Preserva.Me 2021: Biografias e narrativas de si + Arquivos pessoais de escritor@s

Postado em 27/10/2021
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No terceiro dia da sétima edição do Encontro Internacional de Preservação e Memória, Preserva.Me 2021, o painel de abertura abordou o tema "Biografias e narrativas de si". Karla Monteiro, jornalista e autora da biografia "Samuel Wainer, o homem que estava lá", e "Leonencio Nossa, jornalista e biógrafo, autor de "Roberto Marinho, o poder está no ar", expuseram detalhadamente os processos de pesquisa e escrita de seus livros, que tratam de dois dos mais influentes jornalistas e donos de empresa de mídia do século XX. A mediação foi de Ana Paula Goulart, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e consultora da Memória da Eletricidade.

Na parte da tarde, o tema foi “Arquivos pessoais de escritor@s”. Com mediação de Amanda Carvalho, gerente de Acervo e Pesquisa na Memória da Eletricidade, Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles, e Maria Oliveira, chefe do Arquivo Múcio Leão da Academia Brasileira de Letras, apresentaram seus trabalhos à frente dessas instituições tão prestigiadas na preservação da memória nacional. 


Sobre o Preserva.Me 2021

O Preserva.Me 2021 tem como tema de sua 7ª edição “Arquivos Pessoais e Histórias de Vida”. O evento acontece entre os dias 25 e 29 de outubro, apresentando dez painéis, sempre as 10h e às 16h, com transmissão ao vivo pelo canal da Memória da Eletricidade no Youtube. Para conferir a programação, inscrever-se gratuitamente no evento ou assistir aos vídeos com os painéis anteriores, basta entrar na página do Preserva.Me 2021 clicando aqui.

Primeiro painel: "Biografias e narrativas de si"


Leonencio Nossa começou a sua exposição contando o momento em que passou a se interessar por biografias, ainda na universidade.

– Quando começa de fato uma história para um jornalista? No meu caso, estava na faculdade quando foi lançado "Chatô – O rei do Brasil", de Fernando Morais. E o livro termina justamente com a derrocada do Chatô e a ascensão do Roberto Marinho – ressaltou. – Pensei: "alguém vai fazer essa biografia do Roberto Marinho".

E alguém fez mesmo. O jornalista Pedro Bial publicou, em 2005, uma biografia autorizada do filho do fundador do jornal "O Globo". Mas o lançamento não fez Nossa desistir de seu projeto de estudante universitário.

– É um equívoco cultural pensar que uma biografia sobre determinado personagem "mata" as possibilidades de que se escrevam outras. Fiz um trabalho sobre a guerrilha do Araguaia, aquele episódio terrível em que jovens foram assassinados pelo Exército brasileiro. Fiz também uma biografia do Rio Amazonas – enumerou. – Daí, veio a ideia de fazer algo mais urbano. Pensei no Roberto Marinho, que é uma figura do Rio de Janeiro. É um desafio fazer uma biografia de alguém que já está nas estantes. Tive que mergulhar bastante numa outra leitura do Roberto Marinho que justificasse o meu trabalho.

É preciso ter paixão pelo biografado

Lonencio Nessa considera a paixão elemento fundamental para qualquer biógrafo:

– Como você vai passar anos com o personagem, tem que ser alguém que apaixona. Roberto Marinho foi um empresário que comandou por décadas empresas por onde passaram gerações de jornalistas, artistas, técnicos, intelectuais – destacando ainda o processo de apuração. – Roberto Marinho viveu por 99 anos, então precisei pegar depoimentos de pessoas que conviveram com ele em diferentes tempos. Não podia fazer um livro que só tivesse depoimentos de pessoas que conviveram numa certa época. Ele construiu um império numa época de muita instabilidade. A história do Brasil é cheia de quarteladas. No período que meu livro aborda, contei 14 quarteladas.

O interesse pela trajetória de Roberto Marinho, Leonencio Nossa justifica pela importância de se investigar as esferas de poder no Brasil:

– Escrever histórias de empresários é algo mais raro no Brasil. Acho que a gente fala muito pouco do poder. O poder precisa ser contado. Assim como é importante dar voz às pessoas marginalizadas pelo sistema, precisamos falar do poder. Pesquisando, vêm à tona outras dimensões de poder.

"Roberto Marinho, o poder está no ar" é dividido em dois volumes. O primeiro vai até 1969, com o lançamento do "Jornal Nacional". O segundo vai da Copa de 70 até a morte de Roberto Marinho.

Viagem à Indonésia e a ideia de fazer a biografia de Samuel Wainer

Karla Monteiro iniciou sua fala relembrando as razões que a levaram a escrever biografias.

– Comecei a minha carreira de jornalista na revista "Veja". Mas nunca me encaixei muito na redação, no dia a dia da notícia, nos prazos de fechamento. Tinha uma relação de amor e ódio com o jornalismo, queria fazer algo de mais longo prazo. Até que fui fazer perfis na revista "Trip". Neste momento, me descobri como jornalista. 

E uma viagem a trabalho à Indonésia a fez descobrir-se como biógrafa:

– No final de 2014, fiz uma viagem para a Índia para cobrir, pelo jornal "Folha de S. Paulo", a execução de Marco Archer [brasileiro condenado à pena de morte na Indonésia depois de ter sido preso ao tentar entrar no país com mais de dez quilos de cocaína dentro dos tubos de uma asa-delta]. Junto comigo foi João Wainer, neto de Samuel, que era fotógrafo do jornal. Ele sugeriu que eu fizesse a biografia do autor. Achei que não tinha equipamento intelectual para a empreitada. Mas voltei com a pulga atrás da orelha. 

Quando finalmente começou a escrever o livro, ela foi "entendendo esse cara para construir a grande narrativa" e estabeleceu algumas regras para o processo: 

– Não li biografias enquanto escrevia. Foi uma grande viagem essa pesquisa e uma grande viagem escrever esse livro. Samuel Wainer foi um grande aventureiro, que nunca ficou no limite da ética, da moral cristã. Tinha uma coisa macunaímica nele. Ele tinha retidão ideológica, mas para construir seu império fez muitas concessões. Era o homem por trás de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jango – analisou Karla, cujo próximo livro é a biografia de Leonel Brizola, que ela planeja lançar daqui a dois anos.

A importância das hemerotecas para a pesquisa

Na parte aberta a perguntas do público, tanto ela quanto Leonencio Nossa destacam o papel da hemeroteca nas suas pesquisas.

– Não tenho assistente, quem me dera. Entrevistei cerca de 60, 70 pessoas. Mergulhei profundamente em hemerotecas. Fazendo a biografia, me dei conta de que o trabalho dos jornalistas talvez seja muito mais para o futuro do que para o presente – constatou Karla. – Ao estudar história pelos jornais, você entra no calor do tempo. As brigas, as denúncias. Os cronistas te dão a temperatura do tempo. E, no caso do Samuel Wainer, descobri que havia cerca de duas mil páginas no Departamento de Estado dos EUA sobre ele.

– Trabalhar com arquivos é um prazer. Um documento não deixa de ser a visão de alguém. Sempre procurei fontes de todos os tipos – disse Leonencio. – Tenho uma queda por arquivo, porque o registro às vezes lembra uma história que a própria pessoa que viveu não lembra mais. E hoje vivemos o tempo das hemerotecas digitais, que são fantásticas.

O interesse do público por biografias, Karla acredita que, em parte, se deve ao momento de crise pelo qual passa o Brasil:

– Vivemos um hiato democrático nos governos FH, Lula e o primeiro mandato da Dilma. Quando estava tudo bem, na época desses governos olhávamos para o futuro. Mas como tudo degringolou de vez, está descendo a ladeira, passamos a olhar para o passado.

Segundo painel: “Arquivos pessoais de escritor@s”


Na abertura do segundo painel do terceiro dia de Preserva.Me, Rachel Valença, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles, falou sobre a necessidade de se divulgar e expor os acervos ao público:

– A grande tarefa é a difusão desses acervos. Quando uma família faz uma doação, deseja que seu parente não seja esquecido, não vire conteúdo de gaveta, deseja eventos, que o material transite na comunidade acadêmica e literária para que a importância daquele escritor seja valorizada e cultuada – explica Valença em conversa mediada por Amanda Carvalho, gerente de acervo e pesquisa da Memória da Eletricidade. 

Instituto Moreira Salles 

Rachel Valença coordena o arquivo de literatura do IMS desde o fim de 2019. Uma coleção que reúne na coordenação de literatura os acervos pessoais de 40 personalidades. Nomes como Ana Cristina César, Drummond, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Otto Lara Resende, Paulo mendes campos e Rachel de Queiroz, entre 23 escritores. Outros três acervos estão em processo de incorporação: o do bibliófilo e literato Fernando Pi, estudioso de Drummond, a doação do acervo de Ferreira Gullar e, recentemente, a coleção de documentos de Paulo Rónai.

– O acervo documental chega quase a 200 mil documentos, com níveis diferentes de processamento. 40% estão muito processados, 20% com processamento médio e mais 20 e poucos com pouco processamento. O resto não está processado, principalmente os adquiridos durante o confinamento – contou Valença.

Nem todos, porém, são acervos completos. Muitos estão espalhados por outras instituições, por motivos diversos.

– No o caso de Drummond, grande parte está na Casa de Ruy Barbosa. Carolina Maria de Jesus tem coleção na Biblioteca Nacional e na cidade de Sacramento, MG. De Clarice, por exemplo, muita coisa está na Casa de Ruy Barbosa, mas temos, por exemplo, o manuscrito de A hora da estrela. Isso não é problema, trabalhamos com parceiros muito interessantes. Nossa meta é fornecer ao pesquisador o máximo de informação que possa auxiliá-lo. Se nos perguntam se temos determinado documento mas sabemos que é possível que esse documento esteja na casa de Ruy Barbosa, nós indicamos isso.

Critérios para receber os acervos

Dentre todos os 43 acervos, 23 foram obtidos por doação, 11 por compra e nove por comodato. Mas há critérios para receber esse material, dependendo de cada instituição. No IMS não é diferente.

– Temos um conselho de acervos, que se reúne última quinta do mês, e cada coordenação leva propostas de aquisição, que são discutidas e podem ser aprovadas ou não. Quando se trata de compra, valores também interferem. Muitos herdeiros pedem preços exorbitantes pelo material. O instituto tem um fundo de acervo para isso, mas pensamos muito para aceitar propostas altas. Em termos de doações, temos de levar em conta o problema do espaço, do peso, e nossa reserva técnica já não está com tanto espaço.

O maior objetivo, segundo Valença, é fornecer insumos aos pesquisadores. Mesmo durante a pandemia. 

– Atendemos o tempo todo virtualmente. Quando retomamos o trabalho presencial, havia uma lista de material que precisava ser escaneado. O instituto ainda não está aberto, mas procuramos atender todas as consultas que recebemos.

Isso porque, segundo Valença, o trabalho dos pesquisadores é de fundamental importância. 

– Ele abre para nós questões que talvez não nos ocorressem. As pesquisas são a razão para organizar e preservar nossos acervos – afirmou ela.

Academia Brasileira de Letras

Maria Oliveira, é a responsável pela gestão do acervo de 289 acadêmicos de várias áreas de um total de 296. Um material cuja preservação é objetivo da ABL desde o início de suas atividades, em 1897

– O arquivo nasce junto com a Academia, a preocupação com a preservação da memória, por isso temos um arquivo tão bom até os dias de hoje – explicou ela.

São dois arquivos, os institucionais da ABL e, mais interessantes, os acervos dos acadêmicos. São documentos pessoais, cartas, originais de obras, fotografias, documentários e periódicos acumulados pela ABL e recebidos através de doações dos próprios acadêmicos, herdeiros, familiares e terceiros.

– O acervo é bastante rico e diverso, tem vários gêneros de documentos, e por isso precisa trabalhar com várias formas de tratamento. Temos acervo audiovisual, iconográfico e pessoal – contou Oliveira.

Identificação preliminar e digitalização

Dos 279 arquivos de acadêmicos, 185, 66%, têm identificação preliminar, seis, 2%, têm organização em andamento (parados por conta da pandemia), e 88, 32%, estão organizados

– Dos 88 organizados, 40 já estão disponíveis para consulta online, o restante deve estar liberado até dezembro. Com a pandemia foi difícil. Mas conseguimos fazer isso e agora é possível consultar a base de dados. Mas mesmo sem estarem totalmente organizados permitimos acesso a determinados documentos, realizamos a pesquisa e fornecemos o documento.

Para isso, a digitalização de acervos é fundamental.

– Sem digitalizar, parece que trabalho não está concluído – explicou Oliveira. – Por isso reformatamos os documentos audiovisuais e sonoros e fizemos a migração desse suporte. Tudo está arquivado na nuvem. Sem falar na preservação de documentos originalmente digitais. Temos de pensar em como preservar isso para as próximas gerações, sejam originais ou fotografias – disse. – A digitalização passou a ser fundamental, principalmente depois da pandemia. Atendemos muitos pesquisadores, só podíamos disponibilizar o que estava digitalizado ou estava acessível. Tentamos não suspender o atendimento, e acho que cada vez mais isso vai crescer. Um dia o arquivo não vai ter sala de consulta, apenas salas de trabalho. 

Confira aqui a programação do Preserva.Me 2021.