Preserva.Me 2021: Preservação de arquivos pessoais digitais + Arquivos de mulheres

Postado em 28/10/2021
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O quarto e penúltimo dia do Encontro Internacional de Preservação e Memória, Preserva.Me 2021 foi marcado por discussões em tornos dos desafios para a coleta, catalogação preservação de arquivos pessoais digitais e dos esforços em torno do apagamento das mulheres na História. O painel da manhã, "Preservação de arquivos pessoais digitais", reuniu Gabriel Moore, coordenador do acervo da AAREA e colaborador do Vulnerable Media Lab, e Jorge Phelipe Abreu, mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela UNIRIO. A mediação foi de Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura e Pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz. No segundo painel do dia, “Arquivos de mulheres”, Adelina Cruz, pesquisadora e professora do CPDOC, co-coordenadora do Núcleo de Audiovisual e Documentário (NAD CPDOC) e coordenadora executiva da Pós-graduação em Cinema Documentário da FGV, debateu com Carolina Alves, coordenadora do Programa de Arquivos Pessoais da FGV CPDOC. A mediação ficou a cargo de Amanda Carvalho, gerente de Acervo e Pesquisa na Memória da Eletricidade.

Sobre o Preserva.Me 2021

O Preserva.Me 2021 tem como tema de sua 7ª edição “Arquivos Pessoais e Histórias de Vida”. O evento acontece entre os dias 25 e 29 de outubro, apresentando dez painéis, sempre as 10h e às 16h, com transmissão ao vivo pelo canal da Memória da Eletricidade no Youtube. Para conferir a programação, inscrever-se gratuitamente no evento ou assistir aos vídeos com os painéis anteriores, basta entrar na página do Preserva.Me 2021 clicando aqui.

Primeiro painel: "Preservação de arquivos pessoais digitais"


Gabriel Moore abriu sua longa fala expondo questões inerentes à gestão dos acervos que já se colocavam antes do surgimento do digital.

– Há problemas e questões específicas para gestão de acervos. Há uma ausência de políticas e aquisição específicas – constata. – Existe falta de transparência nas instituições a respeito dos critérios. Há muitas instituições colecionando esses conjuntos, mas pouca discussão sobre métodos e critérios. Mas, na realidade, sempre há critérios. Afinal, alguém fez uma escolha. Uma questão complexa é selecionar onde começa e onde termina esse arquivo pessoal. 

A falta de critérios e políticas institucionais claros, na visão de Gabriel Moore, acabam resultando em ações movidas por decisões tomadas sem embasamento.

– É muito comum escutarmos "estamos fazendo isso para tentar salvar, do contrário seria perdido". Acaba caindo numa questão pessoal. Muitas vezes os critérios são para inglês ver. Quando não temos esses critérios funcionando de maneira transparente e objetiva, acaba caindo no campo pessoal – disse. 

Arquivos pessoais demandam tratamentos específicos

Para o pesquisador, arquivos pessoais necessitam de tratamento específico:

– A metodologia inadequada de tratamento e processamento acaba levando o profissional a fazer aquilo que sabe, da forma que sabe. E arquivos pessoais não têm os mesmos atributos que têm, por exemplo, os arquivos públicos.

Gabriel Moore elenca outros problemas que vem encontrando em instituições arquivísticas:

– Falta de qualificação e articulação profissional. Há isolamento disciplinares, profissionais e departamentais. Os profissionais acabam trabalhando em seus silos, isolados, sem trocar experiências, práticas e conhecimento.

Para enfrentar esses problemas, ele tem algumas propostas:

– Criar políticas de aquisição e critérios de colecionismo e seleção, além de definição de interesses, clareza, transparência e publicidade de objetivos e métodos. Também é fundamental ter diagnóstico e indicadores de gestão, tais como capacidade atual e projetada de processamento, conservação e armazenamento. Isso permite, antes do sim, isto é, antes de aceitar um acervo, que se avalie os impactos e demandas técnicas que vêm com a aquisição. Isso significa que não se deve aceitar sem condições ou sem um plano de trabalho para processamento e preservação inicial. Qualquer instituição de guarda precisa ter organização e controle patrimonial bem definidos. E também clareza legal, documentação que garanta o direito de posse.

Rede de parceria entre instituições e transição para o digital

Gabriel entente que a necessidade de uma rede de parcerias de instituições, incluindo a a possibilidade de guarda compartilhada dos acervos, é algo bastante desejável. Sobre os arquivos digitais, o pesquisador também faz algumas recomendações.

– Precisamos entender a tecnologia da informação como atividade-fim e não só como meio. Além disso, é importante garantir a autenticidade do documento digital no ato da aquisição. Não deveria haver uma cisão entre arquivos digitais e analógicos. Uma pessoa vai produzir os dois tipos de arquivos. Temos que pensar em arquivos pessoais híbridos – sugeriu.

Distinção entre preservação de arquivos digitais e arquivos pessoais digitais

Jorge Phelipe Abreu intitulou sua exposição "Desafios e perspectivas da preservação de arquivos pessoais digitais":

– Minha ideia não é falar sobre ferramentas. Quero fazer a distinção entre preservação de arquivos digitais e preservação de arquivos pessoais digitais.

Ele partiu de casos que viveu em sua trajetória profissional.

– Eu já trabalhava com arquivos pessoais, particularmente de escritores. A partir de 2013 começou o meu contato com arquivos pessoais digitais por meio do arquivo do músico, escritor e artista plástico Rodrigo de Souza Leão, que foi doado para a Fundação Casa de Rui Barbosa em 2012 e produzido quase que integralmente em meio digital – contou Jorge Phelipe. Ele trouxe uma novidade e eu vi muito isso na Academia Brasileira de Letras, que eram acervos na sua maioria em papel e com um ou dois disquetes e ninguém sabia o que fazer com aquilo. No caso do Rodrigo, era uma completa novidade. Procurou-se a Casa de Rui Barbosa, que cogitou nem receber por não dispor de pessoal para lidar com arquivos digitais. Mas acabaram aceitando.

Técnicas específicas

A novidade dos arquivos digitais traz outros desafios e demandam técnicas específicas:

– Nos arquivos pessoais temos muito a situação: quando o titular falece, aí se pensa o que fazer com ele. Arquivos pessoais estão sempre à margem de documentos públicos e institucionais. Os manuais de arquivismo não abordavam os arquivos pessoais. Por muito tempo, eles ficavam em universidades e instituições similares. Estamos falando de documentos altamente sensíveis, mas que utilizam menos espaço de arquivamento e custam menos para serem armazenados – explicou o pesquisador. – Preservar um objeto digital não é o mesmo que botar uma fotografia numa caixa. Se eu for olhar uma foto em papel daqui a 50 anos, ela vai ter se deteriorado, mas vai restar alguma coisa. Em 50 anos, um documento digital não existirá mais. 

Além disso, material digital pede um contínuo de da manutenção:

– Para garantir autenticidade, integralidade e confiabilidade. Materiais digitais se acumulam de maneira diferente e mais problemática do que os materiais físicos. Também é importante a criação de metadados apropriados e pensar como fazer a migração de materiais para formatos de mais fácil acesso.

Aproximação arquivística pré-custódia

Na maioria das vezes, esses documentos não são organizados pelo produtor, são arquivados em diferentes mídias, servidores e ambientes.

– Uma saída é a intervenção arquivística na pré-custódia, quando o produtor dos documentos ainda está vivo. O termo "intervenção" não é bem visto, particularmente no Brasil. Prefiro chamar de aproximação arquivística na pré-custódia. – sugeriu. – Se me interessam arquivos de músicos, arquitetos, escritores, posso orientar essas pessoas, passando boas práticas para eles. O ideal é negociar o acervo do titular com este ainda em vida. E ele vai continuar produzindo. É preciso estabelecer métodos. E essa questão de até onde vai o arquivo pessoal é uma questão importante, a amplitude do arquivo.

Segundo painel: "Arquivos de mulheres"


“Arquivos de mulheres”. Esse foi o tema do segundo painel do quarto dia do Preserva.Me 2021. Carolina Alves, coordenadora do Programa de Arquivos Pessoais da FGV CPDOC, iniciou o debate abordando a escassez de documentos criados por mulheres.

– Ainda se pensa pouco na história do ponto de vista feminino. Existem poucos documentos sobre elas, e as instituições de memória têm papel fundamental para melhorar isso. É importante que documentos estejam disponíveis e facilmente acessíveis nessas instituições – disse Carolina Alves.

Para falar sobre acervos de mulheres, Alves começou falando da própria história do CPDOC.

– Ele foi criado em 1973 e no mesmo ano começou o programa de arquivos pessoais. Hoje são 225, mas apenas 15 são de mulheres – contou.

Apagamento de arquivos de mulheres: traço comum

Segundo ela, é preciso aumentar e equilibrar a captação de novos arquivos. 

– Em 2015, a política pública de acervo informou o interesse da instituição em arquivos de mulheres. Com isso mostramos ao mundo que estamos interessados nesses acervos, e eles começam a chegar no CPDOC – disse. – Mas também temos de criar estratégias para viabilizá-los – observou.

De acordo com Alves, esses acervos de mulheres têm o traço comum do apagamento. Como ela percebeu ao trabalhar na organização do arquivo da feminista Anna Amélia de Queirós Carneiro de Mendonça. 

– A história nunca era contada sob a perspectiva dessas mulheres. Anna Amélia, com atuação política contundente nos anos 1920 e 1930, era desconhecida para mim. Tive a oportunidade de conhecê-la através dos arquivos. Toda a equipe envolvida sentia o mesmo. A ideia, então, foi tratar Anna Amélia como protagonista, decidir o que precisava estar visível. Além de questões de vida privada, de toda a documentação sobre a militância feminista e estudantil e de sua participação em inúmeras instituições, era muito importante valorizar o lugar da mulher autora – explicou.

Feminismo e zepelim

Um dos resultados desse projeto foi o curta "Feminismo nos tempos do zepelim", sobre a trajetória de Anna Amélia inspirado em uma viagem feita por ela de zeppelin para participar de um congresso de mulheres em Istambul.

– Tornar os documentos acessíveis em produções audiovisuais e botar no YouTube aumenta o acesso aos acervos de mulheres no CPDOC – disse Alves.

Outra dessas mulheres cujos acervo recentemente foram incorporados ao CPDOC é a antropóloga Yvonne Maggie. O caso de seu acervo começou a ser contado em 2008, com o projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil, criado para atrair novos acervos. 

– Yvonne deu duas entrevistas em 2009 e, nesse momento, começou um jogo de sedução para ela entregar seu arquivo para o CPDOC, que contém desde sua origem familiar toda sua trajetória profissional. Ela começou a amadurecer a ideia e em 2016 doou seu arquivo – contou Adelina Cruz.

Magia e poder

O material, porém, não estava preservado para a posteridade. 

– Quando ela entregou o arquivo, era um caos. Recebemos recomendação de respeitar a ordem original, mas era desorganizado, com rascunhos, versões originais, folhas soltas, anotações, cadernos de anotações e diários de campo, material de pesquisa dela própria de alunos e orientandos, fotografias, tiras de filmes fotográficos, DVDs com imagens digitais e filme super-8. Doado em 2016, ele começou a ser organizado no ano seguinte com auxílio de Maggie e, em 2019, foi aberto à consulta. Foi um privilégio ter sua colaboração para confirmar coisas, dizer se estávamos corretos. 

Além da organização do acervo, o projeto de financiamento também previa a produção de um curta sobre a obra da antropóloga. Ele partiu de quase 300 fotos, 60 fitas cassete com entrevistas, depoimentos e aulas gravadas. O resultado foi "Magia e poder: fronteiras entre o sagrado e o profano", de 2019, cujo áudio são as fitas e a base é um filme super-8. 

– 43 fitas foram digitalizadas para a produção do filme de 20 minutos – explicou – Uma ação de difusão para atrair novos olhares para nossos acervos, novas pesquisas que se debrucem sobre a riqueza do nosso acervo, para que essas peças de divulgação cheguem a um público muito mais amplo que um pesquisador stricto sensu – disse ela. 

Confira aqui a programação do Preserva.Me 2021.