Cibermuseologia: práticas e reflexões

Postado em 09/11/2020
Álea Almeida

Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), graduada em Licenciatura em Música e em Museologia nesta mesma universidade. Atua principalmente na área de documentação museológica e gestão de acervos, atualmente é Coordenadora Técnica do Museu Villa-Lobos (IBRAM).

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A internet e as tecnologias digitais têm transformado várias esferas da sociedade, inclusive os museus. As instituições museais já estão desde pelo menos a segunda metade do século XX repensando suas ações e estratégias de preservação, documentação e comunicação no sentido de tornarem-se mais acessíveis. Novas formas de musealização como as praticadas pelos ecomuseus e museus comunitários e ferramentas participativas e educacionais nos museus tradicionais têm mudado as relações entre as instituições e seus públicos. A entrada dos museus no ciberespaço e no contexto da cibercultura está inserida neste movimento mais amplo de ênfase no diálogo com os visitantes e na ampliação do acesso ao patrimônio musealizado.

Anna Leshchenko (2015) busca definir o termo cibermuseologia, para isso a autora investiga tanto os trabalhos acadêmicos quanto as mudanças nas práticas e configuração do campo profissional dos museus. Leshchenko faz um diagnóstico importante ao descrever o crescimento nos principais museus do mundo de departamentos destinados ao gerenciamento de plataformas de mídias digitais e o consequente surgimento de postos profissionais relacionados à dimensão digital dos museus. Além disso, a autora indica o crescimento do número de conferências e trabalhos acadêmicos relacionados ao uso de mídias digitais pelos museus, indicando um movimento de reflexões e práticas inseridas no escopo da cibermuseologia. Esta é definida por Leshchenko como uma área de discussão dentro da Museologia que trata das mudanças, problemas e desafios nas relações entre museus e visitantes a partir da implementação das tecnologias digitais nas práticas museais.

Magaldi, Brulon e Sanches (2018) também definem a cibermuseologia e seguem na mesma linha de Leshchenko, entendendo-a como uma corrente de pensamento museológico que reflete sobre as expressões da dimensão digital dos museus. Entre estas expressões ou práticas estão os diferentes usos da internet para divulgação de serviços, acervos; criação de novas estratégias de comunicação nas redes sociais e exposições (por exemplo, uso de QR codes, #, etc.), os museus virtuais, entre outros assuntos. Assim, atualmente é possível visitar um museu de casa por meio de um computador pessoal, o que levou muitas instituições a se digitalizarem e algumas até a atuarem unicamente no espaço virtual (MAGALDI, BRULON, SANCHES, 2018). Esta tendência certamente foi acelerada recentemente, por conta da pandemia do novo coronavírus que obrigou museus do mundo inteiro a fecharem suas portas ao público. Neste contexto, os sites, redes sociais, e-mails e plataformas digitais diversas se tornaram os únicos ou principais meios de comunicação entre os museus e o público.

Pandemia expõe desigualdades de acesso à internet

Pode-se inserir no escopo de análise da cibermuseologia as práticas de curadoria digital, que envolvem ações de seleção, armazenamento, classificação e análise do patrimônio digital - este compreendido como o conjunto de recursos e informações criados digitalmente ou convertidos para o formato digital (SOUZA, SAYÃO, 2017). Um dos maiores objetivos da curadoria digital é o reuso dos objetos digitais em exposições virtuais, projetos educacionais, publicações, games, aplicativos, espaços colaborativos, entre outras ferramentas (SOUZA, SAYÃO, 2017). É importante assinalar que as práticas de curadoria digital não são exclusivas dos profissionais de museus, são processos que os visitantes muitas vezes utilizam e dominam. Os próprios sites de museus e plataformas de divulgação do patrimônio cultural, tais como o Google Arts&Culture, estimulam que o público faça suas próprias seleções e narrativas digitais.

De fato, geralmente são indicadas como as principais vantagens do deslocamento das práticas museais para a internet e meio digital a democratização do acesso ao patrimônio musealizado e novas possibilidades de interação com o público. Como mencionado anteriormente, certamente percebe-se que está em curso um processo de experimentações de novas formas de comunicação com os visitantes não apenas no meio digital, mas também nos espaços físicos dos museus, que passaram a dialogar com os recursos digitais. Porém, alguns autores, como Ulpiano Meneses (2007) complexificam esta discussão apontando o outro lado da adoção das tecnologias digitais. Para o autor, os filtros econômicos e socioculturais continuam determinantes no que diz respeito ao acesso à internet e às ferramentas digitais e à aquisição de competências para a utilização destas tecnologias. Sobre a interação, Meneses reflete que esta muitas vezes se dá em um circuito fechado, em momentos e espaços previstos, fora do programado, o diálogo é muitas vezes dificultado.

No contexto brasileiro de pandemia, estamos assistindo a um processo onde são expostas as desigualdades de acesso à internet e tecnologias digitais, resultando em um aprofundamento das diferenças de oportunidades para ricos e pobres. Assim, os desafios dos museus de divulgar seus acervos para públicos diversos e ampliar o diálogo com os visitantes que já existe no contexto de seus espaços físicos e atividades presenciais permanece no ambiente digital. Como Pierre Levy aponta na introdução do seu livro "Cibercultura" (2010), podemos ser até otimistas com o surgimento da internet e da cibercultura, mas é inocente supor que estas resolverão os problemas sociais e políticos do mundo. Por outro lado, isso não é justificativa para fecharmos os olhos para um movimento mundial, que se dá no ciberespaço, de criação de novas formas de comunicação. O que fazer com as ferramentas digitais, cabe a nós decidir (LEVY, 2010).

As práticas de curadoria digital e cibermuseologia no Museu Villa-Lobos

O Museu Villa-Lobos completa neste ano de 2020 60 anos de vida. Fundado em 1960 por Arminda Villa-Lobos, segunda esposa do compositor, atualmente a instituição é uma unidade do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), vinculado à Secretaria Especial de Cultura. A instituição tem como missão ser referência sobre a vida e a obra de Villa-Lobos, valorizando as manifestações da música brasileira e a educação musical (MVL, 2020). 

O patrono do museu é certamente um dos mais reconhecidos e celebrados compositores brasileiros: Villa-Lobos reformulou o conceito de nacionalismo musical, tornando-se seu maior expoente e importante representante da música brasileira no mundo (MVL, 2020). O compositor certamente foi influenciado pela música erudita europeia, mas também trouxe para suas composições elementos das culturas indígena e africana, elaborando uma escrita musical original e singular. A partir da década de 1930, Villa-Lobos atuou também como agente público e formulou, em conjunto com sua equipe, importantes políticas de educação musical.

Pensando nas comemorações dos 60 anos do museu, estão em andamento desde 2019 projetos realizados com recursos do Fundo de Direitos Difusos (FDD) do Ministério da Justiça e Segurança Pública. São ações para reformulação do espaço expositivo, restauração do piano que pertenceu a Villa-Lobos, compra de piano para a programação musical da instituição, digitalização de acervo, lançamento de publicações, identidade visual, website. Além destes projetos, a equipe do museu está trabalhando na elaboração do Villa-Cast (podcast que discutirá a vida e a obra do compositor) e na inserção de parte do acervo na plataforma Tainacan (utilizada pelos museus do IBRAM), entre outras ações. Dessa forma, no contexto destas comemorações, já existia o esforço da equipe do MVL em enfatizar a dimensão digital da instituição, disponibilizando grande parte do acervo na web e buscando novas formas de comunicação com o público por meio da reformulação do site, da criação do podcast e continuidade de estratégias voltadas para as redes sociais do museu.

Com a chegada da pandemia, certamente este processo precisou ser acelerado. Com o fechamento de todos os museus do IBRAM e adoção do trabalho remoto a partir de março deste ano, as redes sociais, e-mails e site da instituição se tornaram os únicos meios de comunicação com o público e foi preciso repensar nossa presença digital. Iniciaram-se séries de posts no Facebook e Instagram sobre aspectos da vida e obra de Villa-Lobos, intituladas Villa pelo mundo e Bachianas. A primeira tratou das viagens pelo mundo de Heitor e Arminda Villa-Lobos, passando por questões sobre a obra do compositor, aspectos ilustrados por fotografias do acervo, atualmente disponível na web na plataforma Tainacan. A série Bachianas comemorou os 90 anos das famosas composições de Villa-Lobos, com uma postagem a cada semana sobre uma das 9 Bachianas. 

Primeiro Festival Villa-Lobos inteiramente realizado na internet

Outra mudança importante foi a realização na web de ações que aconteciam no espaço físico do museu: pela primeira vez os Mini-Concertos Didáticos, Encontro de Corais e recitais musicais foram disponibilizados nas redes sociais do museu em vídeos gravados especialmente para a instituição. No próximo mês de novembro, será realizado o primeiro Festival Villa-Lobos (criado por Arminda em 1962) inteiramente realizado na internet, com a postagem e estreia de vídeos de músicos importantes como Maria Tereza Madeira, Marina Spoladore, Hugo Pilger, grupo Água de Moringa, entre outros . 

Assim, há um esforço da equipe do MVL no sentido de estruturar práticas de curadoria e reuso dos objetos digitais, tanto para disponibilização na plataforma Tainacan, como no site, redes sociais etc. Neste âmbito, uma parceria importante foi a firmada com a plataforma Google Arts&Culture, que propõe a exploração do patrimônio cultural por meio da disponibilização de mais de duas mil páginas de museus e ambientes imersivos. A página do MVL no G&C foi lançada em maio deste ano e disponibiliza parte do acervo de fotografias da instituição, além da exposição virtual Native Brazilian Music: 80 anos. É importante dizer que esta página é fruto de uma parceria entre a plataforma Google A&C e o IBRAM, sendo o MVL um dos museus já contemplados.

No processo de curadoria digital para a exposição lidamos com diferentes questões: o uso de metadados e normatização da própria plataforma, a seleção de imagens e áudios, aspectos relacionados à comunicação, a criação de uma narrativa capaz de articular a discussão do contexto histórico com o caráter descontraído e lúdico da música popular carioca do início do século XX. Na plataforma, os itens do acervo agora têm a possibilidade de se conectarem com outras coleções de instituições nacionais e internacionais, abrindo espaço para novas conexões e possibilidades de curadoria digital.

Todas estas ações e transformações têm sido realizadas por toda a equipe do museu em trabalho remoto: Bianca Freitas, Juliana Amado, Márcia Ladeira, Pedro Rodrigues, Vanea Rabelo, Hugo Santos, José Ricardo Alberto e o diretor Luiz Octávio Castro. Não há no museu um departamento exclusivo para o gerenciamento das ações em meio digital, o que, apesar das dificuldades, favorece uma ação conjunta e interdisciplinar. Estas práticas podem ser contextualizadas no âmbito das discussões da cibermuseologia e têm iniciado novas formas de comunicação com o público e de reuso do acervo do museu. Mesmo sendo necessárias análises mais aprofundadas, percebemos um crescimento do nosso público nas redes sociais, site e página na plataforma Google&Arts. Aumento que está provocando mudanças nas formas de interação com o público, processo ainda em curso. 

Pensando no futuro e no esperado fim da pandemia, nossas práticas de curadoria digital tendem a complementar as ações que acontecem no espaço físico do museu, potencializando-as. Dessa forma, tecnologias digitais e ações já tradicionais convergem na busca de intensificação da interação com o público e divulgação do acervo.

Referências:

LESHCHENKO, Anna. Digital Dimensions of the Museum: Defining Cybermuseology’s Subject of Study. ICOFOM Study Series, ISS – 43, ICOFOM/ICOM, Paris, 2015, p.237-241. 

LEVY, Pierre. Introdução - Dilúvios. In: _________. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010, p.11-20.

MAGALDI, Monique Batista; BRULON, Bruno; SANCHES, Marcela Freire Sanches. Cibermuseologia e museologia virtual: as diferentes definições de museus eletrônicos e sua relação com o virtual. In: MAGALDI, Monique B.; BRITTO, Clóvis Carvalho (Org.). Museus&Museologia. Brasília: FCI-UnB, 2018, p. 135 a 156.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Os museus na era do virtual. In: Bittencourt, José Neves; Granato, Marcus &Benchetrit, Sarah Fassa (Org.). Museus, ciência e tecnologia. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, p. 48-70. 

MVL – MUSEU VILLA LOBOS. Disponível em: <https://museuvillalobos.museus.gov.br/>. Acesso em: nov. 2020.

SOUZA, Éricka Madeira de; SAYÃO, Luis Fernando. Acervo cultura: curadoria digital e reuso. In: Sebramus – Seminário Brasileiro de Museologia, III, Belém. Anais. Belém: Universidade Federal do Pará, 2017, p. 1816 a 1832.

Cadastre-se no site da Memória da Eletricidade e assista ao vídeo da íntegra do painel "Google Arts & Culture como ferramenta de acesso e difusão de acervos museológicos" , com Álea Almeida, Pedro Belchior Rodrigues, Leonardo Menezes e Eduardo Carvalho:


Álea Almeida

Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), graduada em Licenciatura em Música e em Museologia nesta mesma universidade. Atua principalmente na área de documentação museológica e gestão de acervos, atualmente é Coordenadora Técnica do Museu Villa-Lobos (IBRAM).