Preserva.Me 2021: Imagens e arquivos pessoais + Histórias de vida e o registro audiovisual

Postado em 26/10/2021
Compartilhar

O segundo dia da sétima edição do Encontro Internacional de Preservação e Memória, Preserva.Me 2021, começou na manhã desta terça-feira, 26 de outubro, apresentando o painel “Imagens e arquivos pessoais”. Anna Carla Mariz, professora de Arquivologia e Diretora do Arquivo Central da UNIRIO e José Francisco Guelfi Campos, professor da Escola de Ciência da UFMG e Professor da PUC-Minas, debateram temas inerentes à guarda, preservação, catalogação e ao acesso a itens imagéticos em acervos pessoais. Um dos problemas mais abordados foi o que concerne a arquivos natodigitais e o uso de imagens em redes sociais. A apresentação e mediação foi de Igor Sacramento, doutor em Comunicação e Cultura e pesquisador em Saúde Pública pela Fiocruz.

No painel da tarde, “Histórias de vida e o registro audiovisual”, Kátia Lerner, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do setor RJ-Brasil da USC Shoah Foundation (1996-2013), e Joelle Rouchou, professora, jornalista e pesquisadora em história da imprensa falaram de suas experiências, com apresentação e mediação de Ana Paula Goulart, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e consultora da Memória da Eletricidade.

Sobre o Preserva.Me 2021

O Preserva.Me 2021 tem como tema de sua 7ª edição “Arquivos Pessoais e Histórias de Vida”. O evento acontece entre os dias 25 e 29 de outubro, apresentando dez painéis, sempre as 10h e às 16h, com transmissão ao vivo pelo canal da Memória da Eletricidade no Youtube. Para conferir a programação, inscrever-se gratuitamente no evento ou assistir aos vídeos com os painéis anteriores, basta entrar na página do Preserva.Me 2021 clicando aqui.

Primeiro painel: "Imagens e arquivos pessoais"


"Fotografia pessoal e os desafios da redes sociais" foi o tema da apresentação de Anna Carla Mariz. Ela iniciou sua fala, destacando a importância das imagens nos acervos pessoais.

– A gente percebe que hoje em dia não vê mais nenhum arquivo pessoal que não tenha imagem. Mas, às vezes a família acha que as fotos não vão interessar aos pesquisadores e não disponibilizam – contou a pesquisadora, destacando a relação emocional das pessoas com a memória e os retratos. – A fotografia já um material bem consolidado. Basicamente, a gente vê duas questões fundamentais com a fotografia: conhecer um antepassado que não conheceu, uma época que não conheceu ou a questão da memória, de lembrar viagens, do filho que cresceu, de experiências.

Um dos grandes desafios para quem pesquisa com acervos pessoais hoje em dia é lidar com o caráter híbrido dos material:

– A maioria das pessoas tem acervos tanto analógicos quanto digitais. Além disso, as pessoas usam muito emojis e imagens para se comunicar. É uma outra maneira de se comunicar, diferente do texto e é mais um material com o que lidar. Estamos aprendendo a lidar com isso, que é um fenômeno muito recente.

Facilidade de produzir no digital gera dificuldades para organizar arquivos

Além da natureza híbrida dos acervos e de novas formas de comunicação e diálogo, há outras dificuldades que os registros digitais trazem para a pesquisa:

– Hoje a maioria dos acervos é digital. É raro encontrar pessoas que usem filme. Essa produção em digital traz uma séria de dificuldades de gestão, uso e preservação. No analógico havia um limite de quantidade de fotos num filme e também da quantidade de filmes. Hoje, as pessoas têm a impressão de que não há limite para fazer fotos – destacou. – Vão acrescentando imagens sem uma gestão. Com essa facilidade de produzir, guardamos coisas que são importantes e coisas que não são importantes e, na hora de procurar, as pessoas não acham: "eu tenho foto disso, mas não consigo achar agora para te mostrar." Estamos acumulando imagens que não conseguimos usar.

E questiona:

– Para que estão acumulando se não estão conseguindo usar? Para essa possibilidade de uso do acervo é fundamental uma série de atividades arquivísticas para que possamos usar. Necessidade de identificação, avaliação, organização, descrição, ações de preservação.

Redes digitais não são arquivos. Servem para comunicar

E ainda há a questão das redes digitais, que são vistas por muita gente como arquivos digitais.

– As redes sociais têm a função de comunicar, divulgar. Muitas pessoas acham que a têm a função de preservar, mas não é para isso que as redes servem – disse.

Anna Carla destaca o fato de que fotografias têm relação orgânica com outros documentos de um arquivo:

– A fotografia vai dar informações importantes para os documentos textuais e vice-versa.

Gênero e linguagem

José Francisco Guelfi Campos também abordou a questão da relação entre itens imagéticos e outros tipos de documentos, como os textuais. Ele alertou para os riscos de se desmembrar um acervo pessoal de acordo com o tipo de documento e discutiu a questão do gênero no ato da catalogação:

– Um exemplo é a caracterização por gênero. Gênero não está subordinado ao suporte. Vemos gênero se manifestar em vários suportes. Gênero está ligado à linguagem, é um sistema de signos que podem estar em vários suportes.

E ele lembra que imagem não é sinônimo de ilustração ou fotografia. O conceito é bem mais amplo:

– Imagem se manifesta em diferentes técnicas, registros, formas de reprodução, suportes, formatos, formas. As pessoas tendem a ligar os documentos iconográficos, imagéticos à fotografia, mas há desafios técnicos e teóricos nesse campo – alertou.

O problema do contexto é um desses desafios:

– A imagem se descontextualiza para o seu próprio produtor, imagina para quem vai trabalhar com esse material. É bastante difícil de lidar no trabalho de arranjo.

Recortes de jornais estão no limite do gênero iconográfico

Um exemplo destacado por José Francisco Guelfi Campos é o dos recortes de jornais, que trazem problemas específicos no que concerne à catalogação:

– Os recortes de jornal estão no limite do gênero iconográfico. Jornais são documentos textuais, mas também são documentos iconográficos – lembrou. – Além das fotografias, caricatura, cartum, charge e tira são algumas das categorias que podem aparecer nesses recortes .

A questão da autoria também é um tema complexo, no caso dos recortes de jornal.

– Esses itens são vistos como produção intelectual de terceiros e não da pessoa que guardou o recorte. Mas autoria não é a chave da classificação. Produtor do arquivo, neste caso, é quem acumula – ponderou.

Armazenamento, smartphones e novas formas de comunicação

Na parte dedicada às perguntas do público, Anna Carla Mariz respondeu sobre os riscos de armazenamento de acervos digitais em nuvem:

– Pode ser feito também, apesar de ser muito perigoso se fiar só nisso. Há casos de pessoas que perderam tudo porque só estavam na nuvem. As empresas se eximem de responsabilidade. Não é seguro, portanto é importante ter mais de uma forma de armazenamento.

Ela também comentou as funcionalidades de smarphones que autocatalogam as imagens a partir de algoritmos e software de reconhecimento facial e de objetos, por exemplo.

– Os celulares são o problema maior que temos hoje. Nós podemos fazer ou o próprio aplicativo junta tudo daquela pessoa numa pasta automática – disse. – Por temas como praia, montanha, bebida, comida... Pelos critérios de reconhecimento de imagem. Isso facilita um pouco a vida das pessoas, mas não resolve.

Além disso, o digital mudou as formas de comunicação. Fato que traz novos desafios para a prática arquivística.

– As pessoas não mandam mais cartas. Mandam e-mails. Na verdade, estão mandando WhatsApp. E no WhatsApp vai tudo junto: texto, imagem, meme, figurinha, áudio. O documento natodigital é mais complexo – constatou. – Além disso, no digital, existe a facilidade de apagar de propósito ou por acidente, vírus, reformatação. Por isso, existe um risco de não ficar nada do que temos. Será que este acervo digital será passado para as gerações futuras? Há pesquisas que consideram a linha do tempo da sua rede digital um documento. 

Para José Francisco, a preservação de arquivos digitais é uma questão de toda a sociedade:

– Esse problema não está só nos arquivos pessoais. Está nos serviços públicos, nas empresas privadas. São desafios para os quais não temos respostas ainda.

Segundo painel: "Histórias de vida e registro audiovisual"

No segundo painel, “Histórias de vida e o registro audiovisual”, Katia Lerner abriu sua fala destacando a importância do arquivo na história.

– O arquivo não deve apenas registrar o passado, mas pensar o presente – disse Lerner.

A Shoah Foundation

Ela falou ainda sobre a construção de um arquivo a partir de sua experiência na Shoah Foundation. 

– Uma coleção não é um dado da natureza, é um artefato social que envolve processo de construção – explicou.

Tudo começou em 1994. Ela foi criada com o nome de Fundação da História Visual dos Sobreviventes da Shoah (Holocausto em hebraico) por Steven Spielberg após a realização do filme "A lista de Schindler", quando teve contato com muitos sobreviventes que pediam que contasse suas histórias. O diretor criou essa organização para que as pessoas contassem suas próprias histórias.

– O objetivo era coletar testemunhos sobre pessoas que tinham estado na Segunda Guerra com ênfase na experiência dos judeus, mas também abranger outros grupos, como prisioneiros políticos, ciganos, homossexuais, sobreviventes de políticas de eugenia e soldados que participaram da libertação de campos de concentração, entre outros – relembrou ela.

As entrevistas eram gravadas em vídeo (a fundação não recebia objetos), que eram enviados para Los Angeles e indexados por meio de software específico.

– A tecnologia é marca identitária dessa instituição – observou ela. – A meta era registrar 50 mil depoimentos, e de 1994 a 1999, foram feitos mais de 50 mil. No Brasil fiz parte do projeto e foram entrevistadas aqui 576 pessoas – contou.

A ideia, porém, era também pensar em formas de dar acesso ao material, através de produtos ou exibição de trechos em museus.

– Temos acesso, via internet, de catálogo de depoimentos, da totalidade de depoimentos em universidades nos EUA, na Austrália e na Alemanha, e acesso parcial através de clipes, trechos selecionados, etc. – contou. – Além disso, alguns depoimentos foram gravados com mais de 50 câmeras com uma lista muito extensa de perguntas, a partir das quais são criadas imagens holográficas que tornam possível conversar com a imagem dessa pessoa.

Pesquisa individual

A pesquisa de Joelle Rouchou não contou com tantos recursos. Foi uma experiência individual para sua tese de doutorado. Mas o tema guarda algumas semelhanças: judeus egípcios que foram expulsos de seu país nos anos 1950 e vieram para o Brasil.

– Eles foram expulsos pelo presidente Nasser nos anos de 1956 e 1957, e cerca de 300 vieram para o Rio – contou Rouchou, ela mesma uma dessas imigrantes, deixando sua terra natal, Alexandria, aos três meses em 1957 rumo ao Brasil. – Cresci ouvindo histórias sobre o Egito, mas percebi que muito pouco me foi transmitido. Como se deu o efeito da nova identidade, como ela se construiu, como ganhou seus contornos. É uma história pouco familiar

A forma escolhida para estudar essa comunidade foram as entrevistas.

– A história oral me pareceu mais útil. Mas há diferenças entre entrevistas para jornalistas e pesquisadores. Nas minhas, o diálogo entre pesquisadora e seus entrevistados e suas falas gravadas e transcritas pareceram o ideal. O pesquisador, de posse desse material, pode recortar a fala, buscar pontos em comum, inflexões, pontos importantes para interessar à plateia. Ouvir a voz desses imigrantes foi cumprir um objetivo primordial: dar voz aos esquecidos – disse ela.

Todas as entrevistas feitas por ela foram gravadas e transcritas. 

– Algumas quis gravar como registro pessoal, mais para mim que para usar o registro visual. Eu deixava a câmera o mais distante possível para que as pessoas não se sentissem invadidas – contou ela. – Parecia que eu tinha de ir devagar. Acabou que minha orientadora gostou das imagens e me pediu para fazer um vídeo e apresentá-lo em minha defesa. Ele foi editado de forma que deu para contar a história da vida em um lugar, o trauma da partida e a chegada em um novo país, uma história que eles não quiseram contar muito para os filhos. Nunca nenhum deles me mostrou fotos de Egito.

Confira aqui a programação do Preserva.Me 2021.