônica importante na compreensão dos gestos comunicacionais do mundo contemporâneo, analisando sobretudo emissões audiovisuais. A autora identifica a emergência de novas sensibilidades em relação ao passado, que podem ser percebidas no culto nostálgico agenciado por essas narrativas. Para ela, a nostalgia não expressa apenas saudosismo e escapismo em relação ao presente, mas inclui também tensões e ambiguidades em relação ao futuro e com valor de positividade, deixando antever a potência criativa e crítica da memória. A nostalgia contemporânea, portanto, mais do que se referir à falência de futuro e ser explicada por um regime de historicidade marcado pelo presentismo, possui uma dimensão utópica, dando forma a um desejo de futuro e permitindo vivenciar temporalidades diferentes daquelas dominadas pela instantaneidade de um presente avassalador.

A nostalgia parece ser um sentimento que correlaciona passado e futuro, produzindo um esquecimento duradouro – ou um salto temporal – em relação a um presente que precisa ser obliterado para que possa ser ultrapassado. Logo, o presentismo, tão aclamado como modo de vida da contemporaneidade e inscrição da própria existência num presente sem fim, obriga necessariamente ao gesto de se olhar o passado, exacerbando a cultura da memória na qual estamos imersos. O passado (e não o presente) torna-se brecha para a percepção e construção de futuros possíveis.

Todas essas percepções do tempo, que ganham particularidades na contemporaneidade, instauram relações peculiares com o fluxo temporal, já que para alguns autores estamos situados numa brecha do tempo, um entre lugar, entre o “não somos mais” e o “não somos ainda”, como define Hannah Arendt. Isso faz com que temporalidade – ou seja, a experiência como vivemos a duração – tenha características próprias que emanam da nossa época. Nela, presente, passado e futuro ganham novas configurações. Para muitos o presente torna-se dominante, para outros o presente se contrai à medida que se expande. Há ainda a percepção de que o futuro instaura uma permanente ameaça. Vive-se uma crise temporal, em que cada um desses lugares denominados por nomes símbolos – passado, presente e futuro – não mais os definem, causando em nós, habitantes de um tempo em suspensão, desconforto permanente. Estamos definitivamente fora do tempo.

Para compreender a ação humana hoje, num mundo que vive sob o signo da suspensão, talvez seja fundamental lançar mão da categoria esquecimento, tão importante nas reflexões sobre o memorável.

Por último há que se destacar dois termos que ganham a caracterização de conceitos enlaces nas reflexões de Ribeiro em torno da cultura da memória do contemporâneo e da ação midiática em prevalência na construção temporal: utopia e imaginação. A autora percebe a utopia, com sua qualidade metafórica, fazendo emergir a imaginação produtiva e a ação de explorar o possível. O “nenhures” do mundo revelado pela utopia prepara caminho para que se reflita também sobre o que não existe. A utopia é um sonho permanentemente atualizado, com a intencionalidade de promover mudanças numa realidade sempre em processo, no fluxo do tempo, no qual a imaginação instaura sistemas simbólicos dinâmicos.

Ao se considerar o caráter criativo em todo e qualquer processo mnemônico, a aproximação da memória com a imaginação aparece quase que naturalmente. Há nos processos memoráveis sempre uma criatividade manifesta, que faz emergir das profundezas do si mesmo imagens-lembranças repletas de cores, sons, visualidades – processos sempre comunicativos – acionadas por imagens-lembranças imaginadas e prefiguradas como vida vivida. A vida imaginativa faz parte de fatias de lembranças, dos restos do passado que emergem, sempre, discursivamente (por palavras e ações) quando dele nos aproximamos.

Os estudos sobre o campo memorável na sua relação com a comunicação como ação humana, num tempo caracterizado pela abrangência dos processos comunicacionais em todas as instâncias da vida, não apenas dialogam com os principais teóricos da memória, como também trazem contribuições inovadoras e decisivas. Pesquisas detectam a centralidade da mídia para a compreensão desses processos e entrelaçamentos temporais característicos da contemporaneidade, e refletem de um lugar de fala – a comunicação – capaz de compreender e interpretar os fenômenos em toda a sua abrangência e complexidade. Só do lugar comunicacional – que produz uma visão holística da vida vivida hoje – é possível fornecer interpretações que revelam a complexidade das tramas humanas, regidas sempre por um mundo eminentemente comunicacional.

Gostaria de concluir este texto trazendo à reflexão algumas breves considerações em relação ao gesto escriturário necessário para a construção de uma escrita da comunicação nas pesquisas que realizamos. Alguns autores da área vêm enfatizando a necessidade de abrir a escrita a um múltiplo campo de possibilidades – como lugar da experimentação – construindo uma escritura peculiar que seja relacionada a um método próprio.

Ana Paula Goulart Ribeiro, inspirada em Roland Barthes, postula que os textos devem assumir suas aporias, impossibilidades e potencialidades. Muniz Sodré fala em uma escrita como “literatura” capaz de fazer emergir a “operação redescritiva” da ação do comum humano colocada em tela nos estudos de comunicação. Assim, para ele, o método a ser privilegiado é o abdutivo, capaz de “inventar uma linguagem ou ficcionalizar até mesmo a ciência dedutiva/indutiva para explicar”. Ao falar em abdução, inspirado em Peirce, destaca a adoção metodológica (e a escritura também, acrescento) de procedimentos erráticos “que comporta a invenção, a inspiração e o mito”, colocando lado a lado o rigor com a imaginação.

Este gesto escriturário pode (e deve) incluir o gesto literário; a imersão subjetivista do pesquisador; o uso de procedimentos erráticos, metamorfoseando e sobrepondo inspiração e criatividade; a sua contaminação pelas metáforas criativas; e, por fim, a inclusão de pluralidades de vozes em temporalidades cambiantes e entrecruzadas nas quais a questão teórica da memória ganha centralidade metodológica. 

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Comunicação e Memória, da Memória da Eletricidade, na edição Nº1/ 2021.

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