Marcas humanizadas não fazem diversitywashing

Postado em 28/08/2020
Fernanda Carrera

Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisa ciberpublicidade, branding e construção de sociabilidade em sites de redes sociais.

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Ao reconhecer a potencialidade comunicacional dos sites de redes sociais, marcas constroem, já há algum tempo, estratégias adequadas às demandas de sociabilidade que se formam nesses espaços de interação. São criadas, portanto, novas formas de relacionamento com os consumidores: muito mais personalizadas, divertidas, despretensiosas. Esse modo de agir, que coloca a socialização em destaque, para além das promoções e dos anúncios publicitários com foco em venda, é o que se chama de humanização. 

Isso se dá em virtude da materialidade destes ambientes e à cultura que emerge das tecnologias digitais: é possível estar em constante contato social, mesmo em mobilidade, além da fuga de conteúdos irrelevantes se tornar mais facilitada. Isto é, se a interrupção publicitária é um problema comum aos meios de comunicação tradicionais, o ambiente digital é o melhor escape para a busca por conteúdos de relevância. Sendo assim, marcas como Netflix, Nubank e Ponto Frio já construíram suas imagens de marcas humanizadas, ao interagirem com consumidores em plataformas como Twitter, Facebook e Instagram a partir de uma leveza interacional própria aos seres humanos. 

No entanto, é nesse espaço digital que há mais aparatos, também, para denúncia. É fácil saber se a estratégia de humanização não se sustenta em outros comportamentos da marca. Se a empresa parece humanizada em um destes ambientes, mas oferece o mesmo tradicional contato robotizado comuns aos atendimentos por telemarketing, por exemplo, a estratégia e a imagem da marca rapidamente são despedaçadas. 

Pautas da humanização

Essas estratégias de humanização, por estarem atreladas diretamente às demandas interacionais da contemporaneidade, são agendadas pelos temas caros ao momento social. Se na década de 90, por exemplo, houve um aumento da discussão a respeito da sustentabilidade e dos impactos ambientais das empresas (quando marcas fomentaram uma autopromoção sustentável em sua comunicação com o público), hoje é assunto constante no domínio da interação a pauta da representação e da diversidade. Empresas dos mais variados segmentos buscam problematizar a questão da diversidade dos corpos, seja na construção das suas imagens publicitárias, seja na ocupação destes corpos em seus processos produtivos. 

Contudo, se na época do boom pela sustentabilidade, havia técnicas de greenwashing, isto é, “formas de construir uma camada discursiva dissimulada sobre as práticas comerciais, reconhecendo que os apelos da sustentabilidade são estímulos potentes ao consumo”, hoje, com o aumento do debate sobre a importância da diversidade, vê-se constantemente práticas marcárias de diversitywashing. Sendo assim, consumidores estão cada vez mais conscientes dos seus potenciais de investigadores de humanização, isto é, percebendo se as estratégias de marca pautadas pela diversidade se manifestam em todas as práticas da empresa ou são apenas formas de mascarar discursos e atividades incoerentes. 

Reconheça o 'diversitywashing'

Em artigo publicado recentemente, fazemos esta discussão, discorrendo sobre o conceito de diversitywashing e sobre os traços perceptivos de sua manifestação. Marcas humanizadas, portanto, reconhecem a importância da valorização da diversidade, mas não podem deixar escapar traços de que esta valorização é frágil e inconsistente. São 6 traços comuns de diversitywashing que podem ajudar a desconstruir a imagem de uma marca humanizada: atribuição de neutralidade; representações inadequadas; diversidade limitada; bastidores contraditórios; comportamentos incoerentes; vida passada. 

  1. A atribuição de neutralidade a corpos específicos se manifesta na escolha de alguns sujeitos para representarem o padrão, compondo um pano de fundo supostamente invisível para a marcação dos corpos que seriam “diferentes”. A diferença, marcada por tudo que se afasta do padrão normativo de existência atual (branco, magro, heteronormativo, jovem e sem deficiências), se evidencia pela apresentação em meio à maioria padrão.
  2. Representações inadequadas: se há, muitas vezes, a tentativa de representar corpos diversos em contexto comunicacional marcário, é muito comum que as escolhas discursivas sejam equivocadas. Nesse sentido, se a intenção era valorizar o corpo diverso, possivelmente o efeito foi exatamente aquilo que se intentava fugir: fortalecimento de estereótipos pejorativos ou falta de real visibilidade. O caso da campanha da “Somos Todos Paralímpicos”, com Cléo Pires e Paulo Vilhena, é um bom exemplo deste traço de diversitywashing.
  3. Muitas vezes, as empresas preparam anúncios publicitários e campanhas promocionais adequadas ao debate sobre a diversidade, construindo sua imagem humanizada de marca diversa, mas no âmbito interno do seu funcionamento há atividades contraditórias. O traço bastidores contraditórios se fundamenta nesses elementos de fundo, que não são comunicados estrategicamente pela empresa e que contradizem completamente a tática de humanização. No momento em que o fato é exposto, percebe-se que a marca se arvorava nos trâmites do diversitywashing.
  4. Diversidade limitada: este traço de diversitywashing se manifesta na ideia de diversidade superficial, isto é, há um limite muito curto para a estratégia diversa da marca, que não sustenta corpos e possibilidades para além daqueles que já são, de algum modo, mais aceitos em sua diferença. Negros de pele clara, deficiências leves, pessoas levemente acima do peso padrão etc. geralmente são aqueles escolhidos para marcar a diversidade da empresa, que não nota sua, novamente, opção por reconhecimento de padrões normativos estereotipados.
  5. É possível perceber, também, que a marca faz diversitywashing quando o próprio sujeito empresarial tem comportamentos intencionais discrepantes em torno da diversidade. Ou seja, a incoerência não é percebida de forma acidental pelos públicos, mas se manifesta no comportamento comunicacional que a marca espontaneamente produz. O traço comportamentos incoerentes, portanto, é um ato falho da marca em seu próprio processo discursivo.
  6. Vida passada: se a pauta da diversidade é muito diferente das práticas antigas da marca, dificilmente os públicos esquecerão rapidamente sua vida passada para adotarem, imediatamente, percepção nova acerca da empresa. Nesse sentido, se as novas propostas comunicacionais não se sustentarem com o tempo, facilmente a marca será levada novamente ao seu passado e construirá, na percepção dos consumidores, a imagem de marca carente de humanização ou, ainda, de praticante de diversitywashing.


Fernanda Carrera

Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisa ciberpublicidade, branding e construção de sociabilidade em sites de redes sociais.