É tempo de abertura dos acervos ao mundo

Postado em 28/08/2020
Juliana Monteiro

Museóloga, especialista em Gestão Pública e mestra em Ciência da Informação, é professora da ETEC Parque da Juventude.

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O avanço do uso das tecnologias digitais mundo afora nos torna cada vez mais conectados. Tal conexão nos permite acessar notícias em primeira mão e saber o que está acontecendo do outro lado do planeta na velocidade de um clique. 

O que podemos entender a partir desse cenário é que as tecnologias digitais vieram para ficar. Elas se tornaram parte de nossa vida cotidiana, fato que possui tanto aspectos positivos quanto negativos. Mas exploremos por aqui os positivos, não ignorando os desafios que as possibilidades que as tecnologias nos trazem.

Nesse sentido, nenhuma organização ou instituição existente na sociedade está imune ao movimento trazido pela transformação digital. Museus, arquivos, bibliotecas, centros de documentação ou memória, galerias de arte e todas as instituições que se abrigam no amplo espectro de ‘espaços de memória’, estão no epicentro da mudança tanto quanto qualquer outra organização.

Estar no epicentro significa acompanhar a radical modificação de hábitos, costumes, modos de pensar, se comunicar. Significa que longe vai o tempo em que as instituições de memória poderiam se articular de forma mais gradual às demandas de seu contexto social. As tecnologias digitais contribuem para que as pessoas digam às instituições o que pensam, o que querem e como gostariam de dialogar com a memória preservada em forma de acervo. Tudo em tempo real. Portanto, falar em comunicação, nos dias de hoje, implica em reconhecimento de novas camadas de diálogo, franco e direto, com muitos grupos sociais diferentes.

Nesse contexto, as instituições de memória precisam decidir que caminho desejam seguir. Uma das alternativas é estabelecer, cada vez mais, canais de maximização do diálogo que se constrói a partir das interações originadas pelo uso das ferramentas digitais. Uma forma de se fazer isso é abrindo os acervos para o mundo. 

Padrões abertos de arquivos

Abrir acervos é uma mudança radical na forma de pensar e agir das instituições de memória. Parte do pressuposto de que os recursos criados a partir das coleções – tais como fotografias e dados de objetos, vídeos, sons etc. – podem ser reutilizados e distribuídos por quaisquer pessoas de forma livre e ampla, incluindo aí finalidade comercial. Na prática, significa que toda tentativa de controle sobre o que é feito com tais recursos se torna relativo, pois a instituição estará abrindo mão disso em benefício do maior compartilhamento e reconhecimento do acervo que preserva com a sociedade.

A abertura de acervos implica na reestruturação de fluxos de trabalho internos, como a adoção de padrões abertos de arquivo. O uso de padrões abertos nos permite salvar nossos recursos em formatos que facilitam sua edição, remix, reutilização. Implica também que tais arquivos devem estar disponíveis posteriormente para download nos websites das instituições. Por exemplo: liberar uma imagem para download em PDF é ótimo, mas ainda não é o formato ideal se o que queremos é que as pessoas tenham liberdade de criar coisas novas a partir daquela imagem. 

Outro ponto se refere à camada jurídica da abertura de acervos. As instituições devem ter clareza a respeito da situação dos direitos autorais, conexos e de personalidade associados aos itens do acervo. Ou seja, é preciso ter informação apurada sobre quem detém os direitos daquilo que está sendo fotografado, filmado, gravado e compartilhado pela instituição. Apenas itens da coleção que estejam livres de impedimentos – como os que nunca tiveram quaisquer restrições de copyright ou já estejam em domínio público – é que podem ser alvo de uma ação mais intensa de disponibilização.

Estratégias de produção e divulgação

Antes que possamos alegar que todos esses passos são inviáveis para instituições de pequeno e médio porte, que possuem menos recursos – equipes menores, orçamentos menores – e muitas demandas urgentes – como infraestrutura predial, por exemplo – devemos considerar o seguinte: para uma instituição abrir sua coleção, ela não precisa (e talvez nem deva) disponibilizar tudo de uma única vez. 

Assim, o caminho talvez passe por iniciativas que permitam que as instituições escolham parcelas da sua coleção para abrir. E, aos poucos, conforme suas iniciativas se tornem mais conhecidas, expandir o processo para parcelas maiores do acervo. E como fotografar, filmar, gravar itens da coleção se não há recurso nenhum à vista? 

Aqui podemos pensar em algumas estratégias simples - sem desconsiderar que, em vários casos, a situação das instituições é de fato mais complexa do que o cenário a seguir sugere. 

A equipe pode contar com algum ou alguma profissional que saiba fotografar, por exemplo, e se disponha, mediante uma revisão temporária de suas tarefas, a registrar imagens daquela parte da coleção que não tem nenhum problema com qualquer tipo de direito – como, de modo geral, objetos cotidianos e produzidos em escala industrial. Talvez seja possível carregar tais arquivos (ou parte deles) em repositórios gratuitos como o Wikimedia Commons, que são compatíveis com iniciativas de abertura de acervos. Ou mesmo como o Flickr, que possui versão gratuita. E como divulgar que a iniciativa está acontecendo? A instituição pode tentar divulgar em rádios, coletivos artísticos, escolas e outras instituições locais, por exemplo. Pode promover atividades que busquem incentivar a reutilização, como oficinas ou ateliês de atividades manuais e por aí em diante. 

Claro que não se trata aqui de minimizar as dificuldades que podem ser enfrentadas por qualquer instituição de memória ao tentar realizar todas essas atividades. Mas as dificuldades podem ser vistas sob outro ponto de vista: como oportunidade para fazer com que um acervo seja mais (re)conhecido, apesar de tudo. O engajamento pode ser transformador para todas as partes envolvidas, desde a instituição que apostou na proposta e estará disposta a aprender com seus acertos e erros, até o público, que poderá ver novas formas de explorar algo que sempre foi seu – o patrimônio preservado. 

Por isso, apesar de obstáculos e dúvidas, é válido dizer: é tempo de abrir os acervos. E aproveitar o que as tecnologias digitais nos trazem de melhor em prol da sociedade.

Confira também

A palestra "Acesso aberto aos acervos: uma realidade possível?", apresentada por Juliana Monteiro na 5ª edição do Encontro Internacional de Preservação e Memória - Preserva.ME 2019, promovido pela Memória da Eletricidade:


Juliana Monteiro

Museóloga, especialista em Gestão Pública e mestra em Ciência da Informação, é professora da ETEC Parque da Juventude.