Blecautes no sistema elétrico brasileiro

29/08/2023

O Brasil conta com centenas de usinas de diferentes tipos, dispersas numa grande extensão territorial e interligadas por milhares de quilômetros de linhas de transmissão que formam o chamado Sistema Interligado Nacional ou SIN, como é chamado de forma abreviada. Esse sistema é responsável por levar energia a todos os estados do país (menos Roraima) e o Distrito Federal, ligando regiões de características físicas, econômicas e sociais diversas.

As usinas e linhas de transmissão do Sistema Interligado Nacional pertencem a diferentes empresas, mas são operadas de forma coordenada e centralizada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), entidade criada em 1998 no contexto da reforma institucional do setor elétrico brasileiro. Até então, essa função vinha sendo exercida pelo Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI), organismo dirigido pela Eletrobras com a participação das principais concessionárias de energia elétrica do país.

Os benefícios da interligação dos sistemas elétricos são bem conhecidos no mundo. Sistemas interligados melhoram a confiabilidade do serviço, proporcionam ajuda mútua em casos de emergência e permitem a possibilidade de troca de energia entre regiões. Isto é particularmente importante em um país como o Brasil, caracterizado pela predominância de hidrelétricas situadas em regiões com regimes hidrológicos diferentes.

O Sistema Interligado Nacional sofre milhares de pequenos incidentes por ano, na sua maioria curtos-circuitos temporários em linhas de transmissão, que não chegam a ser notados pelos consumidores. Um dos principais desafios do ONS consiste justamente em operar o sistema com nível de segurança adequado, procurando evitar ou minimizar a ocorrência de perturbações. Entretanto, perturbações de grande porte nem sempre são contidas. Foi o que aconteceu na manhã de 15 de agosto de 2023, quando desligamentos em série em linhas do SIN ocasionaram a interrupção do fornecimento de energia em todas as regiões do país. Segundo o ONS, houve a perda de 19 mil megawatts (MW), representando 27% da carga total do sistema no início do evento. As regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas.

O Sistema Interligado Nacional

O sistema elétrico interligado brasileiro é responsável pelo atendimento de quase todo o consumo de energia elétrica nacional. O consumo dos sistemas isolados, na maioria situados na região Norte, representa menos de 1% da carga total do país. Boa Vista é a única capital não integrada ao Sistema Interligado Nacional.

Atualmente, o SIN tem capacidade instalada de 209 mil MW, composta em grande parte por hidrelétricas. Nos últimos anos, a instalação de usinas eólicas, principalmente no Nordeste, apresentou um forte crescimento, aumentando a importância dessa geração para o atendimento do mercado. Houve também extraordinário avanço da chamada micro e minigeração distribuída (MMGD), aquela que é gerada pelos próprios consumidores a partir sobretudo da energia solar fotovoltaica.

De acordo com o ONS, a capacidade instalada do SIN apresenta a seguinte composição:

A rede básica de transmissão operada pelo ONS é constituída por linhas e subestações de tensão igual ou superior a 230 quilovolts (kV). Com 179 mil km de extensão, essa rede tem como principais funções: a transmissão da energia gerada pelas usinas para os grandes centros de carga; a integração entre os diversos elementos do sistema elétrico para garantir estabilidade e confiabilidade da rede; a interligação entre as bacias hidrográficas e regiões com características hidrológicas heterogêneas de modo a otimizar a geração hidrelétrica; e a integração energética com os países vizinhos.

Formação do SIN

A formação do sistema interligado brasileiro remonta à década de 1960 com o surgimento das linhas de transmissão inter-regionais e interestaduais, a par da implantação de grandes hidrelétricas, como Furnas, inaugurada em 1963. Até então, o setor elétrico compreendia um conjunto amplo de sistemas isolados ou com fraco nível de intercâmbio. Os sistemas de transmissão representavam redes pouco complexas, ligando unidirecionalmente fontes geradoras e centros de consumo.

A primeira forte interligação elétrica no Brasil foi propiciada pela usina de Furnas, construída no rio Grande, em Minas Gerais, em ponto equidistante das cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. As linhas de transmissão de Furnas na tensão de 345 kV representaram o berço do sistema interligado brasileiro, integrando os sistemas das principais concessionárias da região Sudeste.

Inauguradas em 1984, as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí e seus elos de transmissão viabilizaram a formação de dois grandes sistemas interligados no país, o de maior porte abrangendo as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e o outro, a região Nordeste e parte do estado do Pará. Parte da primeira linha de 750 kV do tronco de transmissão de Itaipu começou a operar em 1982, estabelecendo forte interligação entre as regiões Sudeste e Sul e ensejando aproveitamento da diversidade hidrológica das bacias dessas regiões. A interligação Norte-Nordeste, composta por linhas de 500 kV entre as usinas de Sobradinho, na Bahia, e Tucuruí, no Pará, permitiu o intercâmbio energético entre os sistemas da Eletronorte e Chesf.

Em 1999, a entrada em operação do primeiro circuito de 500 kV da interligação Norte-Sul entre Imperatriz (MA) e Samambaia (DF) conectou os dois grandes sistemas elétricos do país, caracterizando a constituição do Sistema Interligado Nacional. A interligação Norte-Sul recebeu sucessivos reforços de linhas e equipamentos de compensação.

Os estados do Acre e Rondônia passaram a fazer parte do Sistema Interligado Nacional em 2010 com a chegada de linhas de 230 kV procedentes do Mato Grosso. Manaus e Macapá foram integrados ao SIN em 2013 e 2015, respectivamente, por meio de extensas linhas de transmissão procedentes da usina de Tucuruí. Projetada para integração de Roraima, a linha Manaus-Boa Vista com 720 km de extensão permitirá substituir as termelétricas usadas atualmente para alimentar a capital e outras localidades do estado. O início imediato das obras foi recentemente anunciado pelo governo federal.

A construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, notadamente as usinas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará, demandou o reforço das principais interconexões do país com a região Norte, assim como dos sistemas de transmissão regionais receptores.

Além das interligações regionais, o SIN tem interligações com sistemas elétricos de países da América do Sul, nomeadamente o Paraguai, Argentina, Uruguai e Venezuela.

1984: o primeiro grande blecaute no Sudeste

Na década de 1980, os sistemas interligados Sul-Sudeste e Norte-Nordeste sofreram graves perturbações, causadas principalmente por atrasos em obras de transmissão, segundo o engenheiro José Marcondes Brito de Carvalho, diretor de operação da Eletrobras e um dos principais dirigentes do GCOI ao longo de toda sua história.

O primeiro grande blecaute na região Sudeste ocorreu em 18 de abril de 1984. Pouco antes das 17h, o fornecimento de energia elétrica aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo foi quase totalmente interrompido, em virtude dos desligamentos em cascata das linhas de 500 kV do sistema de transmissão das usinas de São Simão, Itumbiara e Emborcação, localizadas no rio Paranaíba, na divisa dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Goiás. O blecaute foi originado pelo sobreaquecimento de transformadores da usina de Jaguara no rio Grande, em Minas, que acionou seus dispositivos de proteção, desligando-os automaticamente. Ocorreram então oscilações de potência entre as usinas do rio Paranaíba e o restante do sistema interligado Sul-Sudeste, provocando os desligamentos em cascata.

O horário em que a perturbação ocorreu – próximo à ponta – o enorme montante de cargas desligadas e o elevado tempo de restabelecimento do sistema ocasionaram graves problemas à população. No Rio de Janeiro, a situação foi normalizada em cerca de uma hora. Em São Paulo, o apagão foi mais prolongado, durando mais de três horas. Um relatório do GCOI destacou a insuficiência do sistema de transmissão para escoar em condições segura a produção das grandes hidrelétricas do rio Paranaíba.

Em 1985, ocorreram duas outras perturbações de grande porte quase que sucessivamente. A primeira, na noite de 18 de agosto, foi desencadeada pelo desligamento de dois circuitos de 500 kV da linha entre a usina de Marimbondo, no rio Grande, na divisa de São Paulo e Minas Gerais, e a subestação de Araraquara (SP). O corte total de carga foi de cerca de 6.700 MW, com tempo médio de restabelecimento de trinta minutos. A segunda perturbação foi registrada na tarde de 17 de setembro. As causas foram as mesmas - as queimadas e o consequente desligamento do circuito Marimbondo-Araraquara. O corte total de carga foi de 1.550 MW, com tempo de restabelecimento de trinta minutos.

Em função dos blecautes de 1985 e do atraso no cronograma de obras de transmissão, o GCOI implementou diversos esquemas de controle de emergência na malha de transmissão para contornar carências nas instalações elétricas dos sistemas interligados. Em depoimento para a Memória da Eletricidade, o engenheiro Hermes Chipp destacou o caráter paliativo dos esquemas de controle de emergência: “Esses esquemas foram concebidos no início em pequena escala e depois configurados equivocadamente como a salvação da falta de recursos”.

O blecaute de 1999

O blecaute de 11 de março de 1999 foi o mais severo da história do setor elétrico brasileiro. O corte de energia aconteceu numa quinta-feira à noite, pouco depois das 22h, deixando completamente às escuras os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. Também foram afetados, em menor escala, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás e o Distrito Federal.

O colapso do sistema teve origem numa descarga atmosférica que atingiu a subestação Bauru, entroncamento de várias linhas de transmissão procedentes de usinas dos rios Paraná e Paranapanema, que convergem para a região metropolitana de São Paulo. O defeito na subestação Bauru, então pertencente à Companhia Energética de São Paulo (Cesp), ocasionou uma sucessão de desligamentos de linhas e usinas vitais para o funcionamento do sistema.

Na região Sul, a recomposição do sistema foi iniciada logo após o início da perturbação, sendo concluída em 49 minutos. O restabelecimento das cargas interrompidas pela atuação do Esquema Regional de Alívio de Carga (Erac) da área Minas Gerais e da área Goiás/Distrito Federal/Mato Grosso foi realizado em cerca de vinte minutos e trinta minutos, respectivamente. O processo de recomposição do sistema nos demais estados foi mais demorado, sendo concluído por volta das 2h30 da madrugada de 12 de março.

A análise do blecaute e das ações desenvolvidas para a recomposição do sistema ficou a cargo do ONS. Criado por lei em agosto de 1998, o ONS havia assumido a coordenação da operação do Sistema Interligado Nacional apenas dez dias antes da ocorrência. O relatório final do Operador confirmou a causa da perturbação como um curto-circuito na subestação Bauru, ressaltando que falhas de equipamentos em diversas áreas, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, impediram o religamento do sistema em menor tempo que o verificado.

Outras ocorrências

O Brasil sofreu novos blecautes de grande porte, ocasionados por diversas razões, como a falta de investimentos em expansão da rede de transmissão, falhas em equipamentos de controle e fenômenos atmosféricos.

O blecaute de 21 de janeiro de 2002, que afetou dez estados das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, foi provocado pelo rompimento de um cabo condutor da linha de transmissão de 440 kV entre a usina de Ilha Solteira e a subestação Araraquara (SP). A perda da linha foi seguida pelo desligamento automático de outros circuitos de 440 kV no estado de São Paulo, acarretando o desligamento em cascata das usinas e principais troncos de transmissão nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. O corte de fornecimento de energia aconteceu ainda na vigência do programa de racionamento decretado em maio do ano anterior pelo governo federal.

O apagão de 10 de novembro de 2009 foi provocado por descargas atmosféricas que atingiram as três linhas de transmissão de 765 kV do tronco de transmissão de Itaipu. O fornecimento de energia elétrica foi interrompido em grandes áreas dos estados de Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Espírito Santo, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, além do Paraguai.

O blecaute de 21 de março de 2018, que atingiu com maior intensidade e duração as regiões Norte e Nordeste, decorreu da atuação indevida de disjuntor da subestação Xingu, no Pará, que recebe energia da usina de Belo Monte. Por causa do efeito dominó, o distúrbio desligou cerca de 25% da carga do país.

O relatório de análise preliminar do ONS sobre o apagão de 15 de agosto passado informou que o ponto de partida do distúrbio foi a LT 500 kV Quixadá-Fortaleza, no Ceará. A atuação incorreta no sistema de proteção da linha ocasionou seu desligamento. O próprio Operador ressaltou, no entanto, que esse evento de forma isolada não seria suficiente para provocar o apagão generalizado.

Independentemente do esclarecimento completo da ocorrência, especialistas no planejamento e operação do sistema elétrico vem chamando a atenção para os novos desafios do SIN em virtude do aumento da participação da geração eólica e mini e microgeração distribuída (MMGD) na matriz elétrica brasileira.

Referências

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https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/08/15/aumento-da-geracao-eolica-e-solar-causa-trancos-no-fluxo-de-eletricidade-diz-especialista.ghtml

VIEIRA FILHO, Xisto et al. Blecaute de 11 de março de 1999: medidas de Curto Prazo para Aumento da Segurança do Sistema Elétrico e Principais Aspectos dos Relatórios Elaborados por Especialistas Internacionais. In SEPOPE - SIMPÓSIO DE ESPECIALISTAS EM PLANEJAMENTO DA OPERAÇÃO E EXPANSÃO ELÉTRICA, 7, Curitiba, 2000.