Notas sobre arquivos pessoais nato-digitais

Postado em 28/08/2020
Jorge Lira de Abreu

Arquivista e mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Unirio, é analista de documentação da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).

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Da criação dos computadores pessoais na década de 1980 até os dias atuais, a tecnologia digital parece ter se inscrito, definitivamente, na mediação de diversas atividades no âmbito pessoal. Os recursos cada vez mais sofisticados mediam as relações, as compras, as transações bancárias, o entretenimento etc.. Tornou-se difícil identificar um indivíduo na contemporaneidade, em nossa sociedade, que não tenha sua existência instrumentalizada por recursos tecnológicos. Os registros, até então em suportes convencionais, como o papel, se alteram essencialmente e assumem novas características. Tem-se, então, como resultado dessa interação, os chamados arquivos pessoais nato-digitais. 

Os arquivos pessoais nato-digitais consistem nos documentos originalmente codificados em dígitos binários e interpretáveis por sistema computacional, inscritos em suporte magnético ou óptico, criados ou recebidos, acumulados e usados por um indivíduo no curso de sua vida diária. Um arquivo pessoal pode conter muitos tipos documentais, bem como refletir muitas facetas do indivíduo, como por exemplo, sua carreira, suas relações familiares, suas relações com os organismos oficiais, e os seus hobbies e interesses. 

A formação de arquivos em ambiente digital apresenta uma série de vantagens no custo, produção, transmissão e acesso, mas por outro lado, implica em documentos altamente sensíveis e manipuláveis, além de sujeitos à rápida obsolescência tecnológica e à fragilidade do suporte. Dessa forma, apresentam-se alguns desafios, especialmente porque as abordagens para a manutenção e preservação de documentos nato-digitais, em sua maioria, são voltadas para instituições governamentais ou para grandes instituições corporativas, com pouca ou nenhuma ênfase às características únicas de materiais digitais gerados em ambientes pessoais. 

Produção documental institucional e pessoal

Os arquivos produzidos no âmbito institucional quando não são concebidos segundo protocolos regulados com contextos claramente identificáveis, têm ao menos sua produção limitada pela missão institucional. Entretanto, essa não é a realidade dos arquivos produzidos no âmbito pessoal, que, embora contenham documentos oficiais ou que obedeçam a regras sociais tácitas, a produção documental não ocorre a partir de padrões pré-estabelecidos, como em leis, normas e manuais, mas sim de maneira ilimitada pela missão de existir, a partir de impulsos humanos regidos pela liberdade dos indivíduos. Esse cenário aporta alguns desafios para o tratamento e preservação dos arquivos pessoais nato-digitais, dos quais a presunção de autenticidade e a preservação apresentam-se como os mais recorrentes nas abordagens sobre esses conjuntos documentais.

A discussão da autenticidade emerge com mais intensidade com a chegada da tecnologia digital, uma vez que documentos produzidos no computador são mais suscetíveis a alterações, legais ou ilegais, e as supressões voluntárias ou involuntárias, especialmente em ambientes sem compromisso com o controle documental como o terreno dos arquivos pessoais. Portanto, a autenticidade configura-se como uma preocupação crítica nos domínios da história, do direito e da diplomática. 

Nesse sentido, os estudos de preservação digital, na medida em que investigam a natureza dos documentos arquivísticos digitais e seus atributos, apoiam a presunção de autenticidade. As contingências que dão autenticidade aos documentos são observáveis não no próprio documento, mas nos procedimentos de criação, manutenção e preservação. Assim, a preservação configura-se apenas em parte como uma questão técnica, mas é um componente de uma ampla agregação de serviços, políticas e partes interessadas interligadas, que, juntas, constituem um ambiente digital.

A importância dos metadados 

Nesse contexto, os metadados se constituem em recurso fundamental para a análise do documento arquivístico nato-digital, enquanto “dados estruturados que descrevem e permitem encontrar, gerenciar, compreender e/ou preservar documentos arquivísticos ao longo do tempo” (CONARQ, 2016, p. 29) e surgem da necessidade imposta pelo uso das tecnologias da informação de registrar outras informações, além das descritivas, para garantir sua compreensão e acessibilidade ao longo do tempo. 

Os metadados são declarações legíveis por máquinas e por humanos sobre os recursos de informação que permitem o controle físico, intelectual e técnico sobre esses recursos. Entretanto, muito trabalho precisa ser feito para traduzir requisitos de metadados altamente conceituais e idealizados em padrões reais que possam ser razoavelmente atendidos pela dinâmica diária da produção de documentos digitais no âmbito pessoal.

A preservação de arquivos digitais se constitui numa iniciativa urgente em virtude da rápida obsolescência da tecnologia digital no que diz respeito a suportes, formatos e plataformas. Preservar as memórias digitais de uma pessoa ou família constitui-se em tarefa complicada, porque não é o mesmo que preservar um documento em suporte papel, por exemplo, em que quanto menos houver manuseio seu acesso em longo prazo pode ser garantido. Assim, a preservação digital desponta como a gestão e os procedimentos técnicos necessários para lidar com as mudanças tecnológicas e a fragilidade dos suportes, garantindo acesso e interpretação dos documentos digitais pelo tempo necessário, bem como a manutenção de seus atributos de identidade e integridade para apoiar a presunção de autenticidade. 

Armazenamento em mídias robustas

Os desafios apresentados apresentam-se em duas instâncias. A primeira diz respeito ao produtor, em como o titular pode lidar com os problemas advindos da produção de documentos em ambiente digital. Antes de se ocupar de recursos tecnológicos sofisticados para preservação digital, é fundamental que seja estabelecida uma rotina de organização, que abarque a definição de uma estrutura de classificação para os documentos, e de avaliação, para que os recursos a serem utilizados sejam dedicados apenas ao que precisa ser mantido por longo período. 

No ambiente doméstico, dificilmente, tem-se acesso a ferramentas de gestão documental ou a um Repositório Arquivístico Digital Confiável. Portanto, orienta-se a trabalhar com medidas possíveis, tais como as de organização, classificação e avaliação, para só então se dedicar ao armazenamento/preservação. Não é recomendado que arquivos de guarda permanente sejam replicados em mídias de armazenamento frágeis, tais como pen drive. Recomenda-se a escolha de mídias de armazenamento mais robustas, como um HD externo, para armazenar os documentos. A documentação dessas mídias deve ser estudada para que a sua substituição seja feita no tempo adequado. A preservação digital é dinâmica e pressupõe migração. Também torna-se fundamental que sejam observados os formatos escolhidos para preservação dos documentos. O Arquivo Nacional se dedica à atualização dos formatos de preservação de diversos tipos documentais por meio do Programa Permanente de Preservação e Acesso a Documentos Arquivísticos Digitais. Por fim, faz-se importante documentar todas as medidas adotadas no que diz respeito à produção, manutenção e preservação dos documentos. 

A segunda instância diz respeito aos profissionais de arquivo ou responsáveis pela preservação desses conjuntos documentais a partir do ingresso nas instituições de custódia. Até agora, as estratégias de aquisição de arquivos pessoais centraram-se ao final do ciclo de vida dos documentos. As instituições costumam adquirir arquivos de indivíduos após esses terem encerrado suas carreiras profissionais ou morrerem. Muitos autores consideram que essa estratégia é prejudicial para obter informações sobre a produção e arquivamento dos acervos adquiridos, especialmente os digitais, com o passar do tempo estaremos perante um declínio significativo no volume de documentos pessoais em arquivos. 

Aproximação pré-custodial

As instituições de custódia precisam se comprometer, a fim de minimizar os desafios do processamento técnico de arquivos pessoais nato-digitais, com o fornecimento de orientações aos indivíduos produtores de documentos. Sendo assim, para qualquer etapa do processamento técnico, tão importante quanto os recursos tecnológicos institucionais é a aproximação da instituição com o produtor ou legatário. Pode-se pensar essa abordagem como uma aproximação pré-custodial para expressar o estabelecimento de uma relação entre o produtor ou custodiador e a instituição de custódia antes da aquisição. Em alguma medida essa abordagem precisa começar a ser vislumbrada pelas instituições que pretendem recolher arquivos pessoais digitais, visando a minimizar perdas ocasionadas por obsolescência tecnológica ou problemas na transferência dos acervos para as instituições.  

As questões originadas a partir do desenvolvimento e adesão acelerada dos recursos tecnológicos pela sociedade contemporânea serão continuamente e se apresentarão às instituições de custódia. As mídias sociais e os aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, já são uma realidade na vida dos indivíduos. Assim, está-se, pois, diante de um campo que requer contínuas discussões para que os arquivos pessoais sejam preservados em sua importância para apreensão dos processos histórico-sociais, enquanto evidenciam funções, atividades, interesses pessoais, relações familiares, culturais e de sociabilidade. 

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O Preserva.ME Live #5 sobre "Arquivos pessoais nato-digitais" contou com a participação de Jorge Lira de Abreu.




Jorge Lira de Abreu

Arquivista e mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Unirio, é analista de documentação da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).